O homem que veio do futuro

O homem que veio do futuro
(Foto: Divulgação/ Arte Andreia Freire)

 

No Recife do fim dos anos 1980, um grupo de jovens passava as tardes ouvindo músicas que não tinham espaço nas rádios pernambucanas, dominadas pelo axé baiano e pelo rock do Sudeste. Vinis recém-lançados em outros países e fitas cassetes raras eram bens preciosos nas mãos de quem ansiava pela troca de informação, escassa na época. Naquele grupo que começava a enfrentar a vida adulta, a união se dava pela apreciação de bandas new wave, pós-punk, hip-hop e funk; discussões sobre literatura e, principalmente, pela junção de mentes inquietas em efervescência.

Do lado de fora, a cidade era um caos. Os índices de qualidade de vida, desemprego e violência não eram favoráveis, e o Estado de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto passava por um marasmo cultural, social e econômico. Nesse contexto, Recife viu nascer o manguebeat, movimento de contracultura que, por meio da mistura de ritmos, mostrava as desigualdades da região. Naquela altura, Pernambuco virava berço de uma figura que rompeu barreiras geográficas e apontou, em sua música, as injustiças sociais testemunhadas por todos. Era Chico Science.

Vinte anos após sua morte precoce, a memória de Francisco França continua presente. Apontado como o catalisador do manguebeat, Chico se tornou figura de associação imediata à cena. Hoje, no Recife, além de um memorial e uma estátua em sua homenagem, até um manguezal leva seu nome. “Ele foi um criador, um mestre, um artesão dos sons. Foi como Caetano e Gil na Tropicália, como João Gilberto na Bossa Nova, ou Erasmo e Roberto na Jovem Guarda. Aquele criador timoneiro que, sem estrelismo e com respeito às tradições, dirigiu o barco do manguebeat”, afirma Herom Vargas, autor de Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (Ateliê, 2007).

“Ele tinha essa capacidade de falar com o povo. Foi um grande líder, mesmo que não tivesse a intenção de ser”, afirma José Carlos Arcoverde, conhecido como Mabuse, o “ministro da tecnologia” do manguebeat. Era ele quem fazia alguns dos cartazes dos shows e das festas do movimento. “Ele tinha desenvoltura para colocar um autor como Josué de Castro como parte de um referencial simbólico para os moleques que estavam ouvindo as músicas. Depois de Chico, nunca vi mais nada igual”, diz o amigo.

Assim como o barco de Caetano e Gil levou Rita Lee e Tom Zé, a Bossa Nova de João Gilberto cresceu no apartamento de Nara Leão, e Wanderléa foi marca da Jovem Guarda com Roberto e Erasmo, Chico não estava sozinho. O manguebeat era encabeçado por todos aqueles jovens que ajudaram a criar uma revolução cultural. Mas, até alcançá-la, percorreram um longo caminho.

Manguetown

Caçula de quatro filhos, Science começou sua história com a música por meio do amor pela black music norte-americana e figuras como James Brown e Grandmaster Flash. Na escola, frequentou as poucas e únicas aulas de teoria musical que faria. Todas as suas composições se dariam com onomatopeias anotadas e repetidas para os músicos das bandas pelas quais passou. “Ele tinha uma inteligência pop muito aguçada e intuitiva, apesar de não ter a formalidade educacional. Pegava a orelha de um livro e captava aquilo que batia com o desejo das pessoas”, conta Hélder Aragão, o DJ Dolores, que Chico conheceu no período em que frequentava o grupo de break “Legião Hip Hop” com Jorge Dü Peixe, atual vocalista do Nação Zumbi.

Dolores, responsável pela identidade visual do manguebeat, havia chegado recentemente de Sergipe e seu apartamento logo se tornou o ponto de encontro dos estudantes, que ainda moravam com os pais. “Eu brinco que eu sou a Nara Leão do manguebeat. Tudo começou no meu apartamento, foi a música que uniu todo mundo.”

Eventualmente, todas as cabeças necessárias para iniciar um movimento estavam ali. Dü Peixe, amigo de infância e parceiro musical de Science; Fred 04, estudante de comunicação e criador da Mundo Livre S/A; Mabuse e Renato L., companheiros de Fred no programa “Décadas” na rádio universitária; Lúcio Maia e Alexandre Dengue, músicos da Orla Orbe e Loustal, bandas de Chico no fim da década de 1980. O grupo só crescia.

Com o que sobrava dos salários, era hora de colocar em prática o lema de “mudar o lugar ou mudar de lugar”, produzindo festas em uma cidade que só abria os bares para a música regional e heavy metal. A solução foi fazer parcerias com os cabarés e se aproveitar do ar boêmio da antiga zona portuária, que, no início da década de 1990, ainda era considerada decadente.

A proposta musical era quase que educativa. “Ninguém era DJ profissional, era uma programação que tocava de Sam Cooke a Talking Heads. A única coisa em comum na variação dos sons era o fato de eles não tocarem em outros lugares. Não tínhamos a obrigação de uma pista lotada. Era algo meio missionário”, brinca Fred Rodrigues Montenegro, o Fred 04.

Como resultado das festas, o grupo começou a formar um público que se identificava com o novo conceito. “De repente nos vimos fazendo parte da cidade, descobrimos a nossa voz. Ver que o que estávamos fazendo tinha efeito nos dava um certo senso de cidadania”, lembra Dolores, que começou sua carreira como DJ naqueles eventos.

Simultaneamente, Chico era apresentado pelo colega de trabalho Gilmar Bola 8 ao Lamento Negro, grupo social da comunidade de Peixinhos, em Olinda. A mistura de maracatu, coco de roda e samba-reggae chamou sua atenção. Nos ensaios, conheceu o percussionista Maureliano, que segundo o músico Pácua, amigo de Chico e cantor do Lamento Negro à época, foi quem executou as batidas que viriam a se tornar marca do Nação Zumbi. “Ele disse o que queria e Maureliano fez na hora. Chico foi a cabeça, e o Mau, a execução. Chico foi o cara que teve a sensibilidade de ver aquele som no gueto e reconhecer o potencial para espalhar pelo mundo.”

Com a batida na cabeça e percussionistas do Lamento Negro na banda, a Loustal de Lúcio Maia e Dü Peixe se tornava Chico Science & Lamento Negro e, posteriormente, Chico Science & Nação Zumbi. Fizeram sua estreia em 1991, em Olinda, com um som que era uma mistura de todas as referências do grupo: o rock, a black music e os ritmos regionais.

O conceito de som do mangue veio em seguida, em uma mesa de bar, com um empolgado Science planejando um evento coletivo que levasse as batidas para o resto do país. Pácua brinca que às vezes achava que Chico vinha do futuro. “Ele falava como se soubesse que ia dar certo, parecia um filósofo com aquele papo de mangue. No Brasil, os caras com visão são considerados loucos, quando na verdade são gênios”.

Jorge du Peixe e Chico Science em Nova York, 1995 (Reprodução)
Jorge du Peixe e Chico Science em Nova York, 1995 (Reprodução)

Choque na lama

A metáfora do mangue como um ecossistema produtivo e diverso que sobrevivia em uma cidade sem energia foi trabalhada coletivamente. Como jornalista, Fred decidiu reunir todas as ideias em um release, a fim de divulgar o festival de música idealizado por Chico, o “Viagem ao centro do mangue”.

Assim que foi recebido pela imprensa, em 1992, o “Caranguejos com cérebro” ganhou ares de manifesto e acabou se tornando um registro definitivo e incansavelmente reproduzido do nascimento de uma nova cena musical no Recife e no Brasil. “Eu quis passar o que a gente via: pessoas brilhantes indo embora depois de formadas e ninguém ficando no Recife para pensar em um projeto para a cidade”, afirma o líder da Mundo Livre S/A, uma das mais importantes bandas daquela cena.

Mabuse ainda se impressiona com a falta de intencionalidade na criação do manguebeat. “O papel do acaso nessa história é fantástico, porque o grande objetivo não era criar um movimento. A única intenção era a de conseguir viver de produção musical. Mas a metáfora usada foi muito feliz, fez todo o sentido”, diz o amigo de Chico.

Com ou sem intenção, o manifesto incitou uma onda que atingiu até outros segmentos. “Percebemos que, além da nossa pequena turma, outras pessoas na cidade, até da moda e do cinema, compartilhavam aquele desejo. O rótulo acabou tomando conta de qualquer coisa que se produzisse no Recife. Bandas de hardcore eram manguebeat, assim como bandas de hip-hop e forró”, lembra Dolores.

Ao mesmo tempo, a carreira de Science com o Nação Zumbi deslanchou. Em 1994, o grupo lançou Da lama ao caos, seu primeiro álbum, pela Sony Music. Gravado no Rio de Janeiro e produzido por Liminha, o disco não teve o espaço esperado nas rádios brasileiras. A banda, no entanto, saiu em uma turnê internacional que passou pelos Estados Unidos e Europa. Os shows no exterior se repetiram após o lançamento de Afrociberdelia, em 1996. Produzido por Eduardo BiD, teve melhor desempenho que o primeiro e participação de convidados como Gilberto Gil e Marcelo D2. Posteriormente, os dois álbuns foram incluídos na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da revista Rolling Stone, em uma votação feita com jornalistas, produtores e estudiosos.

O manguebeat se espalhava pelo mundo ao mesmo tempo que mudava radicalmente a cultura pernambucana, tornando-a mais democrática. “A música passou a ser uma plataforma de crítica à cidade, mas também de valorização do universo do trabalhador, da cultura negra, periférica. A cultura pernambucana sempre foi conservadora e elitista. O mangue rompe com esse padrão”, afirma a socióloga e estudiosa do movimento Carolina Leão.

Para a também socióloga Paula Tesser, Science teve função primordial nesse sentido. “Ele propôs, através do riso, a invenção do brasileiro que, mesmo estando abandonado à sua sorte, deve reagir, transformando sua tristeza em diversão musical”, diz.

Longa vida ao groove

Em um período de férias no auge da banda, em fevereiro de 1997, o carro de Chico Science se chocou contra um poste no trecho entre Recife e Olinda, e o músico não resistiu. Com o impacto da perda, Fred 04 e Renato L. escreveram um novo manifesto intitulado “Quanto vale uma vida”, que relembra a intensa produção cultural dos cinco anos anteriores, a importância do cantor e a necessidade de o Nação Zumbi continuar existindo, uma ideia unânime entre os membros do movimento. O grupo segue ativo até hoje, com Jorge Dü Peixe no vocal.

Para os mangueboys, Chico foi essencial na consolidação do manguebeat e, com sua energia, era a representação perfeita daqueles ideais. “Tantas coisas mudaram no planeta e parece que ele já sabia de tudo”, lembra o músico Otto, que foi percussionista da primeira formação do Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A. “Chico está nos cordões dos mestres da sabedoria popular, é composto dos sonhos pernambucanos, dos versos proféticos e das rimas do MC. O Brasil conheceu uma lenda do rock, do rap e do maracatu. Tem gente que faz tanta coisa em tão pouco tempo na terra”, diz.

Zero Quatro e Dolores destacam o espírito festivo e incansável do compositor. “Ele não se conformava com as coisas paradas. Podia estar na quarta pior cidade do mundo, mas, se precisasse mover uma montanha pra fazer uma festa, ele fazia. Chico não ia se divertir pela metade se podia fazer isso 100% do tempo. Estar com ele sempre era algo rico”, afirma Fred. “Era um entusiasmo absolutamente contagiante. As pessoas tendem a ser muito pessimistas com as coisas, mas ele já chegava dizendo que ia dar certo, convencendo todo mundo a se envolver”, conta o DJ.

E, de fato, convenceu. Em 2009, o manguebeat de Chico, Fred 04, Dü Peixe, Mabuse, Renato L., Lúcio Maia, Dengue e tantas outras pessoas se tornou patrimônio imaterial de Pernambuco. As crianças aprendem sobre a importância do movimento e de Science nas escolas. No Recife e em Olinda, artistas ligados ao manguebeat levam o legado e as ideias de Chico e seus companheiros para as novas gerações por meio de ONGs e trabalhos sociais para crianças e adolescentes. O movimento, assim como a relevância de Chico Science, segue cheio de vida.

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