Chama incontida
Clarice entre as amigas Nélida Piñon (à esquerda) e Marly de Oliveira (à direita), Rio de Janeiro, 1975 (Reprodução)
Lúcio disse, certa vez, à Clarice que ela não tivesse medo do futuro porque ela era um ser com a chama da vida. Clarice não se convenceu e depositou no amigo a incumbência de ensiná-la a ter a chama da vida. Esse momento na história da amizade desses dois escritores, relatado por Clarice em uma crônica, mostra a admiração que um tinha pelo outro.
Foi na redação da Agência Nacional que a jovem jornalista Clarice Lispector entrou no mundo literário, pelas mãos de seu colega de redação, o romancista e poeta Lúcio Cardoso, dotado de uma personalidade enigmática e sedutora e de uma excepcional beleza. Clarice não resistiu aos seus encantos e percebeu que Lúcio era um mundo no qual ela gostaria de viver. “Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de ‘vida apaixonante’. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado.” A parceria amorosa não se concretizou, mas os laços da amizade possibilitaram a descoberta de inúmeras afinidades. Lúcio e Clarice eram daqueles tipos de escritores que escreviam movidos por uma exigência íntima, da qual não podiam escapar. Para eles, viver e criar eram sinônimos.
Lúcio falava-lhe de suas preferências literárias: Morgan, Julien Green, Octavio de Faria, Cornelio Pena; Clarice dava os seus primeiros passos na literatura escrevendo pequenos contos que eram publicados esparsamente nos periódicos. Ela começava a fazer anotações sem saber que preparava o seu primeiro romance. Um dia, ao mostrar a Lúcio uma significativa quantidade de notas, teve a confirmação de que o primeiro livro estava pronto. O título, Perto do coração selvagem, foi dado por Lúcio, ao ouvir de Clarice que lera em Joyce uma frase da qual gostara muito. Após a publicação do livro, Clarice, recém-casada, mudou-se para a Europa com o marido diplomata. Nessa fase, a amizade sobreviveu por meio das cartas. Clarice esperava ansiosamente as de Lúcio; para a infelicidade dela, um preguiçoso missivista. De vez em quando ela se queixava; ele, por sua vez, se justificava dizendo: “Não há nenhuma pequena tragédia: sou realmente muito seu amigo e sentiria muito se você não acreditasse nisto. E se nem sempre tenho escrito cartas, acho que tenho por outros meios procurado provar em tudo, não?”. Com ele falava do seu trabalho, pedia conselhos e, até mesmo, editor, como aconteceu quando ela terminou de escrever O lustre. Sempre atenta à publicação dos livros de Lúcio, gostava de comentar as suas impressões, mostrava-se uma leitora voraz e interessada: “Gostei de Inácio com tanta curiosidade e tanto interesse como dos seus outros.”.
Difícil precisar quem exerceu o papel de discípulo e quem o de mestre, e até que ponto as influências dessa relação repercutiram em seus trabalhos. Em todos os seus depoimentos, Clarice assumiu o papel de discípula. O mundo de Lúcio sempre foi muito fascinante para ela: essa alma extremamente inquieta, atormentada, que escrevia, segundo ela, “por uma compulsão eterna gloriosa”, nunca deixou que se apagasse a chama do poder criativo. Mesmo diante das fatalidades, como no final de sua vida, acometido por um derrame que o impossibilitou de escrever e falar: “ele, que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir”, passou a se expressar por meio da pintura. A postura de Clarice diante do ato de escrever era muito próxima da de Lúcio. O fato de ele ter exercido o papel de seu mestre literário, no início de sua carreira, leva a questionamentos sobre as possíveis influências. No entanto, parece-me que a maior das influências se deu no plano dos afetos. Ouvindo os depoimentos de seus amigos a impressão que me ficou é a de um encontro de almas gêmeas. De pessoas que se descobriram muito próximas no ver, no sentir, no viver. Não me parece uma coincidência que tanto Clarice quanto Lúcio tenham sobrevivido a momentos muito trágicos em suas vidas que interferiram no seu processo criativo. Clarice, mutilada pelo incêndio que quase lhe amputou a mão direita, a mão que escrevia, mas que não deixou de escrever, pois seria impossível deixar de fazê-lo. E Lúcio, que depois do derrame passou a pintar. E o que dizer de ambos terem escolhido a imagem do fogo ao falarem o que pensavam um do outro? “Em toda obra dessa grande escritora alguma coisa íntima está sempre queimando: suas luzes nos chegam variadas e exatas, mas são luzes de um incêndio que está sendo continuamente elaborado por trás de sua contensão. Esse fogo é o segredo íntimo e derradeiro de Clarice: é o seu segredo de mulher e escritora.” Já Clarice, ao lembrar-se de Lúcio, depois de sua morte, escreveu numa crônica: “Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era sem limite para o seu galope”. Essa busca incessante e ilimitada do sentido da vida, a coragem de colocarem toda a sua alma naquilo que escreveram, sempre com essa “coisa íntima que está sempre queimando” os uniu sempre e me fez, também, descobrir, um dia, o que é a tal chama da vida.
Teresa Montero, mestre em estudos de literatura e doutora em Literatura Brasileira pela PUC-RJ, é autora da biografia de Clarice Lispector, Eu sou uma pergunta (Rocco), e organizadora de Correspondências (idem), reunião de 129 cartas da autora