César atravessou a história
Depois de Samuel Beckett e Harold Pinter, o diretor Roberto Alvim lança-se à interlocução com mais um grande nome da dramaturgia universal, senão o maior deles, propondo uma leitura tão personalizada quanto vigorosa da mais conhecida entre as tragédias romanas escritas por William Shakespeare, Júlio César. Com estreia prevista para este mês de julho no Sesc Santo André, em São Paulo, Caesar – como construir um Império reúne em cena somente dois atores, Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia, e um pianista, o professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP Vladimir Safatle, autor da trilha sonora do espetáculo, que será executada por ele próprio no palco.
Embora em meados de junho (quando a revista CULT esteve presente a três ensaios realizados pouco antes do fechamento desta edição) ainda se tratasse de um trabalho em franco desenvolvimento, já era possível identificar ali as principais linhas de força que nutrem o projeto, cujas potencialidades são inúmeras não somente para a esfera do próprio teatro – visto Alvim ser hoje um dos nossos diretores mais ativos e industriosos –, como também para o ambiente sociocultural mais amplo, uma vez que a encenação pretende reconduzir ao trono das reflexões mais agudas uma velha senhora de nobre destino e honroso caráter, hoje vilipendiada e atacada por toda sorte de inimigos: a Política. Enquanto a entronização e o destronamento de indivíduos demasiadamente humanos são a mola propulsora das tragédias de Shakespeare, a ascensão e a queda dos mais elevados princípios políticos – e seu iniludível caráter trágico – é que regem a mais recente criação de Roberto Alvim.
A iniciativa do diretor está filiada à tradição das reinvenções cênicas de Júlio César, das quais alguns notórios exemplos são a montagem norte-americana de Orson Welles em 1937, aludindo ao fascismo que tomava conta da Europa (implícito já em seu subtítulo, A morte de um ditador); a encenação inglesa de Ben Naylor em 2004, fazendo referência à queda de Saddam Hussein; e a versão cinematográfica dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, de 2012, que documenta a preparação da peça por internos da prisão italiana de Rebibbia, em Roma.
Roberto Alvim esvaziou o texto original do encadeamento de ações variadas, apresentadas em ritmo intenso, cujo objetivo é tomar de assalto o espectador – método por meio do qual Shakespeare confere à própria História o protagonismo da tragédia – e reduziu os inúmeros focos de conflito a um embate emocional e discursivo que ocorre ora entre dois personagens, somente; ora, entre um personagem solitário e sua própria consciência. Duas das doze cenas que se sucedem na adaptação giram em torno apenas de Brutus; outra, de Marco Antônio. As nove restantes opõem César a um Profeta, Brutus a Cássio, Cícero a Brutus, César a Brutus, César a seus conspiradores, Marco Antônio a Otávio, Brutus a um Poeta. Não se trata mais de saber se o herói trágico da peça é o cônsul romano que cortejou a tirania ou seu mais íntimo e ardoroso oponente, defensor da República. O verdadeiro protagonista aqui é o dialogismo que está na base da genuína atividade política, entendida como uma arte suscetível a embates, confrontos, rupturas, perplexidades, paixões… Elementos altamente dramáticos que a farsa, cinicamente, integra ao imobilismo do Mundo enquanto a tragédia expõe como forças inconciliáveis, vividas sob o signo da inevitabilidade do Caos.
O projeto se vale da pergunta persuasiva que sempre se fez em torno da peça – “Brutus estava certo ou errado ao assassinar César?” –, mas não se esgota no exame retórico da questão. Ao mergulhar constantemente os dois intérpretes nas sombras, levando-os à dilaceração por meio ora da exasperação, ora da ruminação tartamudeante de palavras e sentimentos, a encenação recusa o didatismo racionalista, luminoso, e prioriza a visão antropológica soturna que Shakespeare tinha da política, identificada por René Girard. Júlio César é, aqui, um estudo sobre o processo de violência e o mecanismo do bode expiatório que sustentam o mundo do poder. As duas figuras em cena, atendam pelos nomes que tiverem, encarnam sempre “duplos equivalentes em conflito”, de cujo jogo de reciprocidade participa acriticamente a turba. Em Shakespeare, teatro da inveja, Girard afirma: “[…] cada palavra dita até pelo mais insignificante personagem pode ser simultaneamente verdadeira para todas as partes envolvidas – sujeitos, objetos e mediadores. A liberdade está morta e, em última instância, não faz diferença se as pessoas seguem Brutus ou Marco Antônio. Podendo escolher, elas preferem o melhor demagogo, mas em sua ausência vão seguir qualquer um”.
Não se pode negligenciar em momento algum o papel que a música cumpre na proposta da encenação, constituindo um poderoso elemento artístico que incide não só sobre a cena, empiricamente, mas também sobre a própria natureza do discurso teatral. A música de Vladimir Safatle reduplica a fala dos atores, ao fazer com que as teclas do piano e os sons percussivos tirados do instrumento falem tanto quanto as palavras empregadas por Shakespeare e por Alvim. Se o discurso teatral é, para Anne Ubersfeld, uma interrogação sobre o estatuto da fala (“Quem fala a quem? E em que condições se pode falar?”), o trabalho de Safatle propõe aos atores em cena um intrincado jogo de sismografia musical, como ele mesmo define. Em se tratando de uma tragédia, gênero para o qual a noção de sublime é inconteste, a trilha sonora é a expressão pura do que irrompe em cena quando as palavras se calam. Mas em alguns momentos também suscita certa aura de melancolia, envolvendo os personagens na indeterminação dos afetos que por meio das palavras eles pensam expressar. Não menos importante é o fato de o compositor e instrumentista em cena ser ninguém menos do que um dos filósofos mais atuantes no cenário intelectual brasileiro, destacando-se por sua aguda visão política, resistente às costumeiras pressões pelo espetáculo. Ir ao teatro e deparar com um pianista filosofando pelos dedos constitui uma experiência política das mais desejáveis, pela exposição aberta do caráter de incomunicabilidade que o piano deste filósofo-artista, tal como uma aporia, quer comunicar.
A despeito da engenhosidade das ideias e da concretude das formas adotadas em cena, o projeto de montar Shakespeare em versão concisa como esta depende em grande medida do trabalho dos atores. Durante os idos de junho, como seria de se esperar, então, Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia mostravam-se nos ensaios intérpretes desarmados de qualquer escrúpulo e segurança, dispostos a enfrentar o universo do bardo inglês por meio da busca de uma energia “pulsional” (na acepção do diretor) rude e irrefreável, bastante cara à atmosfera que se pretende atingir. Chamou a atenção o fato de os atores não estarem escudados em modelos de interpretação, tampouco quererem afetar certa sabedoria a respeito do que estavam fazendo. Ambos se expunham abertamente àquilo a que as palavras do texto, as notas do piano e as orientações da direção procuravam conduzi-los. Embora por meio de técnicas diferentes (Caco investigando variadas formas corporais para sustentar a profundidade de suas emoções, Carmo entregando-se a sentimentos mais desabridos e lancinantes), a dupla tende a funcionar muito bem, palmilhando com bons resultados a encosta do trágico, em cujo cume reside o pathos a que todo bom intérprete em algum momento de sua carreira se dispõe a atingir.
Em uma época de atuações políticas tão movediças e insidiosas como a nossa, o mais recente trabalho de Roberto Alvim pode convidar o espectador a uma portentosa reflexão. Cumprindo sua temporada inicial em uma das cidades do Estado de São Paulo que viu nascer a experiência sindical, hoje, lacerada pela adoção de uma tática imperial simultânea à defesa do republicanismo, a montagem trata do entendimento de um processo político obtido a duras penas, conforme identificado por Hegel em sua Filosofia da história: “[…] os mais nobres homens de Roma julgavam que o domínio de César era algo ocasional, e que toda a situação estaria ligada à sua individualidade; assim pensavam Cícero, Brutus e Cássio. Acreditavam que isso estaria à altura de um indivíduo; consequentemente a república reinava novamente. Perturbados por esse estranho engano, Brutus, um indivíduo deveras nobre, e Cássio, mais enérgico que Cícero, mataram o homem cujas virtudes eles estimavam. Porém, imediatamente depois, mostrou-se que somente um chefe poderia dirigir o Estado romano, e os romanos tiveram que acreditar nisso, pois uma revolução do Estado só é aceita na opinião dos homens quando se repete. Assim é que Napoleão foi vencido duas vezes, e por duas vezes os Bourbons foram expulsos. Pela repetição, o que no início parecia só ocasional e possível torna-se realidade e é comprovado”.
Em Caesar – como construir um Império, dinheiro, poder e violência constituem o solo instável por onde os personagens caminham e sobre o qual irão morrer como espelhos uns dos outros, mas também preservando suas diferenças. “[…] as coisas, inclusive os sujeitos humanos, devem se constituir mutuamente apenas para serem elas mesmas”, afirma Terry Eagleton a respeito do aspecto transicional das tragédias shakespearianas. César, Brutus, Cássio e Cícero precisam morrer. Marco Antônio, um pouco mais tarde, também. Porque a envergadura trágica de que se servem William Shakespeare e Roberto Alvim está assentada sobre a ideia de que a Política é o produto da fé cética que devotamos não às velhas dicotomias do mundo, mas sim a uma terceira forma que se alimenta delas e as ultrapassa, por não estar plenamente desenvolvida, posto ser uma forma indiferenciada que ainda precisa nascer.
*** Texto originalmente publicado, em julho de 2015, na edição 203 da revista CULT ***
CAESAR – como construir um Império
Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000)
Quando: de 18/09 a 25/10/15; Sextas-feiras e sábados às 21 horas e domingos às 20 horas.
Quanto: R$20 e R$10 (meia)
Info.: (11) 3397-4002
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