CARTA EM APOIO AO MOVIMENTO PASSE LIVRE

CARTA EM APOIO AO MOVIMENTO PASSE LIVRE

E a todos aqueles que se uniram às manifestações do movimento nas grandes cidades do Brasil;

a todos os que, nas últimas manifestações, caminharam pelas ruas desejando uma São Paulo livre de violência;

a todos os que desejam uma cidade de São Paulo de livre trânsito, em que o direito de ir e vir seja garantido ética e politicamente,

Gostaria de manifestar por meio desta carta o meu apoio ao Movimento Passe Livre e a todos os que com ele estão ligados por laços de respeito. Penso que o melhor modo de ver este movimento é olhar para o lugar ao qual ele aponta. Trata-se de um movimento pela liberdade e pela dignidade das pessoas usuárias de transporte público no contexto em que este mesmo transporte tornou-se aparelho ideológico do Estado e do Poder econômico e, deste modo, dispositivo de violência contra o povo. O transporte não tem servido a pessoas que dele fazem uso. Antes as pessoas é que tem sido instrumentalizadas e objetificadas pelo transporte manipulado pelos poderes vigentes.

Em última instância, o Movimento Passe Livre dirige-se, conscientemente ou não, à refundação do sentido da esfera pública cujo principal emblema é o lugar ao qual o movimento aponta: a rua.

As manifestações com as quais temos convivido nos últimos dias devem, portanto, nos fazer refletir sobre o sentido das ruas. Nas grandes cidades, as ruas foram transformadas em espaços proibidos. Quem, no contexto paulistano, não tem carro (ou não tem um grande carro), ou dinheiro para andar de táxi, quem anda de motocicleta, bicicleta ou a pé, ônibus, trem ou metrô, corre riscos de violência no trânsito, ele mesmo “organizado” para a humilhação de todos contra todos. Por outro lado, o transporte público foi raramente alvo de questionamento por parte da população que o utiliza segundo sua necessidade e sua capacidade de suportar o estado das coisas. A pergunta que o movimento nos coloca refere-se ao sentido do livre trânsito no espaço público. Não apenas de um trânsito em estado puro e simples, mas do trânsito para o trabalho e para a casa de quem mora nas partes mais marginais da cidade e é através de seu meio de transporte também marginalizado e aviltado: horas (2, 3, 4, 5 ou mais) dentro de ônibus, metrô e trem, pagando um valor que não corresponde ao seu salário em um mundo do trabalho cada vez menos protegido jurídica e socialmente. A escravidão parece ainda ser a regra que deve ser aceita e, caso não seja, a punição surge como força bruta policial. O Estado do salve-se-quem-puder não é o da dignidade humana.

O povo brasileiro, tantas vezes tachado de acomodado e manso por  ideólogos, ventríloquos de uma antropologia vulgar e inconsequente,  mostra-se, neste momento, muito forte, nada dócil e acomodado. Tenho a impressão que o velho sentimento de humilhação fomentado pelo sistema econômico e político e seus sacerdotes sempre prontos ao discurso, aos poucos transforma-se em sentimento e prática de revolta.

A Mídia tradicional é, neste momento, a noiva da Polícia no casamento patrocinado pelo Estado. A comida desta união festiva é o cadáver da democracia. O povo, que os discursos fascistas tratam como “burro” não parece estar disposto, desta vez, a comer o pasto oferecido como jantar. Enquanto meios de comunicação de massa optam pelo rebaixamento dos manifestantes a “baderneiros”, juntando-se à violência da Polícia, com a qual partilham o poder de reprimir e enganar pelo discurso/violência, precisamos olhar muito bem para entender o sentido da contraforça que surge nas ruas, do gesto dos jovens, dos estudantes que sempre nos mostram que sonhar com um mundo mais justo é um dever ético. As velhas gerações tem que aprender com as novas e, quem sabe, saindo para as ruas, possam superar o sono dogmático que as faz parecerem mortas.

A Mídia e a Polícia no estado em que se acham são a morte da democracia. E, no entanto, jornalistas e policiais, por burrice ou interesse, maldade ou desfaçatez, estão do lado errado. São vítimas que servem aos próprios algozes. Mas não pensemos que não possam ser diferentes.  Aquele que respeita o outro sempre sonha que ele possa aprender, mudar, se tornar mais inteligente. Tambem os policiais e os jornalistas – neste momento, alguns se mostram verdadeiros canalhas – também poderão acordar do pesadelo ao qual servem. Um básico esforço ético-político pode salvar alguma vida que ainda lhes reste.

Quando falamos em “esfera pública” estamos falando do sentido complexo do “político” enquanto ele foi achatado pela economia transformada em mera avareza, a do regime de exploração e dominação que chamamos de “capitalismo”. Este nome incomoda muita gente e não deve ser usado apenas para criar um “responsável” pela desgraça de uma condição humana – sempre muito abstrata quando se trata de soluções urgentes -, mas ao mesmo tempo, não podemos fingir que o estado do transporte “público” não reflete uma ideologia em que o povo é tratado como “rebanho”. Quem anda de metrô no horário do pico em São Paulo, sente que foi transformado em “gado” no grande matadouro do capitalismo que domina a cidade. Se o povo é inteligente, em algum momento pode incomodar-se com o modo como é tratado e manifestar-se com veemência contra este estado de coisas.

Quem poderá condenar a atitude daqueles que se indignam, que atire a primeira pedra.

Quem nunca disse em circunstância impressionantes: “como o povo não quebra tudo?” que atire a primeira pedra.

O Movimento Passe Livre, como qualquer outro movimento, tem portanto, muito a nos dizer. O movimento reivindica a tomada de posse do transporte público, o que, como qualquer reivindicação, é algo legítimo em uma democracia. A pergunta elementar precisa ser colocada: se as coisas não vão bem em escala social, devemos nos contentar, enquanto cidadãos, com o que nos é oferecido?

Os comentários acima, em que pese seu caráter de urgência, mostram o desejo de uma discussão mais essencial.  O debate precisa acontecer com intenção pacífica e respeitosa da parte de todos, mas isto precisa ser construído no sentido sugerido pelo movimento, nas mãos dos jovens portando flores contra armas policiais que não fazem ideia do que seja um diálogo real.

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