Um prefácio, um aplauso, um abraço

Um prefácio, um aplauso, um abraço
O crítico literário Carlos Felipe Moisés (Divulgação)

 

Era abril de 2015 quando recebi uma mensagem do poeta Carlos Felipe Moisés (1942-2017) dizendo que havia preparado uma segunda edição, revista e ampliada, para seu livro Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia e do poeta (Escrituras, 2007). Segundo ele, com sua alta exigência, dos livros sobre poesia que escreveu, era o que mais “merecia ficar”. Não concordei com ele, mas aceitei o surpreendente convite para escrever um prefácio para a nova edição, a que ele acrescentara dois novos capítulos, além de aprofundar um ou outro aspecto dos textos da primeira edição.

Levei mais de dois meses para me desincumbir da tarefa – a responsabilidade era muito grande e me embaraçava tanto quanto minha agenda. Não sabia por onde entrar naquela floresta de questões que Carlão, com uma leveza incrível, conseguia enfeixar em seus artigos críticos. E muito menos sabia como sair dali com um prefácio à altura do livro. Quase toda semana mandava para ele um e-mail pedindo desculpas pelo atraso (além de comentar a campanha do Corinthians e combinar pizzas na Urca). Quando entreguei o texto, que eu ainda considerava como primeira versão, ele, generoso como sempre, disse que havia gostado muito e que não me deixaria mexer em nada. Assim ficou.

O Poesia & Utopia de 2007 era o ponto culminante de uma reflexão que vinha de longe, passando por A multiplicação do real (1970), Poesia e realidade (1977), Poética da rebeldia (1983), Poesia não é difícil (1996) e O desconcerto do mundo (2001). No entanto, quando Carlos Felipe organizou a segunda edição, sua reflexão já havia dado outras voltas incríveis, nos livros Poesia faz pensar (2011), Tradição & ruptura (2012) e Frente & verso (2014). E todas essas reflexões se enfeixam no novo Poesia & Utopia, mas maturidade, em Carlos Felipe, nunca era ponto de chegada: era novo ponto de partida.

Não duvido que, de 2015 para cá, tenha reescrito ou ampliado ainda mais o livro (por mais que, desde então, tenha enfrentado justamente o período mais atribulado de sua vida pessoal). Nem perguntei muitas vezes para ele qual o destino editorial daquela reedição, mas me disse que estava procurando um editor, entre vários outros projetos em andamento. Sempre e sempre. Espero que o livro venha a público em breve, mas publico aqui o prefácio que pude fazer, como elogio e homenagem ao Carlos Felipe e também como um tímido agradecimento diante do tanto que ele deu a seus leitores. Ter podido ser um destes, além de seu amigo, é motivo de imensurável gratidão.

Prefácio ao POESIA & UTOPIA de Carlos Felipe Moisés

Recebo de Carlos Felipe Moisés a missão – dificílima como toda missão tão honrosa – de dialogar, num prefácio, com as ideias do livro que agora está nas mãos dos leitores. Passo semanas sobre os originais e hesito sobre quais os principais aspectos da reflexão trazida neste livro que deveriam ser colocados em destaque. Hesito muito, mas a resposta estava na sua face mais evidente. Sim: na capa.

Poesia & Utopia: o encontro dessas duas palavras na capa do livro já é, por si só, um evento. E uma provocação. Nessas duas palavras está concentrado, de alguma maneira, tudo o que mais precisamos hoje em dia. Ao pronunciá-las e escrever sob seu manto, Carlos Felipe congrega toda a reflexão sobre poesia e sociedade que o absorveu durante seus mais de 70 anos de vida, a maior parte deles dedicada a estudar, lecionar, escrever, debater, traduzir, enfim, fazer poesia em todos os sentidos.

O que temos em mãos agora é a segunda edição – revista e ampliada – de Poesia & Utopia: dentro do projeto sólido que a obra já apresentava na edição anterior, de 2007, o autor encaixou novas reflexões que apenas confirmam o potencial multiplicador da forma como sua inteligência investe nas grandes questões que, de Platão à era das redes sociais, rondam persistentemente a escrita e a leitura de poesia.

Impressiona saber que este livro, repleto de reflexões tão profundas, densas, assentadas sobre um vasto conhecimento da história, da teoria e das grandes e pequenas obras da poesia de várias épocas e culturas, passa longe de se apresentar como o ponto final – ou estável – de uma “carreira”. Pelo contrário, Carlos Felipe vem aqui justamente usar todo seu conhecimento para impedir que cicatrize qualquer uma dessas grandes questões que enfrenta no livro. E se traz algum conforto ao leitor é o de mostrar-lhe que tais questões, antes de serem uma etapa a ser vencida durante o amadurecimento como leitor e/ou escritor, são próprias da poesia em seu movimento na história – no passado, no presente e no futuro. Manter tais questões vivas talvez seja a razão de ser da poesia e dos poetas em cada contexto em que surgem e atuam.

Lembro-me de Murilo Mendes, autor de um livro chamado Poesia Liberdade (1974), afirmar que entre essas duas palavras não caberia nem mesmo uma vírgula. Entre as palavras do título deste livro de Carlos Felipe talvez fosse conveniente suprimir qualquer sinal intermediário, mas a conjunção pela qual optou o autor nos remete à necessidade de promover esse encontro-enlace entre poesia & utopia, condição tanto para uma quanto para a outra se realizarem em nossas vidas. (A propósito, o símbolo que conhecemos como “e comercial”, em determinadas famílias de fontes, tem mesmo a aparência de uma fita solta e esvoaçante aguardando um laço – ou não.)

Ao repor, por perspectivas variadas, a questão-chave do livro – “Para que serve a poesia?” –, Carlos Felipe provoca o leitor a acompanhar os labirintos de um raciocínio que é antes fiel à poesia que ao intento aparente de descobrir sua função “prática” no mundo em que vivemos – e mesmo noutros mundos possíveis. A pergunta, portanto, serve antes como um instrumento para desvendar ainda mais poesia do que respostas diante da constatação recorrente de que submeter a poesia a uma função – ainda que esta possa enriquecê-la aos olhos de quem não liga para poesia – é antes negá-la do que afirmá-la. É antes afastá-la do que enlaçá-la à necessária utopia.

Aliás, Carlos Felipe não coloca em primeiro plano a questão complementar que seu leitor talvez busque: “Para que serve a utopia?”. E não é sem propósito ou por descuido. Ao associar poesia e utopia na capa do livro, antecipando ao leitor o tipo de abraço que pode encontrar nas páginas deste livro, o autor já está nos ajudando a (não) responder à questão sobre a “utilidade” da poesia. Posso dizer: o que aprendemos nas páginas deste livro é que a poesia, se serve para algo, é para nos alimentar de utopia(s). E é por isso que esta resposta não pode se apresentar como uma “solução” da questão, porque dizer que “a poesia serve à utopia” está longe de ser a pacificação de nossos conflitos. Pelo contrário: é o reinício deles, ainda mais intensos, porque agora não nos contenta mais descobrir a função de um objeto artístico feito de palavras, mas sim investigar que energias nele são capazes de alterar a forma como vivemos.

Nas páginas e páginas de convite à meditação – e à poesia, claro, e à utopia, também – que se seguem estamos diante de nossas mais indisfarçáveis fraturas, porque cada linha aqui nos acusa de alimentar uma vida em que, estranhamente, é necessário perguntar qual é o lugar da poesia e, mais ainda, uma vida em que o presente só se justifica pelo quanto sejamos capazes de fazer para dele se afastar, ou seja, pelo quanto de utopia sejamos capazes de cultivar – contra o que somos.

Carlos Felipe, com a elegância dos grandes, não vem dar broncas ou opor o “alto nível” da poesia a um mundo menor em que nos desencaminhamos. Suas reflexões antes se ocupam de mostrar que dedicar-se à poesia é algo como escavar, no mundo em que estamos, o mundo que queremos: “Quanto mais certeza tivermos de que só nos resta a Utopia, mais a Poesia insistirá em alimentar o espírito que nos move”.

No seu mais recente livro de poemas, Disjecta membra (Lumme, 2014), Carlos Felipe dedica a seção final a uma série de aforismos sob os austeros títulos “O poeta”, “O poema” e “A poesia”, que ecoam muito da sabedoria que é revirada em Poesia & Utopia. Se o aforismo, isoladamente considerado, dá um peso excessivo à “verdade” que enuncia, basta passear pelo conjunto deles para perceber que, lá e cá, Carlos Felipe é antes um “perguntador” que um “respondedor”, antes perturbador que pacificador. Num desses aforismos, a propósito, o autor crava: “A verdadeira vida dispensa a poesia”. E não temos como evitar a pergunta: o que seria a vida verdadeira? E por que chegar a ela dispensaria a poesia? A poesia, então, é uma forma de estarmos ligados não à vida (falsa) em que estamos, mas a uma vida (a verdadeira) que pretendemos?

Admiramos as pessoas que passam a vida fazendo poesia, mas é provável que tenhamos ainda mais o que admirar nas pessoas que passam a vida fazendo perguntas. Ou naquelas que, com sua poesia, nos levam a fazer mais e mais perguntas. Carlos Felipe Moisés, com seus livros e com seu exemplo, é a cada dia mais alguém que leva seus leitores e alunos (não há palavra melhor para dizer como me sinto diante dessa figura que dedicou toda sua vida a ler e escrever poesia, pensando e fazendo pensar a partir dela) muito além do ponto em que se encontravam antes de conhecê-lo. E não é porque os carrega de um canto a outro, mas porque os convida a passear por lugares para os quais não tem mapa, talvez apenas o tíquete raro da poesia.

Se a utopia é o lugar que (ainda) não existe e o mundo que queremos e devemos criar, saímos deste livro absolutamente tomados pela urgência de mergulhar noutras tantas páginas de poesia até que a vida se revele, delas para fora, mais digna. Ou a mergulhar nas fraturas da vida sem receio de se afogar na poesia que pode haver por lá. Encorajar-nos a tanto é o que faz de Poesia & Utopia um livro de livros, ocupando aquele raro lugar na estante em que ficam os que gostaríamos não apenas de ter escrito, mas principalmente de estar à altura da entrega que suas palavras merecem.

TARSO DE MELO (1976) é poeta, autor de Poemas 1999-2014 (Dobradura, E-galáxia, 2014) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio, Dobradura, 2017).

(1) Comentário

  1. Muito bom o prefácio e a nota introdutória. O Tarso traça um desenho fiel do que foi a trajetória desse homem das letras. Lembro que nos anos 60, ainda muito jovem, Carlos já colaborava no circunspecto suplemento literário do Estadão. Eu o conheci nessa época, pois ele era muito amigo do Lindolf Bell, meu parceiro de Catequese Poética. Já naquele período ele mostrava um envolvimento profundo com as questões relacionadas ao fenômeno poético. E embora fosse bastante acessível e aberto às múltiplas vozes e visões, eu me sentia constrangido e intimidado por seus artigos publicados no SL. Só bem mais tarde, há uns 15 anos, é que nos aproximamos e nos tornamos amigos. Sinto que foi um privilégio desfrutar, tantas vezes, de sua companhia sempre instigante, autêntica e voltada para as grandes questões da vida humana. Sou grato por nossas conversas, por sua sinceridade e por essa capacidade, rara, de transformar coisas difíceis e complexas, como o fenômeno poético, em palavras simples, claras e acessíveis a qualquer um.

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