Cancionistas invisíveis
Ao longo dos anos, a força do talento dos novos cancionistas não diminuiu. Eles estão espalhados pelo Brasil, prontos para serem descobertos
Não nos preocupemos com a canção. Ela tem a idade das culturas humanas e certamente sobreviverá a todos nós. Impregnada nas línguas modernas, do ocidente e do oriente, a canção é mais antiga que o latim, o grego e o sânscrito. Onde houve língua e vida comunitária, houve canção. Enquanto houver seres falantes, haverá cancionistas convertendo suas falas em canto. Diante disso, adaptar-se à era digital é apenas um detalhe.
Uma canção renasce toda vez que se cria uma nova relação entre melodia e letra. É semelhante ao que fazemos em nossa fala cotidiana, mas com uma diferença essencial: esta pode ser descartada depois do uso, aquela não. O casamento entre melodia e letra é para sempre. Por esse motivo, existem meios de fixação melódica, muito empregados pelos compositores, que convertem impulsos entoativos em forma musical adequada para a condução da letra.
Trata-se, portanto, de uma habilidade específica que muitas vezes é confundida com formação musical ou literária. Basta repararmos que são raros os músicos, como Tom Jobim, e os literatos, como Vinicius de Moraes, que exibem vasto repertório de primeira linha. Normalmente, nossos grandes autores, tão ou mais prolíficos que esses, passam ao largo das áreas letradas e nem por isso compõem com menos freqüência ou com menos requinte técnico, muito pelo contrário. Todos eles, incluindo os criadores de “Garota de Ipanema”, chegaram a uma produção de excelência não só por evidente vocação, mas, sobretudo, porque se entregaram com afinco ao ofício de fazer canção. Enfim, ser um bom músico ou um bom poeta não é requisito para ser um bom cancionista. Há um “artesanato” específico para se criar boas relações entre melodia e letra.
Com o surgimento, no século passado, da gravação e da difusão em massa pelo rádio e mais tarde pela televisão, a canção revelou-se a linguagem mais apropriada para os novos tempos. Era breve, com trechos recorrentes de fácil memorização, estimulava a dança espontânea, caracterizava quadros passionais, transmitia recados, comentava o cotidiano e ainda podia ser produzida em grande número, por todos que se apresentassem como compositores, já que não dependia especialmente de escolaridade. Cada nação que implantava as novas tecnologias de registro e divulgação lançava também seus gêneros mais fecundos de canção: blues, tango, bolero, samba etc. Com o correr dos anos e as influências mútuas, a configuração do gênero, que chegou a vir impressa no selo do disco, foi perdendo a importância e apenas a relação melodia e letra se manteve como marca peculiar desse modo de expressão. Assim, surgiram canções-samba, canções-rock, canções-bossa nova, canções-blues, canções-reggae, canções-country, canções-toada, canções-bolero, canções-funk e canções-rap. Estas últimas, aliás, passaram a representar a mais pura essência da linguagem da canção pela proximidade que mantêm com a fala.
Um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale a dizer que ela perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações “românticas” da melodia e conserva a entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção. Ou seja, canção não é gênero, mas sim uma classe de linguagem que coexiste com a música, a literatura, as artes plásticas, a história em quadrinhos, a dança etc. É tudo aquilo que se canta com inflexão melódica (ou entoativa) e letra. Não importa a configuração que a moda lhe atribua ao longo do tempo.
Outro equívoco, baseado num consenso totalmente desvirtuado, vem gerando o grande paradoxo contemporâneo desses tempos. Vivemos uma época de hegemonia absoluta do canto – muitas vezes associado a espetáculos, filmes, novelas, clips, a programas televisivos de toda ordem, ao mundo virtual –, de surgimento incessante de novos artistas da mais fina qualidade, de reabilitação de nomes indevidamente desprezados, de recuperação de épocas esquecidas, de convivência com uma diversidade cancional jamais vista e, no entanto, reina na mídia, nos meios culturais em geral e mesmo no âmbito musical a opinião uniforme de que estamos mergulhados num “lixo” de produção viciada e desinteressante.
Acontece que, graças à sua maleabilidade, a canção ocupa diferentes faixas de consumo, que cobrem desde os pequenos selos independentes até as grandes empresas multinacionais que só raciocinam em termos de lucro, pouco se importando com a natureza do produto lançado no mercado. Entre esses extremos, porém, há de tudo: independentes que se guiam pelos parâmetros das majors, multinacionais que reservam parte de seus empreendimentos para a “música de qualidade”, independentes altamente dependentes das distribuidoras e da boa vontade dos programadores de rádio, gravadoras que mantêm em seu elenco nomes tão diversos como Jorge Aragão e Luiz Melodia, selos nacionais de porte médio, como a Trama e a Biscoito Fino, selos criados pelos próprios artistas para produzir discos com maior liberdade, etc. E ainda há os extremos dos extremos: de um lado, artistas independentes tão “autorais” que sua obra não parece com nada, nem com canções; de outro, artistas tão comerciais que seus discos dispensam os nomes dos autores, já que as faixas foram produzidas diretamente no estúdio, seguindo a tendência em voga, e ninguém tem coragem de assiná-las.
Enfim, hoje em dia o espectro das faixas de consumo é o mais variado possível e, em todas elas, há compositores, intérpretes e instrumentistas criando seus discos, fazendo seus shows e formando legiões de fãs que não mais dependem apenas da difusão de massa para acompanhar seus artistas. Dispõem das rádios alternativas, da imprensa, de um ou outro programa diferenciado de TV e da abençoada internet. Nesse aspecto, aliás, as que mais perdem espaço atualmente são as poderosas gravadoras de outrora.
Claro que as bandas e os ídolos de multidão, muito bons em sua maioria, dividem entre si o melhor quinhão do mercado como sempre ocorreu em áreas de forte apelo comercial. Isso não significa que ocupam o lugar daqueles que operam nas outras faixas de consumo. Concorrem, na verdade, com outros fenômenos de multidão. Até os anos 1970, no Brasil, só a música anglo-americana e, mais raramente, italiana, atingia esse patamar de sucesso. Aos poucos, a produção e o carisma de Roberto Carlos foram conquistando boa parte desse feudo até que, nos anos 1990, as canções brasileiras se apossaram de vez do mercado de disco. O preço de todo esse processo foi, evidentemente, a padronização estética das canções dessa faixa de mercado, já que a produção em série requer sempre algum tipo de uniformidade. Surgiram então os rótulos depreciativos – axé, sertanejo, pagode – que desencorajavam qualquer avaliação mais detida da transformação que marcou a intensa presença nacional também no segmento voltado às multidões.
Nessa mesma época, com o ingresso quase que repentino do país na era digital, a gravação em CD e derivados tornou-se algo cada vez mais simples, barato e viável. Assim, a intervenção independente, que dez anos antes representava um ato heróico de bandas e artistas frontalmente marginalizados pelas gravadoras, tornou-se a forma habitual de lançamento de novos nomes no mercado e um modo de produção atraente até mesmo para os próprios artistas das majors. Maria -Bethânia, Djavan e Chico Buarque, entre muitos, trocaram suas multinacionais por outros modelos de realização.
Essas novas perspectivas ampliaram vertiginosamente as possibilidades de trabalho no mundo da canção. Milhares de compositores saíram da toca e centenas de selos foram constituídos para dar vazão ao ímpeto criativo represado no Brasil desde o fracasso econômico do período militar, quando as gravadoras deixaram de apostar em novas promessas na música. Iniciou-se então uma fase extremamente próspera de atividade cancional que, entretanto, em quase nada lembrava o período que virou símbolo da melhor produção brasileira: década de 1960 e início dos anos 1970, época dos movimentos bossa nova e tropicalismo, da música de protesto, da jovem guarda e dos festivais que tinham ares de “copa do mundo” nacional.
Ora, essa fase anterior se pautava pelo signo da centralização. Todas as correntes se abrigavam na mesma casa, a TV Record, e, portanto, eram constantemente comparadas, confrontadas e, não raro, participavam de competições explícitas que provocavam constrangimentos entre os líderes dos programas. Esse espírito de rivalidade, incentivado pelos próprios donos da casa, contagiava o público que passava a se identificar com seu artista predileto e a repelir os demais. Criava-se então um clima altamente propício para a formação de tendências e para a configuração de movimentos. E quem quisesse acompanhar esses embates, bastava sintonizar o televisor na Record ou o rádio na emissora do mesmo grupo.
O momento atual, prefigurado desde a década passada, se caracteriza pela descentralização. Os acontecimentos musicais são muito mais ricos e variados, até porque contam com recursos nem sequer sonhados nos idos dos anos sessenta. E a força do talento dos novos cancionistas também não diminuiu. O problema é outro. Como encontrá-los? Estão espalhados pelos Estados brasileiros, nos mais diferentes teatros e salas de espetáculo. Tocam em rádios e televisões locais, fazem excursões freqüentes pelo país e no exterior, lançam seus discos regularmente, soltam composições na internet. Já não contam com a mídia de massa, a não ser em situações bastante particulares (às vezes quando lançam discos ou participam de projetos conduzidos por nomes consagrados). Mas suas apresentações são sempre concorridas, ainda que divulgadas em setores restritos da população. Levam anos, décadas, em alguns casos, toda a vida para se tornarem nomes nacionais. Cancionistas desse tipo operam em todas as faixas de prestígio artístico ou comercial. Quase todos vendem milhares de discos e alguns chegam mesmo a dezenas ou até centenas de milhares sem, contudo, passar para a faixa dos ídolos de multidão. Quem tem o trabalho de sair de casa e procurá-los em shows ao vivo, normalmente volta bem impressionado e um pouco atônito por ter passado tanto tempo sem saber da existência de autores tão especiais.
São tantos os artistas contemporâneos nessas condições que não poderíamos citar alguns nomes sem cometer injustiça com a maioria restante. Fiquemos apenas com o símbolo maior do compositor e intérprete que passou toda a vida levando pérolas cancionais a inúmeros palcos brasileiros e só agora parece ter sido descoberto pelo público da TV aberta: Itamar Assumpção. Quem não foi atrás, perdeu. Como ele, muitos cancionistas invisíveis (fora da mídia de massa), que hoje se revezam nos teatros de todo país, não devem nada à geração da Record.
Luiz Tatit
é professor do Departamento de Lingüística da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), compositor, cantor e violonista. Na música, lançou os CDs Felicidade, O Meio e Ouvidos Uni-vos. Nas letras, publicou vários livros, entre eles O cancionista: Composição de canções no Brasil (Edusp,1997) e Análise semiótica através das letras (Ateliê Editorial, 2001) e O século da canção (Ateliê Editorial, 2004)