Caminho como perda

Caminho como perda

 

Para Freud, a música era sinal de perigo. Por isso, evitava confrontá-la. Ele diz numa passagem conhecida de seu ensaio sobre o Moisés de Michelangelo:

[…] as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta. (Freud, 1914/1987)

Nos diálogos adaptados para Mahler no Divã, escutamos sair da boca de Freud: – Tenho medo de música. O desprazer de Freud é defensivo. Em A potência das fendas (n-1 edições, 2021), Vladimir Safatle e Flo Menezes caminham em sentidos inversos aos de Freud. Sem temer os riscos inerentes a certas músicas instrumentais e eruditas, convidam leitores/as a penetrar núcleos sonoros, cujos efeitos são abalos intensos.

Caberia perguntar: o que alguém não versado em música poderia extrair de tal leitura? Se a sensibilidade do/a leitor/a se assemelhar à de Freud, ele/a não deixará de notar que as músicas referidas pelos autores trazem sons que invadem sem pedir licença, lançando os ouvintes a lugares destituídos de contornos precisos. Se o/a leitor/a se dedicar à escuta de cada uma das obras musicais citadas em A potência das fendas, perceberá logo que, por mais delicada que a música possa parecer, há uma espécie de violência que lhe é imanente.

Freud sabia que as palavras eram espécies de freios para os sons musicais. Ouvidos não têm pálpebras e ele criou toda a psicanálise para deter o que não entendia na escuta das palavras; mas a música não indica configurações. Ela exige suportar o infinito indicado pelo silêncio que acompanha o caráter disforme de cada nota tocada. Diferentemente das palavras que oferecem sonoridades com anteparos nos quais podemos nos agarrar, ou das imagens que ainda nos iludem de que a composição tem contornos que não nos perfuram de maneira brutal e sem pedir permissão, cada nota apresenta, ao seu lado, o vazio destituído de apoio visível, o que talvez não aconteça com as outras artes.

A potência das fendas é uma obra para quem não recua diante de zonas abismais. Ao lado da discussão entre os dois compositores, o/a leitor/a vê-se convocado/a a enfrentar seus temores, como os que emergem da escuta de Rothko Chapel de Morton Feldman e das composições de Luciano Berio. De todas as músicas que norteiam o debate, porém, a sonata tardia de Beethoven, no. 31 opus 110, talvez seja aquela capaz de nos entregar mais impiedosamente ao mar revolto de experiências. Difícil organizar mentalmente o que a música romântica suscita e, paradoxalmente, essa parece ser aquela a se articular mais fortemente ao presente, embora esteja mais distante em termos de tempo-espaço do que tantas outras referências ali expostas.

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Dentro desse espectro musical, a iniciativa dos autores de publicar um debate que revela áreas extensas de tensões deve ser vivamente louvado. Expor conflitos é pouco comum no Brasil. Em geral, tensões são evitadas neste país. Pior: atritos são vistos como expressão de questões mesquinhas, desavenças pessoais ou bisbilhotices que ocorrem nos bastidores de produções intelectuais ou artísticas. Todavia, trazer dissonâncias para o palco – e Vladimir Safatle refere-se a esse ponto ao final do livro – significa conceder envergadura aos movimentos dialéticos e alargar campos estilísticos formalmente elaborados nas obras. Ou seja, quem se abre ao debate está disposto a levar a própria obra ao seu limite, correndo o risco de ver dissolverem-se partes dela para rearticular o todo em novas formas, disso dependendo uma penetração cuidadosa em ínfimos elementos de colisão. É necessário, em suma, uma boa dose de coragem.

Em A potência das fendas, zonas de reflexão, quase sobrepostas, começam a se diferenciar e cada um dos debatedores consegue ir afinando, nos limites das coincidências de suas articulações, aquilo que pensam sobre música e arte. Isso evidentemente não diz respeito apenas à dimensão subjetiva ou individual de cada um dos dois envolvidos, mas a uma reflexão profunda sobre os lugares da música e da experiência estética nos dias de hoje.

Duplicidades e suas inversões

Não é à toa, pois, que os compositores começam o debate fazendo referências a peças duplas. Há algumas mencionadas, mas destaco a de Brecht O que diz sim e o que diz não. Nela apresenta-se um dilema ético entre a primeira e a segunda versões; entretanto, como em outras peças do dramaturgo, ficamos sem uma lição de moral unívoca. Esse lugar de suspensão é também o efeito que os debatedores provocam no/a leitor/a. E, ao chegarem nas últimas linhas, aqueles/as que pensam sempre na utilidade das coisas, podem se perguntar: qual é mesmo a diferença entre eles? Para que serve esse debate? Qual a conclusão? E só quem é sensível à beleza dos contrastes ínfimos, dos voos altos, dos mergulhos, dos cortes, em suma, só quem sabe da beleza de imiscuir-se na linguagem e nas matérias pode verdadeiramente degustar o que se desdobra no livro.

O caráter dialético do próprio debate mostra, então, muitos espelhamentos que têm naturalmente inversões em seus contrários. O principal das tensões são justamente as fendas, termo que dá nome ao livro. Elas se abrem timidamente e se expandem em espaços vazios até que elementos antes invisíveis sejam adensados e percebidos. O que são as fendas ali? Um lugar de limiar, no sentido dado por Walter Benjamin ao termo.

Flo Menezes refere-se às fendas como imperfeições ou imprecisões. Embora essas palavras admitam os desvios e tropeços inerentes aos processos, ainda carregam seus contrários, isto é, as ideias de perfeição e de precisão. Em Histórias com o Sr. Keuner, de Brecht, lemos o seguinte diálogo em uma passagem chamada “O esforço dos melhores”: “Em que está trabalhando?”. Ao que o sr. K responde: “Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”. Ou pode-se ter em mente a declaração de Alberto Giacometti em uma entrevista. Ele diz que suas esculturas são fracassadas. Elas são erros. Como ele nunca conseguiu fazer o que queria com as cabeças de suas esculturas, continuou tentando, mas vê como sinal de estupidez seu gesto de insistir. Entretanto, como ele gostava de esculpir mais do que de outro trabalho, continuava, mas não deixava de ser um erro.

Seja como for, penso que, como nesses exemplos de Brecht e Giacometti, a perda mobiliza e está no centro da vida dos dois debatedores de A potência das fendas. Caminhar pelas fendas e alargá-las para encontrar o inesperado. Caminhar em zonas de instabilidade que podem ou não apontar para movimentos dialéticos. E o debate mostra, é o que quero sugerir, que há também outros movimentos, tão interessantes quanto a dialética, mas diferentes dela.

Tempo, composição musical e traição

Mas o que aparece, afinal, nas fendas entre os dois conjuntos diferentes que são os próprios compositores e músicos Vladimir Safatle e Flo Menezes? Há vários componentes. Um deles é a discussão acerca da citação na música. A citação seria uma traição ou uma ressignificação retroativa? É interessante a noção, trazida por Flo Menezes, de que a citação em música é uma espécie de traição que amputa uma parte da composição amada. Trata-se de uma espécie de violência inevitável que o compositor comete com o artista amado em nome de sua própria obra. Violar uma obra seria um gesto arrebatado de paixão. Ao contrário dessa perspectiva, porém, penso que trair não beneficia apenas a peça daquele que extirpa um pedaço da obra do compositor admirado. Trair é, além de o melhor gesto diante de uma obra, a mais alta homenagem que se pode fazer ao artista que se ama. Para Hugo von Hofmannsthal, os /as melhores leitores/as de sua peça A torre seriam aqueles/as que o traíssem. Trair significa arrancar um fragmento do passado para inseri-lo vivo no presente, diferentemente do que ocorre com a enfadonha repetição do artista idolatrado. Por isso, não acho, como Vladimir Safatle sugere, que a citação textual seja diferente da citação musical por ser a confirmação de uma ideia exposta, mas, em sua melhor forma, ela também trai na recomposição – que, como a música, não deixa de ser uma montagem ou mosaico. Citar implica, por conseguinte, esse lugar retroativo ao qual alude Vladimir Safatle, sobrepondo ou embaralhando tempos e espaços.

Nesse contexto, torna-se polêmica a discussão acerca de plágios e roubos, pois a música não pode referenciar a peça citada. Essa questão pode parecer menor diante da preocupação de criar uma obra artística ou intelectual, mas não acho que seja, pois há também citação de autores e artistas menores que mereceriam certo reconhecimento e ficam apagados no emaranhado da produção dos grandes. Então, coloca-se a questão: quando o Outro tem envergadura para ser traído? O Outro é grande o suficiente para ser traído? – aí estamos diante de um problema psicanalítico de fundo, pois o Outro que pode ser traído talvez seja um Outro que já tenha sido colocado em um plano simbólico, naquele campo da linguagem que pode ser explorado livremente. Mas se há uma fragilidade do Outro citado que ainda não se articulou nesse campo, não haveria uma certa violência no roubo de partes das produções?

Talvez com autores/as e artistas pequenos/as haja uma questão de cunho ético: dar corpo ao que eles fazem e o quê das obras deles/as se descobre parece mais importante do que trair apossando-se de partes ainda frágeis. E acho que essa é uma das tarefas que se impõem aos intelectuais e artistas brasileiros. Em 2017, Nuno Ramos publica Loser (Peixe-elétrico #7, 2017) e diz que no Brasil “há pouca coisa sólida”. Não há antes nem depois. O país exige “uma espécie de agoridade fóbica e infinita”. É como se “tudo ainda fosse possível – tudo, inclusive a derrisão, a anomia e a barbárie”. Em 2021, não é mais “como se” tudo fosse possível. A derrisão, a anomia e a barbárie apresentam-se de modo inexorável. Diante de tal desmoronamento, não teríamos que cuidar para que as coisas ganhassem alguma solidez antes de desaparecerem simplesmente? As ruínas brasileiras não são as mesmas que ilustram algo próprio ao nosso tempo, como as que alude Vladimir Safatle em alguma de suas menções à música de George Crumb, mas resultam de um descaso nacional pelo que é vivo.

A sublimação, o perturbador e o fracasso

Aliás, as obras inquietantes de Crumb, Berio ou Feldman supostamente estariam mais alinhadas ao nosso tempo. Elas têm um quê de unheimlich que as colocaria em uma certa chave de leitura comum desde as vanguardas artísticas. Contudo, a intensidade do romantismo de Beethoven em sua fase tardia fisgou-me muito mais fortemente e me pergunto – e isso não só na música, mas nas artes de maneira mais geral – se algumas fórmulas mobilizadas pelas vanguardas e que perduram atualmente sob tal modelo perturbador não estariam esgotadas. Se, em certa medida, não estaríamos cansados de choques, perturbações, terrores que são de algum modo traumáticos. É claro que essa discussão mereceria uma penetração em cada obra para que a análise pudesse ser feita longe de elucubrações generalistas que podem ser extremamente delicadas. De todo modo, ouso lançar a questão sobre os limites das estratégias próprias às vanguardas, tendo em mente sobretudo obras contemporâneas que se opõem às modernistas e que visam muito mais a um restauro de lugares destruídos do que ao incômodo que abre o novo. Seguindo por aí, talvez não fosse o caso, como sugere Vladimir em seus comentários sobre Crumb, de mostrar o esgotamento do que nos prometeu o romantismo – uma restauração – mas de voltar a ele hoje mais do que a essas propostas vanguardistas. Em Beethoven, sem dúvida, há o apelo ao inquietante, mas os choquem partem de zonas solidamente construídas para serem colocadas em suspensão.

Algo análogo ao que tento formular aqui aparece em Expressionismo de Hermann Bahr (1916). Ali, ele diz que tudo aquilo que o expressionismo abriu no campo da linguagem artística já estava colocado em Goethe, mas que as gerações modernas não eram capazes de escutar uma linguagem tão limpidamente articulada e precisavam dos choques expressionistas. Ele faz uma tentativa de mostrar a profunda coincidência entre trechos de Goethe e uma peça expressionista para um interlocutor, mas este não consegue escutar a semelhança. Bahr se vê obrigado, então, a converter Goethe em um expressionista para ser compreendido. Mas hoje o choque ainda é o ponto que mais falaria conosco? Ou foi a limpidez da música de Beethoven o que me tocou mais do que os músicos contemporâneos citados em A potência das fendas?

Há algo extremamente paradoxal que surge a partir da leitura do livro. Em geral, a música é tida como a mais abstrata das artes. A sonoridade impediria a adesão a uma imagem e nos lançaria em espaços vagos e inapreensíveis de infinitude – refiro-me, claro, à música instrumental e erudita, sobretudo, talvez, a partir do barroco. Entretanto, com o debate entre ambos é possível se perguntar se a música não seria, ao contrário, a mais corpórea das artes. Na página 24, Flo Menezes trata da linguagem e da tentativa sempre inglória de agarrar a própria coisa. Quando queremos abraçar uma árvore evidentemente já não estamos diante da própria árvore. Ela já é palavra e linguagem. A coisa nunca é coisa, mas sempre palavra. Entretanto, uma nota musical, que também está na linguagem por ser uma nota no interior de um conjunto (um acorde, um arranjo ou sei lá), carrega junto de si, diferentemente da palavra, o corpo do som, que não se esgota em código. Na palavra, mesmo quando pronunciada e acompanhada da voz, destaca-se a remissão à coisa, ao passo que no som da nota há uma presença corpórea que se coloca lado a lado do signo; seja como for, não se trata aqui de considerar o som como natureza, mas de pensa-lo como matéria que se impõe para além da linguagem – uma carne inabsorvível que entra em atrito com o código linguístico. Se há a escrita musical, esta parece não ser o todo de sua própria expressão; o corpo, que na escrita poética quase se submete ao teor alusivo da palavra, parece acompanhar a escritura linguística musical sem hierarquia. Talvez decorra daí os perigos de certas músicas instrumentais e eruditas.

Outro tópico destacado no livro são os processos intelectivos que reverberam para além do momento da audição. Nesse lugar de intelecção, Flo Menezes aciona processos sublimatórios que recorrem a ferramentas sofisticadas para lapidar a matéria, sem que ela fique relegada a zonas imprecisas e pouco cultivadas. O vazio é apontado como utopia no resultado de tal trabalho perlaborativo. Com Vladimir Safatle, o processo não parece ser o apontamento para o lugar utópico que se formaria a partir da peça musical, mas um assentar-se no vazio para dali receber o que emerge.

Se contrapondo aos surrealistas, que teriam proposto um método equivocado ao darem vazão ilimitada ao inconsciente, Flo Menezes cita Schelling: “Na natureza inicia-se pelo inconsciente para se alçar a consciência, na arte, ao contrário, parte-se da consciência rumo à sua ausência.”. Essa frase lembra o velho impasse do ovo ou da galinha. De qualquer maneira, a meu ver, não se trata de partir nem da consciência e nem do inconsciente pura e simplesmente, como alguns supõem que façam os surrealistas, inclusive Freud. De onde vejo, a arte não é sublimatória, mas sintomática. Ela é sintoma, no melhor sentido do termo, daí se formar enquanto erro; aliás, a arte parece começar exatamente no ponto em que termina a sublimação no sentido freudiano.

De outro lado, como já disse, o estranhamento perturbador não parece o melhor recurso hoje. Não se trata, então, de perturbar estruturas – elas já estão suficientemente perturbadas –, mas de arriscar passos em direção ao desconhecido, ainda que sem nenhuma base de sustentação em algo estabelecido que emerja abalado. Ou seja, não seria o caso de encontrar apoio nas estruturas simbólicas seja para reiterá-las, seja para perturbá-las. Talvez fosse importante promover antes movimentos que sejam logo de saída errantes, sem compromisso com o campo do Outro. É claro que sempre se trata de ênfase, pois a sublimação, o inquietante ou o lançar-se ao percurso errante não são estanques e há sempre um pouco de cada um desses processos na produção e na recepção artísticas.

Nesse ponto, não considero que processos de produção artística sejam um “controle sem perda de liberdade”, como sugere Flo Menezes, nem o “postar-se tranquilo diante do descontrole”, como quer Vladimir, mas de saber desde sempre que tudo o que existe são perdas e que é melhor avançar nas obras pelo erro de nossos gestos do que insistir em controlar para alcançar a liberdade ou colocar-se como admirador impassível do incontrolável.

Essa discussão emerge no livro a partir de uma referência a Lévi-Strauss e à psicanálise, definida de diferentes formas para os dois debatedores. Podemos dizer, de forma resumida, que, para Flo Menezes, a experiência estética preserva elementos para ir além, ao passo que para Vladimir Safatle, ela situa-se em processos traumáticos, no sentido psicanalítico do termo trauma que não é o mesmo do senso comum. Colocaria a experiência estética em um terceiro lugar: aquele de atravessar incessante e precariamente o núcleo do Outro sem assustar-se com a grandiosidade de seus velhos edifícios. A música nunca seria “eterna enquanto dura”, como quer Flo Menezes, mas diferentes e frágeis atravessamentos de tempos e lugares – os sons seriam apenas pegadas percorridas nesse atravessar.

É possível que haja algo de defensivo na elaboração que estou buscando defender de maneira distinta das destacadas por Menezes e Safatle. Esse modo de experiência estética evita o atraente convite de ser capturado pelo caráter sublime dos edifícios de grande magnitude e paralisar-se diante do mistério das obras que superam limites. Escolhe olhá-las de esgueiro, deixar-se abalar, mas sobretudo seguir em frente com passos vulneráveis. Tal procedimento, algo frágil e precário, me parece, porém, interessante para pensar obras atuais.

Por fim, gostaria de comentar a ideia de alienação voluntária, tal como defendida por Flo Menezes. Ele diz definir-se como professor para deixar o “espírito livre” para a composição, sem que o ofício de compositor lhe sirva como meio de vida. Pergunto-me: escolha? Ou ter como ganha pão o ofício de professor e deixar para as margens o trabalho de composição seria a única saída? Sim, pois não consigo imaginar como viva no Brasil a maior parte de compositores de música erudita, sem respaldo de algum outro sustento. Em outros termos: quais as chances de um compositor de música erudita sobreviver materialmente de sua música? E é por isso que insisto em valorizar a precariedade, sobretudo no país, como meio de produção.

Assumir tal precariedade como saída, e não como uma bela escolha pela alienação voluntária, talvez tivesse impacto na própria forma assumidas nas obras e nas produções musicais. Nesse sentido, expressões como “o exercício estético bastar-se a si mesmo” ou “ser autossuficiente” parecem-me complicadas, levando-se em conta bases materiais de grande parte de artistas no Brasil ou mesmo fora dele. Por isso, parece-me pertinente Vladimir Safatle situar a produção estética brasileira, confrontando-a com as que ocorrem em outras partes do globo. Difícil defender o descolamento dos territórios historicamente estabelecido por forças de exploração e poder para pensar em uma produção se articule livremente acima de qualquer fronteira. Por certo, fronteiras são limites a serem criticados, mas como salienta Vladimir Safatle, os territórios não são lisos, sendo, por isso, necessário observar de perto as diferenças, inclusive em relação aos meios de produção artística nas diferentes partes das subdivisões econômicas e sociais do mundo.

De outro prisma, “o medo do caos” que serve de diagnóstico a Vladimir Safatle para estabelecer sua crítica em relação à produção brasileira é um sistema defensivo que tendo a pensar como legítimo. Não basta criticar esse ponto. Seria necessário entendê-lo em sua complexidade. Em um país com tamanha brutalidade, a evitação do caos parece ser compreensível.

Nessas tensões, destaca-se a feliz ideia de Clinâmen, resgatada da física, e que dá aos movimentos um percurso mais suave do que os da dialética, ainda que a transformação completa persista esteja no horizonte. E acho que o debate apresentado no livro tem movimentos dialéticos, mas tem também uma delicadeza de movimentos compositivos que não são tão alargados em debates fora do Brasil.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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