Botafogo e a terra prometida
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Não, esse não é um ensaio sobre Gaza, Hamas, Palestina ou Israel. É sobre um acontecimento que, ao contrário, conseguiu fazer com que eu me esquecesse dessa guerra, dos sofrimentos intermináveis causados por ela, e mesmo de qualquer outra guerra. Na verdade, escreverei sobre o acontecimento que fez com que eu me esquecesse de quase tudo o mais, que se impôs atrevido a mim, fazendo-me crer que nada poderia ser mais importante. Apesar de que, como quase tudo no Brasil de hoje, ele provoca ressonâncias bíblicas; a chegada do Messias, a entrada na terra prometida, o milagre, o merecimento, o pecado e o castigo.
Marlon Freitas, o capitão, que não pôde ir ao enterro do pai anos antes por estar concentrado em outra cidade, protagonizou em prantos uma cena comovente, gravada pelo câmera indiscreto. Ajoelhado de frente ao estreito armário do vestiário transformado em altar, dizia: “eu consegui, pai. É a terra prometida, pai”. Marlon nomeou o que eu mesmo disse ao final da partida. Mas para entender minimamente o que aqui descrevo, precisamos voltar ao início.
Sou da geração nascida em meados dos anos 1960. Passamos nossa infância e adolescência durante a ditadura militar torcendo por um time de passado glorioso e de presente estéril como o Sinai. Nós, botafoguenses, éramos chamados de “sofredores”. Éramos o retrato do Brasil: a magia do possível, metaforizada pelas pernas tortas do Mané, transformada em silêncio, tristeza e conformismo; décadas sem títulos assistindo à corrupção do clube de futebol mais tradicional do país, vampirizado por dirigentes de conduta nada ilibada e de ganância mais monumental que o estádio no qual o acontecimento transformador do dia 30/11/2024 se deu. A Brasília dos generais era o retrato de General Severiano.
Em nome de Heleno, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Zagallo, Jairzinho, Paulo César Caju, Gérson, Marinho, Manga e tantos outros, torcíamos doentiamente por times compostos de homens de boa vontade e futebol inibido. Em 1995, enfim, tivemos um time não muito brilhante, mas eficiente, liderado por Túlio Maravilha, e fomos campeões brasileiros em jogo que até hoje os santistas não perdoam. Se na época existisse VAR, o resultado seria outro, porque não somos o Flamengo, a quem os juízes de vídeo costumam perdoar.
Desde então, assistimos a decadência em ritmo persistente, até a criação da SAF (Sociedade Anônima de Futebol), e a compra do Botafogo pelo grupo representado pelo americano John Textor.
Ano passado, 2023, perdemos o título brasileiro depois de passar a maior parte do tempo na liderança do campeonato, mantendo uma distância bastante confortável do segundo colocado. Em uma partida marcada pelo transtorno maníaco-depressivo, perdemos um jogo decisivo para o Palmeiras por 4 x 3, em que o primeiro tempo terminou 3 x 0 a nosso favor, e em que Tiquinho Soares desperdiçou um pênalti quando o placar estava ainda 3 x 1. “Tem coisas que só acontecem com o Botafogo”, repetia-se, revelando o conformismo pusilânime da nossa geração.
Em 30/11/2024 ocorreu a final da Copa Libertadores da América, competição mais importante do continente e, talvez, a mais relevante para uma equipe brasileira, para a qual chegamos na condição de favoritos contra o Atlético Mineiro. Vivíamos e viveríamos 13 dias mágicos (número da sorte de Zagallo), de jogos decisivos para dois campeonatos que disputávamos: a Libertadores e o Brasileiro. Quatro dias antes, em 26/11, ganhamos de 3 x 1 do Palmeiras em pleno Allianz Parque, em final antecipada do Brasileirão.
Nessa condição, mais de 50 mil botafoguenses foram a Buenos Aires assistir presencialmente ao jogo, agendado antecipadamente para o estádio Monumental de Nuñez, apesar de os dois finalistas serem brasileiros. Uma verdadeira invasão, que me recordou outro momento mágico do futebol: a invasão corintiana do Rio de Janeiro em 1976, em partida contra o Fluminense no Maracanã, à qual assisti graças à paixão tricolor de meu pai.
Acreditei, um tanto por covardia, que não seria viável financeiramente ir a Argentina com os filhos, e fui assistir ao jogo no Nilton Santos mesmo, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em telões instalados para a massa que ali compareceu. O clima era de um otimismo inebriante que, imagino, fosse frequente nos tempos em que mané Garrincha vestia a camisa 7, e que os torcedores iam ao estádio ver um futebol bonito, e se divertir com o gingado do inesquecível craque. Agora tínhamos Luiz Henrique com a mítica camisa, além de Almada, Savarino e Igor Jesus – olha a terra prometida aí de novo – no ataque para nos encantar com suas surpreendentes jogadas e seus belos gols.
Eis que, com 40 segundos de jogo, 40 segundos, repito, o volante Gregore comete uma entrada afoita em uma jogada no meio de campo, atingindo com a sola da chuteira o rosto do adversário, e é expulso! Injustamente, a meu ver, mas isso pouco importa, já direi o porquê.
As cenas no telão lembravam as da tragédia de 1950 no Maracanã, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo para o Uruguai. Rostos de torcedores no Monumental chorando, com as mãos na cabeça, o olhar atônito em um misto de descrença e déjá vu. Como jogar uma final da Libertadores com um jogador a menos desde o primeiro minuto?
Eu baixei a cabeça, coloquei as mãos sobre os olhos e pensei que tudo estava perdido. Senti um cansaço secular, levantei-me e sai da aérea das cadeiras para o corredor externo onde ficam os bares e banheiros. Pensei em ir embora, mas meus filhos estavam firmes, e Márcia me disse convicta que ganharíamos o jogo. Respirei fundo, voltei e vivi os 96 minutos mais tensos e mais mágicos de minha vida como botafoguense. Mas isso também pouco importa.
O que aconteceu foi que Luiz Henrique fez um gol redentor aos 34 minutos. Um gol que provocou novos choros, agora acompanhados de gritos de esconjuração de uma dor centenária, um gol milagroso, catártico, o gol mais oportuno da história do Botafogo de Futebol e Regatas. Um pouco depois o mesmo Luiz Henrique que vestia a camisa 7 de Garrincha e Jairzinho e Túlio sofreu um pênalti, que o corajoso Alex Telles, com a camisa 13, converteu, e o primeiro tempo terminou 2 x 0 para nós, com um jogador a menos. Presenciávamos o milagre, mas eu, evidentemente, continuava grave, preocupado, o senho franzido, desconfiado de que tudo cairia por terra no segundo tempo. No entanto, algo em mim parecia pressentir a nova era.
Começou o segundo tempo e com 1 minuto, 1 minuto, repito, o Atlético encontrou um gol em cobrança de escanteio do incansável Hulk. Um gol de cabeça do baixinho Vargas, que nem precisou pular. 2 x 1. Se o Galo empatasse, iríamos para a prorrogação de 30 minutos e, com um jogador a menos desde o início da partida, não era crível que nossos guerreiros teriam pulmão para segurar o resultado. Nem assim os novos botafoguenses esmoreceram. E de certa forma fui contagiado. Passei o resto do jogo contando os minutos, vendo o Atlético perder boas oportunidades. Apenas nos 7 minutos de acréscimo dados pelo árbitro comecei a rezar. Eu era ateu, sempre fui ateu, mas confesso publicamente que durante aqueles 7 minutos, sim, 7 da camisa de Garrincha, Jairzinho, Túlio e agora Luiz Henrique, eu rezei. Rezei em português, em hebraico, em latim, em iorubá. E o imponderável aconteceu.
Júnior Santos, o pedreiro que virou jogador de futebol tardiamente, o artilheiro da competição que ficou meses afastado por contusão, entrara em campo um pouco antes e, no último minuto, no sétimo minuto, recebeu a bola na ponta direita. Aquele pedaço de grama em que brilharam os setes alvinegros. Ele se aproximou da bandeira do corner cercado por dois jogadores adversários. Sinuca de bico, sem saída. Porém, ao invés de segurar a bola, tentar ganhar tempo ou um escanteio, Júnior Santos encarna o mané e inventa um drible inédito, de letra cria uma passagem entre os jogadores do Atlético e avança rente à linha de fundo, livre de marcação, em direção ao gol, acompanhado por Matheus Martins correndo pelo meio da área. JS passa para MM, mas a bola é interceptada pelo zagueiro que se joga no chão em um “carrinho”, e sobra livre para Júnior Santos fazer o gol da vitória épica, terminando nossa tensão e liberando o grito de alforria das gargantas secas dos botafoguenses de todos os tempos, os vivos e os que se foram e que estavam presentes em fotos levadas pelos familiares para os estádios em Buenos Aires e em Engenho de Dentro. Nesse momento Edvard Munch foi botafoguense. Um gol redentor aos 7 minutos da prorrogação, que selou o destino da Libertadores da América. Nunca o nome da competição foi tão preciso para indicar a libertação do que parecia ser uma maldição infinita lançada sobre o povo alvinegro.
Diz-se que os campeões da Copa Libertadores da América alcançam a “glória eterna”. Fomos campeões, glória eterna, justiça cósmica em um mundo e em um esporte nem sempre justo, o melhor time do continente ganha a final com um jogador a menos desde o primeiro minuto, experiência mística restrita aos escolhidos, terra prometida, nas palavras do cristão Marlon Freitas.
Vamos agora ao que interessa: não houve chororô com a expulsão de Gregore, fato inédito. A crença dos novos botafoguenses na vitória não esmoreceu, e a história não virou farsa. O pessimismo da minha época tornou-se anacrônico. “É tempo de Botafogo”, canta a geração dos botafoguenses vitoriosos.
Ao final do jogo eu dizia aos meus filhos, com um toque de humor, que eu não merecia a terra prometida. Eu duvidei da vitória. Sou da geração que teve a alma debilitada pela dor e pela frustração.
No relato bíblico, os 40 anos de deserto aos quais os judeus foram destinados tiveram o intuito de purificar o povo, admitindo à terra prometida apenas a nova geração, deixando a pusilanimidade dos escravizados e adoradores de ídolos de ouro para trás.
Mas eu tenho sorte. Sou botafoguense. Voltei a ser ateu. A vida não é uma questão de merecimento, mas de talento e acaso. Marlon tem razão. A terra prometida é nossa. Afinal, queiram ou não, é tempo de Botafogo!
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.