Bolsonaro é a versão 5G da Lava Jato
(Arte Revista CULT)
Enquanto o Brasil arde em queimadas e o mundo se dá conta da indigência moral do consórcio familiar e militar que comanda o país, surgem dia após dia no noticiário nacional novos capítulos da série de revelações do The Intercept sobre as entranhas de grupo da burocracia estatal que se convencionou chamar Operação Lava Jato.
Embora não seja possível saber ainda as novas revelações e os exatos temas que ainda estão por vir na série de matérias do site e dos seus parceiros, já se faz possível retirar alguns apontamentos e aprofundar percepções e análises sobre o papel do sistema de justiça no contexto de crise do capitalismo, sobre a política e o direito.
Wadih Damous, um dos primeiros a criticar e a combater as ilegalidades da operação, já denunciava que a sua própria estrutura de formação representava evidente afronta ao princípio do devido processo legal uma vez que as funções de investigador, acusador e julgador se amalgamavam a ponto de ser favas contadas o destino do réu. Neste ponto, preciso o ensinamento do jurista Marcelo Semer quando levanta a seguinte questão: se o juiz combate a corrupção, quem julgará?
Se a estrutura montada já representava agressão aos princípios básicos do processo penal, outros elementos se somavam e estavam a indicar que uma série de outras ilegalidades seriam cometidas. Assim, essa formatação anômala da burocracia estatal judiciária exigia que os casos penais, independente do local em que supostamente ocorreram, seja em Pernambuco ou São Paulo, fossem por ela processados. Foi exatamente o que ocorreu: fatos ocorridos em jurisdições complemente diversas da 13ª Vara Federal de Curitiba para lá foram remetidos um a um e com a chancela do Supremo Tribunal Federal.
Com as bases sedimentadas em estacas de ilegalidades, constituiu-se essa unidade fora dos estreitos limites daquilo que até então se conhecia como estrutura do Poder Judiciário. A Lava Jato criou, então, um novo organograma hierárquico e de competência territorial na Justiça Federal Brasileira, abarcando todos os fatos relativos a determinados réus em qualquer parte do país. Com a terraplenagem do terreno, as paredes começaram a subir. Entra aqui neste ponto aquilo que o Rubens Casara precisamente denominou como o processo penal do espetáculo.
Esse braço paralegal da burocracia do Estado, verdadeira aberração no sistema de justiça, com suas dezenas de “fases”, só foi possível com a proteção e o estímulo dos grandes meios de comunicação, dos interesses dos grandes grupos financeiros e empresarial, de partidos políticos e dos recursos repassados pelo Ministério da Justiça da então gestão petista à Polícia Federal que atuava na força tarefa.
Em cada fase da Operação o componente do espetáculo se fazia presente com buscas e apreensões, conduções coercitivas ilegais e vazamentos de delação. Outro ponto que sempre se questionou foi a própria forma como se celebravam acordos de delação, inclusive com denúncias de favorecimento de advogados próximo à família Moro, concessões de vantagens não permitidas pela lei e, inclusive, de prática de tortura e maus tratos com a decretação de prisões preventivas sem amparo legal. Preciso lembrar, também, que foi denunciada a instalação de grampo por parte da Polícia Federal em celas de presos da Operação. Até hoje não se sabe de qualquer responsabilização administrativa destes servidores.
Essa estrutura se retroalimentava. Grandes meios de comunicação e “formadores de opinião” apoiavam a operação e recebiam em troca vazamentos. Esses vazamentos serviam para gerar audiência (lucro) e capas de revista. O noticiário incendiava o ambiente político e o pautava. Grandes grupos econômicos apoiavam as ilegalidades praticadas e recebiam em troca a blindagem de que não seriam incomodados, ademais de uma avenida livre para avançar com transferência dos encargos da crise econômica para os trabalhadores. Hoje já se sabe que esses grupos econômicos pagaram diretamente vultuosas somas de dinheiro aos principais atores da Operação, utilizando as palestras como lavanderia, para evitar que eventuais investigações respingassem em suas atividades.
Os objetivos dessa bizarra estrutura burocrática foram cumpridos e entregue o conteúdo prometido. A estratégia de Romero Jucá parecia ter dado certo, a “sangria” precisava ser estancada. Ledo engano. A história hoje todo mundo sabe como terminou, o impedimento de Dilma Rousseff não foi o último ato da peça, nem foi possível um retorno à uma pretensa “normalidade” institucional. O Estado policial continuou, expandiu seus tentáculos e essa forma de operar mecanismos estatais sem controle ou balizas encontrou no consórcio familiar e militar do novo governo a sua mais nova roupagem. Bolsonaro é a versão 5G da Operação Lava Jato.
Diante de Bolsonaro, Moro e Dallagnol e seus blue caps são como celulares analógicos e terão o mesmo fim em alguma caixa de papelão de lixo histórico reciclável. Lá encontrarão suas versões mais antigas como aqueles modelos lançados durante a Ação Penal 470. Todos eles podem ser, agora, descartados. Na precisa lição de Alysson Mascaro,
“Todo direito é um golpe. É a forma do engendramento da exploração do capital e da correspondente dominação de seres humanos sobre seres humanos. Tal golpismo jurídico se faz mediante instituições estatais, sustentando-se numa ideologia jurídica que é espelho da própria ideologia capitalista. Sendo o direito sempre golpe, a legalidade é uma moldura para a reprodução do capital e para a miríade de opressões que constituem a sociabilidade. Todo o direito e toda a política se fazem a partir de graus variados de composição entre regra e exceção”.
A questão hoje é se essa forma lavatista de funcionamento do sistema de justiça será a própria tônica da contemporaneidade – porque mais adequada à dinâmica atual de reprodução do capital -, ou se princípios básicos como segurança jurídica ainda fazem algum sentido nessa engrenagem. O que determinará se algo será feito pelo sistema de justiça e suas estruturas para corrigir as ilegalidades praticadas na Operação Lava Jato não é a contundência das novas revelações, ou mesmo se haverá um áudio ainda mais comprometedor do que o tanto que já se revelou até aqui, mas sim a resposta a essa questão colocada no início do parágrafo.
PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP