Bolsonaro em chamas
A Amazônia está em chamas, mas quem queima é o país (Foto: Bruno Kelly/Reuters)
Não é só a Amazônia que está em chamas, nem foi só o investimento de 30 anos na imagem internacional do Brasil que virou definitivamente cinzas nos últimos dias. É a própria percepção de que temos um adulto capaz governando o país é que está pegando fogo. A Amazônia em chamas é no fundo uma metáfora do país, devorado pelas labaredas de três crises sem precedentes: a crise econômica, que está no seu quinto ano apesar de prometerem que cessaria assim que Dilma fosse substituída por outra pessoa; a crise política, que também vem desde 2015 e que aguçou depois que assumiu a nova família imperial, cuja agenda passa inevitavelmente por conduzir uma guerra permanente contra toda sorte de inimigos, tanto reais como imaginários; e, a crise moral, que decorre dessa sensação de vale-tudo, de animosidade permanente contra fileiras incessantes de inimigos, e, sobretudo, provém do fato de que a pessoa no poder, em vez de construir pontes e governar para todos, é o primeiro na fila dos que insultam e ofendem, o primeiro a propor e sustentar pautas vergonhosas, o primeiro a jogar uns contra os outros.
Falta a Bolsonaro e ao bolsonarismo as mínimas condições intelectuais, morais e, infelizmente, até políticas, para conduzir o país para a fora das três crises que o assolam. Antes, Bolsonaro, sua família e os seus ministros demonstraram-se exímios especialistas em provocar crises, não em resolvê-las. Um exemplo disso é o fato de que, no último dia 18, o site de O Globo coletou e classificou amostras de coisas ditas por Bolsonaro na sua guerra contra tudo e todos. Estão lá listados 58 insultos, ofensas ou afrontas, dirigidas a 55 alvos desde a posse. 55% dos insultos ocorreram nos últimos 30 dias – o que significa que no segundo semestre, o presidente está mais solto, mais ele mesmo. Quase 1/3 das ofensas é contra a própria sociedade e não contra inimigos políticos.
Se em tempos de calmaria, crescimento econômico e taxas de felicidade em alta, um presidente boca de esgoto e uma família especializada em manter o país em clima de guerra já seriam indesejáveis, imaginem em um país perdido, confuso, empobrecido, angustiado e em que as suas partes deixaram de apenas desconfiar umas das outras, porque passaram rapidamente a se odiar? Ainda mais se pensarmos que, em um regime presidencialista, o presidente não é apenas o governante, mas é também o chefe de Estado. Que República pode ser chefiada por um presidente que se comporta como se o Estado fosse o boteco da família, onde ele fala palavrão, cospe no chão, escolhe quem entra e quem pode ficar e decide a quem servir e quem deve se retirar? A Amazônia está em chamas, mas quem queima é o país.
Veja um exemplo desta semana. Lembrem-se que estamos vindo de quase um mês da guerra declarada de Bolsonaro e do seu ministro do Meio Ambiente contra os cientistas do respeitadíssimo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), porque o presidente não gostou dos dados de satélite sobre desmatamento na Amazônia. O cientista-chefe do Inpe foi demitido e acusado, pelo chefe de governo, de estar “a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”. Palavras do presidente.
O padrão de Bolsonaro é justamente esse: horror a dados científicos e à autoridade intelectual, o gosto por fantasiosas teorias da conspiração, a necessidade imperiosa de fabricar inimigos e de dirigir a eles o ódio quando as coisas não são como ele gostaria, o comportamento infantil de atacar imediatamente quem lhe está diante no momento do seu acesso de raiva. Algo, aliás, que tem acontecido reiteradamente com as grosserias praticadas contra repórteres que fazem ao presidente as perguntas que considera desagradáveis.
Esta semana, aconteceu de novo. Mais de uma vez. O contexto são as queimadas na Amazônia que impressionam o mundo inteiro. Reproduzo:
Repórter: Quem poderia estar atrás desse incêndio criminoso…?
Presidente: São os índios. Quer que eu culpe os índios? Quer que eu culpe os marcianos?
Repórter: Não presidente, a gente só precisa de informação…
Presidente: No meu entender há um indício fortíssimo de que foi esse pessoal de ONG que perdeu a teta deles.
Repórter: É um indício forte com provas, Senhor Presidente?
Presidente: Não se tem prova disso, meu Deus do céu. Ninguém escreve, “vou queimar lá…”, não existe isso. Se você não pegar em fragrante (sic) quem está queimando e buscar quem mandou fazer isso. (…) Todo mundo é suspeito, mais a maior suspeita vem de ONGS. Querem prova de que estão queimando a Amazônia? Vou dar uma prova disso, que vai sair completamente distorcido amanhã na imprensa.
Pronto, é assim. Em dois minutos Bolsonaro conseguiu ser grosseiro com os jornalistas, enunciar a sua convicção de que há uma conspiração da imprensa contra ele, defender que tudo o que se publica sobre o seu governo é distorcido e, naturalmente, criar um inimigo imaginário para levar a culpa em lugar da inépcia do seu governo ou de uma agenda equivocada adotada por um dos seus ministérios: as ONGs. E dizer que, no mundo mental do presidente, provas não são necessárias, basta o sentimento do mandatário.
Os fatos são que o Inpe estava certo, aumentaram as queimadas no Brasil; que há uma correlação clara entre o aumento das queimadas e os enormes incêndios florestais que agora todo mundo está vendo graças à imprensa internacional; que se fosse por Bolsonaro e Ricardo Salles aquilo ali não se preservava, mesmo porque a prioridade do governo é a exploração mineral do subsolo da floresta; que Ricardo Salles havia declarado na semana anterior que aquele R$ 1 bilhão do Fundo Amazônia, vindo da Alemanha e da Noruega, não fazia a menor falta, era uns trocados, mas que, segundo o Globo, vinha sendo usado para combater incêndios florestais, e agora esse dinheiro não tem mais.
Esse governo é alérgico a fatos e prefere as fantasias conspiratórias. Mas, de vez em quando, os fatos voltam para nos assombrar. E quem acordou assombrado foi o mundo, com a Amazônia brasileira virando cinzas. Vamos ver agora como Bolsonaro, a sua política de destruição do meio ambiente e a sua teoria das ONGs incendiárias vão lidar com a pressão internacional, esta que não pode ser desclassificada como petista, descartada por comunista, nem ser demitida por não entregar os dados que o governo prefere.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)