Biografia do cisne negro

Biografia do cisne negro

Paulo Schiller

Erika Kohut, a protagonista deste romance declaradamente autobiográfico de Elfriede Jelinek (A Pianista), que nos persegue depois de terminada a leitura, tornou-se professora de piano no Conservatório de Viena porque não teve sucesso na carreira de concertista planejada para ela pela mãe.

Mas o projeto da mãe de Erika para a filha não se reduzia ao estudo de Bach, de Mozart ou de Schubert. Depois de internar o marido demenciado em um sanatório, a mãe de Erika aprisionou a filha em um laço matrimonial perverso, incestuoso, mortífero. A mãe vigia todos os passos de Erika, infiltra-se por todos os seus poros, cuida para que ela jamais se deixe seduzir por nenhum homem, certifica-se de que ela será para sempre estéril.

No apartamento sombrio, elas se fazem companhia diante da televisão todas as noites e dormem juntas na mesma cama, embora Erika tenha um quarto só dela, sem cama e sem chave na porta.

Segredos

Mas Erika tem seus segredos. Em raros momentos de privacidade, ela realiza a posição de puro objeto da mãe, que sobre ela tudo sabe, e abre feridas em sua região genital com as lâminas de barbear do pai.

De vez em quando ela escapa das amarras maternas durante um par de horas para ver homens degradados que se masturbam assistindo a exibições nauseantes de strip-tease ou para espiar casais que fazem amor ao cair da noite nos bosques de Viena.

Erika, aos 36 anos de idade, não resiste à paixão de Walter Klemmer, um de seus aplicados alunos, muito mais jovem do que ela. A trama central do romance, preciso do ponto de vista psicanalítico, desenvolve-se em torno dessa história amorosa trágica, uma narrativa a um tempo realista e alegórica do sadismo, do jogo impreciso entre dominador e escravo, que se insinua em suas diferentes variantes em todas as relações ancoradas no desejo sexual.

Jelinek leva o artesanato da linguagem ao limite por meio de múltiplas vozes entrelaçadas, metáforas inusitadas, imprecisões reveladoras, uníssonos feitos de paradoxos aparentes. As palavras e as cenas são vulgares e obscenas quando são convocadas, inevitavelmente, pela insensatez inerente à condição humana. Como diz a autora, o escritor é alguém que, aproximando-se pelas bordas, procura divisar a realidade.

Há quem diga que a escrita de Jelinek é pornográfica. Só podemos imaginar que para esses críticos a própria realidade cotidiana que arde sob as aparências deve ser pornográfica.

Fobia social

Ela ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2004. Por causa da fobia social que faz com que não suporte ser olhada por muita gente, ela não conseguiu viajar a Estocolmo para a cerimônia de premiação. Enviou um vídeo em que lê um texto sobre a posição descentrada com base na qual o escritor busca retratar a verdade indizível por meio da ficção.

Seu pai era um químico judeu de origem tcheca que escapou da deportação porque se dedicava à pesquisa de materiais destinados à indústria bélica. A mãe, de origem romena, descrita por Jelinek como “despótica e paranoica”, era filha de uma família burguesa católica abastada. Embora não tenha tido filhos, Jelinek é casada. O marido mora em Munique e ela nunca desejou deixar Viena: assim, eles alternam períodos de distanciamento e de reencontro deslocando-se entre as duas cidades.

Como seus conterrâneos Karl Kraus, Peter Handke e Thomas Bernhard, Elfriede sempre se situou em certa marginalidade por meio da denúncia implacável da hipocrisia da sociedade de seu país, alienada em relação ao passado de colaboração com o nazismo.

Feminista, alinhada politicamente à esquerda, é crítica feroz do renascimento do nacionalismo raivoso e autoritário representado pela ascensão do Partido da Liberdade, a agremiação radical de direita de Jörg Haider, da discriminação contra os imigrantes e dos ideais de dominação masculina que permeiam os vínculos amorosos e os laços sociais.

Por não fazer concessões, ela foi alvo de repetidos ataques violentos dos setores culturais e políticos conservadores que ainda prevalecem na Áustria dos dias atuais.

Além de A Pianista, Jelinek é autora de mais de uma dezena de romances, inúmeras peças de teatro e um livro de poesias e recebeu todos os prêmios importantes concedidos à literatura em língua alemã, como o Heinrich Böll, em 1986, o Georg Büchner, em 1998, e o Heinrich Heine, em 2002.

Resta dizer que o texto que Luis Kraus nos oferece em português é impecável. Um verdadeiro monumento à arte da tradução, que preserva o ritmo, a musicalidade e a riqueza do emaranhado de dissonâncias que se atropelam no estilo vertiginoso e incomum da autora.

(1) Comentário

  1. Adoro o livro, e do filme gosto também, com algumas reservas.É uma escrita forte e complexa a da autora., ela é boa na sua proposta.

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