Você também é daquelas que defendem bandido?

Você também é daquelas que defendem bandido?
Arte Andreia Freire

 

Ricardo Silva Nascimento, homem negro, catador de papelão, foi assassinado aos 39 anos de idade, com dois tiros no peito, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Não houve conflito. Foi uma execução. Como acontece na maior parte dos assassinatos cometidos por de policiais. Como também acontece com a maioria dos policiais assassinados. Ao ler sobre a manifestação que escancarava a ação fascista da Polícia Militar, fui transportada para a última vez em que estive em uma sala da educação de jovens e adultos. Ao final de uma discussão polarizada sobre o golpe, um dos homens que mais reproduzia o discurso da mídia hegemônica, tentado a abrir uma brecha em suas verdades para me ouvir, perguntou, de canto: “professora, você também é daquelas que defendem bandido?” Não, respondi, eu defendia a legalidade da Constituição, políticas que buscavam a igualdade entre pessoas e justiça social. “E bandido que rouba e mata, você defende?” Repeti a defesa da legalidade, afinal, não há pena de morte no Brasil que permita assassinar alguém depois de julgamento, imagine execuções. E que a elevada criminalidade é expressão de nossa desigualdade. “E quando roubam alguma coisa sua, aonde você vai?” À polícia. “E os policiais que morrem para nos defender?” Os direitos humanos também valem para eles. Vi uma porta se abrir naquele homem.

As últimas eleições municipais mostram o crescimento do neofascismo. Barbárie higienista na Cracolândia, pastor-prefeito que desde o primeiro discurso bradou a favor da guerra às drogas e contra o que chamou de “ideologia de gênero da criança”. A composição atual do Congresso, a mais conservadora desde 1964, foi importante para a consumação do golpe e tem sido eficaz na destruição de direitos. Aquelas e aqueles que denunciamos as atrocidades, somos colocados na caixa “pessoal dos direitos humanos”, vistos como seres ingênuos que não percebem a segurança pública como questão importante, convidados a “levar para casa” os chamados bandidos. Precisamos prestar atenção aos discursos da maior parte da população, compreender o que querem dizer, reconhecer as verdades do senso comum para então estabelecer algum diálogo em que nossos pontos possam ser ouvidos. Esta postura freiriana, que aprendi na sala de aula e no movimento popular, sempre me pareceu adequada. Tenho certeza de que contribuo com quem discorda de mim, porque também saio mexida pelo que ouço.

O Instituto Sou da Paz realizou uma pesquisa em que foram analisados 700 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenção policial e mortes violentas com vítimas policiais, em São Paulo, entre 2013 e 2014. Quais são os fatores e circunstâncias que levam policiais a matar e morrer, foi a pergunta que orientou a análise. A maior parte dos policiais foi assassinada fora do horário de trabalho, sem apoio ou aparatos de proteção, com tiros na cabeça. A maioria dos assassinados pela polícia foi de jovens homens negros, após abordagens decorrentes da chamada fundada suspeita. Jovens negros na rua são sempre suspeitos em nossa estrutura racista. Nem policiais nem jovens negros morrem em confronto, repito. Execuções são a regra.

Ricardo Silva Nascimento, 39, dois tiros no peito, em Pinheiros. Leandro de Souza Santos, 18 anos, torturado antes de ser baleado dentro de uma das casas da Favela do Moinho. Luiz Felipe da Silva Alves, 23, saía de um baile funk na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, quando levou um tiro nas costas. Adriano de Souza, 21, alvejado com onze tiros em Salvador, na chacina do Cabula. Ítalo, 10, foi baleado na cabeça. Claudia Ferreira da Silva, 38, arrastada por um carro depois dos dois tiros que tiraram sua vida, em Madureira. Onde está Amarildo? Poderíamos completar todas as páginas desta revista com nomes de pessoas executadas pela polícia. O Estado é quem mais mata no Brasil.

Ainda assim, se não percebermos que as pessoas armadas pelo Estado, com ou sem farda, estão submetidas a violências, nossa defesa dos direitos humanos fica fragilizada frente à maior parte da população. No difícil exercício de empatia, necessário ao diálogo, perceber policiais hostilizados em manifestações populares me parece tão descabido quanto as fotos enaltecendo-os como heróis nos protestos em verde-amarelo. Sentia saudades dos gritos “Você aí fardado, também é explorado” que davam o tom da relação com policiais nas manifestações dos anos 1990. Até acompanhar um protesto de secundaristas em 2015. Mesmo na provocação do que gritavam, era evidente que policiais militares eram olhados por eles também como espelho: “Que vergonha, que vergonha deve ser, bater em estudante para ter o que comer”. Crítica feita, protesto forte, com a empatia de reconhecer um sujeito dentro da farda.

A maioria dos policiais não é assassina. Mas, afastado da própria subjetividade, aquele que puxa o gatilho é treinado e incentivado a ser peça-chave do Estado racista, machista e assassino. Ele não vê pessoas, mas suspeitos, bandidos, viciados, craqueiros, catadores. Desde a invenção do Brasil, seres humanos são desumanizados. Ainda hoje falamos em escravos, em vez de pessoas escravizadas. Nessa máquina de moer gente que é a estrutura policial, a carne mais barata é a de jovens negros – 63 assassinados por dia, um a cada 23 minutos –, mas soldados, cabos e sargentos são bucha de canhão. Rio de Janeiro e São Paulo são os estados onde agentes da polícia mais morrem. O sujeito dentro da farda tem mais de um emprego por receber baixo salário, é formado e incentivado para identificar jovens negros como suspeito, obedece a ordens, explícitas ou implícitas, de extermínio, e se sente seguro com a impunidade. Mesmo nas raras condenações, o julgamento pode ser anulado, como aconteceu em 2016, com a revogação da condenação de 74 PMs pelo massacre no Carandiru. Desde a invenção do Brasil, soldados desempenham o papel desta forma de organizar – e eliminar – a vida. Ainda assim, para a maior parte da população, 64%, segundo pesquisa do Datafolha, policiais são vítimas de criminosos; 57% dizem se identificar com a frase “bandido bom é bandido morto”.

Sem entrar no debate da desmilitarização da PM ou qualquer outra proposta de especialistas e ativistas na área de segurança pública e direitos humanos, uma coisa é certa: a forma como nossas instituições policiais operam não está a serviço da vida. Nem da maior parte da população. Nem de policiais civis ou militares. Não há polarização na defesa de direitos de qualquer ser humano, não há polícia versus bandido. Precisamos evidenciar mais nuances dessa conversa e complexificar o que tem sido polarizado no senso comum. É importante lembrar que a base das corporações policiais, em nossa estrutura de classe, é de irmãos, vizinhos, colegas dos jovens assassinados pelo Estado. Evoco a dor de minha tia Maria Isabel para mostrar essa proximidade. Dos cinco filhos, Francisco, o mais velho, é PM. Paulo Vitor, o mais novo, foi executado pela PM em uma viela do Jardim Brasil.

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