Benjamin entre filosofia e literatura
Benjamin situava a tradução literária entre os muitos gêneros limítrofes que praticou (Foto: Reprodução)
“Ainda não sou capaz de decidir se é a filosofia ou a literatura que predominará em meus estudos universitários.”Essa conclusão do curriculum vitae redigido por Walter Benjamin em 1912 reveste, retrospectivamente, um caráter profético. A transgressão das fronteiras tradicionais, embora nunca bem demarcadas, entre literatura e filosofia caracteriza toda a obra dele. Embora tenha optado por um doutorado em filosofia sobre o conceito de crítica do primeiro romantismo alemão, ele pensava poeticamente – é o que conta não por acaso Hannah Arendt, sua amiga e correspondente.
Contra a lógica argumentativa do sistema, Benjamin reivindicou o uso de recursos poéticos no interior do discurso teórico, explorando passagens entre formulações conceituais e metafóricas. Mas, se por um lado seus ensaios tendem a apagar demarcações rígidas entre filosofia e literatura, por outro a produção literária de sua maturidade mantém-se nos limiares do pensamento teórico-especulativo, explicitando a abertura da construção poética ao pensamento. Basta lembrarmos da prosa enigmática de Infância berlinense por volta de 1900, na qual o material biográfico se transforma e se deforma à luz de elementos conceituais, ou de sua menos conhecida produção de contos, atravessada por uma reflexão teórica sobre a narrativa, ou dos aforismos de Rua de mão única e da forma inclassificável de suas “imagens de pensamento”.
Durante a Primeira Grande Guerra, Benjamin trabalhou na retradução da poesia de Charles Baudelaire e mais tarde traduziria também Honoré de Balzac e Marcel Proust. Na contramão dos conflitos que opuseram Alemanha e França no início do século 20, foi um passeur, como se diz significativamente em francês, pois a palavra associa tradutores de literatura estrangeira a guias de migrantes e de refugiados. Mas o que o tradutor permite passar além das fronteiras linguísticas? O que implicam tais passagens? O que delas podemos esperar?
Benjamin situava a tradução literária entre os muitos gêneros limítrofes que praticou, indicando sua vizinhança com a filosofia. Haveria, segundo ele, “um engenho filosófico, cujo mais íntimo desejo é alcançar aquela linguagem que se anuncia na tradução”. A frase, que se encontra no ensaio sobre “A tarefa do tradutor” (1921), incluído como prefácio à edição de suas próprias traduções dos Quadros parisienses de Baudelaire, precede a citação de um poeta.
Mantendo em português a sintaxe desconstruída e a pontuação estranha do original, traduzo aqui o trecho da “Crise de vers” (Crise de verso) de Stéphane Mallarmé, que ele próprio não traduz em alemão: “As línguas imperfeitas, nisso que várias, falta a suprema: pensar sendo escrever sem acessórios nem sussurros, mas tácita ainda a imortal palavra, a diversidade, sobre a terra, dos idiomas não impede ninguém de proferir as palavras que, senão se encontrariam, numa cunhagem única, ela própria materialmente a verdade”. Numa continuação não incluída na citação dessa passagem, Mallarmé aponta o verso como aquilo que “filosoficamente remunera o defeito das línguas, complemento superior”, mas Benjamin atribuirá tal tarefa à tradução. Situando-a não apenas nas fronteiras linguísticas, mas também entre poesia (Dichtung) e teoria (Lehre), dela espera a “língua da verdade”, que seria também a “verdadeira língua”.
Um trecho de Infância em Berlim por volta de 1900 permite pensar essa verdade poética para a qual a tradução – como também, de outro modo, a crítica – abre passagem. Nele, Benjamin nos conta sobre o exame infantil da gaveta das meias e a interessante descoberta que o acompanhava. Enrolado e dobrado sobre si mesmo, cada par de meias se apresentava à mão do menino como um pequeno bolso. Ao mesmo tempo envelope e envelopado, forma e conteúdo, a meia-bolso era uma pequena totalidade fechada em si. Entretanto, a criança não se contentava em segurar o mistério encerrado na bola de lã. A melhor surpresa era justamente o momento no qual procurava extrair “o que vinha junto” de sua bolsa. Nessa passagem, a totalidade encantada se desfazia, revelando, no instante de sua fragmentação, a verdade enigmática que escondia, isto é, “que a forma e o conteúdo, que a coberta e o encoberto, que ‘o que vinha junto’ e a bolsa eram uma única coisa”. Uma única coisa e entretanto também uma terceira: o simples par de meias no qual os dois primeiros se transformavam.
É o gesto de esvaziar a bola de lã que desvela a magia, ao mesmo tempo que a desfaz. A experiência interessante está na passagem da pequena totalidade – a forma que é seu próprio conteúdo – ao duplo fragmento no qual a mágica unidade do todo é negativamente simbolizada. Não é por acaso que na última versão manuscrita de Infância em Berlim a brincadeira das meias evoca o tema da crítica: “Nunca me cansei de pôr à prova esse exercício. Ele ensinou-me que a forma e o conteúdo, o invólucro e o que ele envolve, são uma e a mesma coisa. E levou-me a extrair da literatura a verdade com tanto cuidado quanto a mão da criança ia buscar a meia dentro de sua bolsa”.
Todo poema é uma meia-bolso fechada em si mesma, e como tal também reforça fronteiras linguísticas. Levando ao que há de mais singular em cada língua, desafia a experiência da tradução. Esse é o problema que está no ponto de partida do projeto da transcriação poética de Haroldo de Campos, que procura transpor justamente o que aparece como intransponível: a emoção estética que repousa sobre o que há de indissociável entre a forma e o conteúdo do texto poético, entre sua configuração discursiva única e a língua na qual foi escrito. Mas ele o encontra formulado pela primeira vez em “A tarefa do tradutor”. Para Benjamin, além de toda comunicação de conteúdos, o “poético” é justamente aquilo que incita a traduzir.
Nesse sentido, a densidade intraduzível do texto literário não é uma fronteira que se fecha, mas um lugar de passagem: a própria traduzibilidade que, segundo ele, certas obras possuem como uma virtualidade nelas contida, mesmo que não tenham sido nem possam ser adequadamente traduzidas. A singularidade da configuração linguística do poema é também aquilo que, em sua própria língua, aparece como estrangeiro: a expressividade do que resiste à comunicação de conteúdos, remetendo ao núcleo irredutível da pura linguagem (reine Sprache).
Nada pareceria mais absurdo a Benjamin do que
estabelecer hierarquias entre as diferentes línguas
históricas que, animadas por múltiplas vozes,
estão sempre em constante transformação no devir
das falas e dos textos.
Embora a palavra alemã Sprache não faça distinção entre língua e linguagem, o que Benjamin chama de reine Sprache não deve ser compreendido como uma língua entre outras ou como sua origem histórica, mas como o medium expressivo no qual todas se movem, fertilizando-se mutuamente nas traduções. Dinâmica de produção de afinidades, atravessa as línguas em constante mutação e nelas visa à totalidade dos modos de olhar o real, conferindo ao tradutor sua tarefa: “É o grande tema da integração das várias línguas em uma única, verdadeira, que acompanha o seu trabalho. Essa linguagem, porém, em que as frases, obras e juízos isolados jamais se entendem – razão pela qual permanecem dependentes da tradução – é aquela na qual, entretanto, as línguas coincidem entre si, completas e reconciliadas no seu modo de visar”.
O ponto de partida estético dessa filosofia da tradução contém assim uma política. Ao mirar o âmago secreto em que o poema adere à sua própria expressão linguística, o tradutor descortina o horizonte utópico no qual as línguas se tocam e se transformam mutuamente, híbridas e fecundas.
PATRÍCIA LAVELLE é poeta, professora da PUC-Rio e doutora em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris)