Avatar às avessas?

Avatar às avessas?

Diante do sucesso de crítica de Avatar, quase se sente intimidado quem diz algo negativo. A bem da verdade, é impossível negar a beleza do filme, tanto como é impossível negar os louros da vitória a Cameron na corrida do “cinema do futuro”. Porém, a visão de mundo implícita nesse “avatar às avessas” mereceria mais debate. Trata-se, sim, de um avatar “às avessas”, pois, em qualquer tradição avatárica, é sempre um ser divino que se manifesta entre os humanos. O avesso não faria sentido, pois um humano ensinaria o que a um ser superior?

Isso, porém, não diminui os méritos do filme. Aliás, a metáfora invertida pode ser instigante, pois retrata a dificuldade implicada no conhecimento da alteridade: podemos conhecer o outro sem viver como ele? Sem ser como ele? Mas seria possível ser o outro? Esse recado foi certamente bem transmitido. Todavia, a consagração da lógica da guerra e a transformação da ligação profunda com o habitat em prática religiosa, ritualística, não podem passar em branco. Cameron afirmou, inclusive, que seus objetivos eram vencer a indústria dos efeitos especiais e criticar a razão ocidental, pois, no seu dizer, a vida dos terráqueos seria uma vida de desarmonia entre razão e sentimento. Ele seria, portanto, o avatar de uma vida “antiocidental”.

Ora, se é assim, por que Cameron consagrou explicitamente a lógica da guerra? O “Ocidente” (mas não só) é um especialista em técnicas bélicas. E os Na’vi aprenderam bem as estratégias de combate! A criatividade do diretor não seria capaz de dar uma solução original, mais inteligente, ao combate? E por que transformar em religião os laços profundos, “místicos”, entre os Na’vi e seu habitat? Esses laços possuem, sim, caráter religioso, pois há elementos explícitos de adoração e de princípios morais. Só não há elementos reflexivos, o que seduz os espectadores, pois uma vida de harmonia arracional com a Natureza é sempre atraente. Mas isso é coerente? Qual o sentido de transformar essa harmonia em misticismo?

A tradição ocidental – desde os gregos até os contemporâneos – sempre fez a religião passar pelo crivo da razão. Por que, então, agora, incensar um ideal religioso sem análise racional, exclusivamente afetivo, esvaziando o pensamento e dando supereminência ao sentimento?

Práticas desse gênero são portas largas para o autoritarismo e a manipulação; uma religião sem crítica deriva facilmente para os desmandos. Aliás, desmandos análogos aos denunciados pelo filme (abuso de autoridade, interferência do poder e da economia na autonomia das ciências etc.) também são implicados numa religião da natureza.

Cameron não terá exagerado ao transmitir uma visão tão negativa da razão ocidental? Afinal, não foi a razão que fez os terráqueos atacar os Na’vi; nem o kamikaze jogar a bomba de Hiroshima. Foi um determinado uso da razão. Focar na manipulação da razão para criticá-la não é jogar fora a criança junto com a água do banho?
Avatar baseia-se ainda numa forma maniqueísta de pensar. Associa uma vida de equilíbrio a uma fusão com o habitat e opõe razão a sentimento, negligenciando os benefícios que a “razão ocidental” obteve, desde seu nascimento grego, em termos de autoconhecimento humano e harmonização entre inteligência e sentimento. No fim das contas, o filme repete a cacofonia da guerra e entoa novamente a cantilena da Terra Mater, em tom irracionalista. Nada de novo sob o sol…

Não teríamos direito de esperar mais desse Cameron-avatar-às-avessas? Ou teremos de aceitar, como disse um crítico canadense, que seu filme é muito bonito, porém requentado?

(Juvenal Savian Filho)

(2) Comentários

  1. Caro Juvenal,

    Li o seu texo algumas vezes e concordei com você pelo menos até a terceira vez. Contudo na quarta tentativa resgatei um ensinamento de um livro de um educador brasileiro chamado Daniel Munduruku que dizia que não podemos ouvir uma história indianista com os ouvidos da razão e sim com os ouvidos do coração. Em um primeiro momento creio que muitos tenham uma ração aversa, reconhecendo uma frase poética vazia com típico intuito de agregar valores ao texto. Ainda assim acredito que nela reside o real significado das narrativas indianistas. Quando levamos uma narrativa indianista para outro plano de compreensão ela desdobra o seu leque de significados e toma um caráter muito mais universal. Dessa maneira, acredito que Avatar, sendo, sem dúvida, uma epopéia indianista deve ser interpretada de outra maneira. Avatar propõe ao mundo ocidental, como você comentou, uma alternativa ao seu atual funcionamento, mas veja em momento algum essa realidade foi posta como o oposto da ocidental. Acredito que talvez o espirito de luta presente no filme tenha dado essa impressão, mas na realidade o modo de vida dos Na’vi é apresentado apenas como uma alternativa. Concordo que não há muito de novo no background do filme: a velha história do colonizador tentando domar o selvagem para que possa explorar a terra. Contudo a virtude de Avatar é renovar a idéia indianista de convivência harmoniosa com o meio ambiente e através de sua roupagem tecnológica, que permitiu a materialização da poesia de forma nunca antes vista, provocar no espectador uma reflexão sobre a interpretação de alguns valores. Realmente avatar não é sobre razão, mas sim sobre a proposta da vida pelo sentimento. Ainda nesse mesmo raciocínio proponho a você um desafio: visto que cada um dá uma interpretação diferente sobre uma mesma coisa, proponho a você que assista Avatar novamente, contudo dessa vez busque uma outra interpretação, esqueça durante os 162 minutos de filme tudo que você conhece e acha atualmente sobre o filme e imagine que é a sua primeira experiencia de contato com tal história e realidade. Ao término do filme anote tudo e depois confira com o que você achava antes. Ainda assim se você tiver argumentos contra a minha idéia de experiencia pense nisso: você já viu o filme da forma racional, procure então entendê-lo agora da forma emocional, porque não?

    Att

    Felipe

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