Especial quadrinhos: a ascensão do romance gráfico
Trecho de uma das reportagens gráficas de Joe Sacco (reprodução)
Alguns gêneros literários – como a lírica e o drama (com suas variantes, comédia e tragédia) – parecem eternos, com origem em alguma espécie de Big bang daquilo que modernamente denominamos “literatura”. Mas se a própria noção de literatura tem uma historicidade, alguns gêneros possuem certidão de batismo, ainda que haja disputas pela paternidade. O ensaio foi indiscutivelmente parido por Montaigne em 1580. Já o romance é ora atribuído ao Dom Quixote de Cervantes, de 1605, ora aos autores de folhetins sentimentais da Inglaterra setecentista.
Este especial da CULT aborda o mais novo dos gêneros literários: a graphic novel ou romance gráfico, uma de suas possíveis denominações aqui discutidas pelo escritor Joca Reiners Terron – ele mesmo autor de um livro híbrido, Guia de ruas sem saída, no qual o texto interage com as ilustrações de André Ducci e tem um cartunista e um super-herói de quadrinhos entre suas personagens.
Como gênero que nasceu pelas mãos de um mestre da Era de Ouro dos quadrinhos e que é contemporâneo da era não menos dourada da teoria literária (os anos 1970, com estruturalismo e pós-estruturalismo arrematando um século que reivindicou para a crítica literária o status de gênero literário de não ficção), a graphic novel já surge buscando validação intelectual e autonomia artística em relação ao romance stricto sensu.
Até hoje associada, no imaginário de leitores pouco familiarizados, a super-heróis e enredos fantasiosos, vai anexando territórios, A ascensão do romance gráfico criando tramas complexas, enfrentando temas densos – até o ponto em que passa a ser também suporte para registros memorialísticos, biográficos e jornalísticos.
Pode-se afirmar, portanto, que a graphic novel é a contrapartida visual do romance e pertence a uma linguagem mais geral – os quadrinhos – que surge na esteira de um período no qual as vanguardas (de Apollinaire aos concretos) exploraram a visualidade da palavra, no qual surgiram sucessivamente o cinema, a televisão e a internet e no qual as próprias cidades assumiram feições de um grande holograma (não por acaso, o Japão – país de língua ideogramática e de uma cidade holográfica como Tóquio – pode ser considerado pioneiro em relação à graphic novel ocidental, com mangás de temática adulta, incluindo os pornográficos hentais).
Se a “ascensão do romance” – título do famoso ensaio de Ian Watt – esteve associada à emergência do sujeito moderno, da burguesia e da imprensa, a ascensão do romance gráfico materializa essa explosão de signos que conformam nossa experiência e ao mesmo tempo a diluem na evanescência de um simulacro visual. Uma experiência que traz especificidades dentro de cada tradição cultural – como assinala o escritor Ronaldo Bressane (coautor de V.I.S.H.N.U., graphic novel de ficção-científica), em texto no qual aponta a ausência de super-heróis na macunaímica terra dos heróis sem nenhum caráter.
Assim como o cinema – em que, desde o primeiro momento, as comédias para as massas conviveram com a experimentação vanguardista –, as novelas gráficas oscilam entre o puro entretenimento e ousadas formas de representação e reflexão, que podem incluir desde as reportagens políticas do maltês Joe Sacco ou as traumáticas memórias da Guerra Civil Espanhola do espanhol Altarriba (em A arte de voar, com o desenhista underground Kim) até o angustiado diário fescenino (e manifesto pró-putaria) do canadense Chester Brown, autor de Pagando por sexo.
E, assim como literatura, artes visuais, música, teatro e cinema têm suas festas, suas mostras e seus festivais, as graphic novels se juntam a outras formas de invenção gráfica num evento (a Feira Plana) que já se incorporou à agenda de São Paulo e se integra ao sistema de produção e circulação desse novo gênero literário.
MANUEL DA COSTA PINTO é jornalista e crítico literário
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