As trajetórias de Agostinho
Primeiro grande filósofo cristão, o autor das Confissões fez do tema da trajetória uma constante de seu pensamento, ecoando os deslocamentos que marcaram sua biografia e ocupando lugar estratégico em uma filosofia que busca nos conduzir de um mundo precário a um mundo perfeito no qual a sabedoria suprema e Deus se identificam
Moacyr Novaes
Filosofia e teologia como trajetória
Filosofia e teologia podem e devem ser tomadas como palavras equivalentes, como sinônimos. Esse é o entendimento de Agostinho, a partir de uma análise das duas palavras. Mas a análise etimológica será apenas o primeiro passo para um exame da teologia e da filosofia como um e mesmo empenho da razão humana. Trata-se de um empenho, uma vez que o termo grego “filosofia” pode ser vertido para o latim como studium sapientiae, vale dizer, esforço em direção à sabedoria. A filosofia deve então ser considerada não a posse da sabedoria, mas a sua procura ininterrupta.
Ora, se o filósofo cristão reconhece a identidade entre a sabedoria suprema e Deus, então a filosofia será a busca continuada de Deus. Essa simples interpretação do termo “filosofia” projeta-se para o termo “teologia”. A teologia não será meramente um discurso sobre a natureza divina, pois um discurso poderia ter pretensões demasiado dogmáticas. A teologia será filosófica se a razão (logos) souber se voltar para Deus (theos), não como apreensão, mas também como investigação.
Se a filosofia-teologia é uma investigação incessante, é justificado destacar um tema na filosofia agostiniana: o tema da trajetória. Os leitores de Agostinho podem constatar como seu vocabulário é rico em palavras e expressões que pertencem ao domínio da viagem, do caminho, da peregrinação, dos itinerários, da trajetória.
Breve percurso biográfico
Tenhamos pois em vista os deslocamentos de Agostinho (354-430), no mundo romano da Antigüidade Tardia. Agostinho nasceu e morreu na África, na província romana da Numídia. Ali nasceu e ali morreu; mas parte de sua vida adulta, e de sua trajetória intelectual, foi na Itália. Em poucas palavras: estudou na cidade natal (Tagasta), depois completou a formação ainda na África, em Cartago, antes de ir tentar viver como professor em Roma. Fracassada a carreira em Roma, foi para Milão assumir um posto importante na corte do Império.
Ora, a essa altura, ele já havia passado por vários momentos de sua vida intelectual: entusiasmado em Cartago pela filosofia, foi atingido pelas questões paralisantes do ceticismo, além de ter estado muito próximo à escola maniqueísta. Em Milão, finalmente, descobriu o platonismo, que deu novo impulso às suas ambições filosóficas.
Mas o platonismo milanês deu lugar a uma crítica cristã dos limites do platonismo, e a conversão o levou a abandonar seu alto posto e mesmo a cidade de Milão. Primeiro, para um retiro numa região ainda próxima, de onde surgiram seus primeiros diálogos; depois, uma estadia em Roma, antes de voltar definitivamente à África, para fundar uma comunidade filosófica. Mas uma vez de volta, teve que assumir funções eclesiásticas, não demorou a tornar-se bispo, em Hipona, e como bispo escreveu a maior parte de sua obra, até morrer quando Hipona estava sob cerco dos Vândalos.
Antimaniqueísmo
Reconstruímos de modo breve seu percurso, porque o próprio Agostinho refletiu sobre sua trajetória intelectual, e sobre sua trajetória geográfica, como expressões de uma trajetória fundamental para toda filosofia. As Confissões, uma das obras mais célebre de Agostinho, oferecem um panorama privilegiado, como reflexão que procura unir autobiografia e meditação sobre a condição peregrina do homem.
Um momento nessa trajetória biográfica e intelectual vai nos interessar aqui mais de perto, com o intuito de refletir sobre a importância dos itinerários para a filosofia. Trata-se do maniqueísmo. Esta filosofia teve grande importância na vida de Agostinho, e o ajuste de contas com ela é um elemento nuclear de sua filosofia madura (cf. o livro VII das Confissões).
Devemos aqui destacar alguma coisa já bem sabida, sobre os seguidores de Mani: eles são dualistas. O maniqueísmo concebe o mundo como o resultado do embate de duas forças, o bem e o mal, ou dois reinos, o reino da luz e o reino das trevas. Cada coisa neste mundo é um misto, portadora de uma dupla herança, uma herança do príncipe das trevas e uma herança do príncipe das luzes. Ora, Agostinho fará uma crítica minuciosa do maniqueísmo, e rejeitará seus dualismos. Ainda que ele mesmo reflita com base em certas oposições dicotômicas, será preciso reelaborar as dicotomias, e apontar os inconvenientes do maniqueísmo. Precisamente na reelaboração das dicotomias é que poderemos perceber a importância da noção de trajetória.
São muitas as dicotomias que podemos encontrar na obra de Agostinho. Em geral, todas dizem respeito à diferença e à oposição entre este mundo, imperfeito, e um mundo de perfeição. Podemos chamá-los mundo sensível e mundo inteligível, se quisermos seguir a tradição platônica. Ou mundo carnal e mundo espiritual, para usar outro vocabulário (o próprio Agostinho propõe estas “traduções” no diálogo Sobre o Mestre).
Os dois mundos, por sua vez, abrigam cada qual um dos pólos de outras dicotomias: aqui reina o falso, lá está a verdade; aqui a vida não é vida, é apenas vento, ou é mesmo morte, enquanto lá se encontra a verdadeira vida, ou vida vital. Lá, e só lá, encontram-se também a verdadeira paz, a verdadeira justiça, o verdadeiro bem. Em suma, tudo o que é bom, só é verdadeiramente em um mundo que está além deste nosso mundo.
A vida feliz
Se for assim, por que Agostinho não é maniqueísta? Vamos examinar mais uma oposição, a partir da qual nosso autor fará sua crítica do maniqueísmo. O que é a verdadeira felicidade? Ela só pode ser a posse do verdadeiro bem, naquele mundo perfeito, bom, justo etc. A posse de um bem deste mundo aqui não é felicidade, porque todo bem neste mundo é passageiro, e quem o possui está sempre na iminência de perdê-lo. A felicidade verdadeira deve ser como a saciedade, oposta à inanição. A verdadeira felicidade é a verdadeira saciedade, não uma saciedade passageira, mas a saciedade verdadeira, duradoura, oposta definitivamente à fome, à miséria. Portanto, quem é feliz? Aquele que possui o supremo bem. E quem não o possui? Este é infeliz. A infelicidade é como a fome, uma fome permanente. Quem não está saciado é miserável, infeliz, pois não está de posse do único bem verdadeiro. Mas é preciso repensar esta definição e as suas conseqüências.
Num diálogo Sobre a vida feliz, Agostinho reflete sobre essa dicotomia mediante metáforas alimentares. A ocasião será o seu aniversário e os dois dias seguintes. Como é costume, num aniversário cabe oferecer alguma coisa aos convidados, e tal circunstância será propícia a pensar a felicidade como saciedade. Isto é, assim como uma festa exige alimentar o corpo, numa reunião filosófica, é preciso prover também alimentos para a alma.
Cercado de pessoas de seu círculo íntimo, no primeiro dia Agostinho não demora a obter delas um perigoso consenso: a felicidade é a posse de Deus. Além desta formulação, que é o prato principal, haverá a sobremesa, um seu corolário: os céticos são desgraçados, condenados à infelicidade, porque sua filosofia renuncia a toda e qualquer posse, uma vez que se autocompreendem como aqueles que estão sempre e incessantemente procurando. Quem está sempre procurando, nunca está saciado; portanto, nunca será feliz.
Ora, este duplo consenso foi muito fácil e rápido, e poderá dar lugar a uma indigestão.
No próximo dia, na próxima refeição, ao invés de servir pratos novos, Agostinho faz com que seus convivas tratem de digerir, reelaborar, o que tinha parecido tão simples na véspera. Seria difícil reconstruir aqui os meandros de uma minuciosa discussão filosófica. Mas será possível destacar o seguinte: Agostinho vai extrair do consenso da véspera uma verdadeira perplexidade, pela qual tudo parece ficar de cabeça para baixo, isto é, parece que as conclusões transformam-se nos seus contrários. Vejamos.
Todos haviam estado de acordo em que a posse de Deus, felicidade, equivale a três coisas:
a) viver bem
b) viver conforme a vontade divina
c) ter um espírito puro
Ora, acontece que todos devem também admitir que é Deus quem quer que os homens o identifiquem com o bem supremo e o busquem. Com isso, o segundo ponto de consenso, “viver conforme a vontade divina” significa buscar a Deus. Da mesma forma, viver bem e ter um espírito puro devem equivaler a buscar a Deus. Mas, agora, como isso pode ser idêntico à posse de Deus? Quem procura ainda não tem a posse. Se viver bem é fazer a vontade de Deus, e Deus quer que os homens o busquem, então viver bem é buscar a Deus; mas quem busca não possui; então viver bem é justamente não possuir Deus.
A esta pequena incongruência será acrescentada mais uma: incitados por Agostinho, os convivas começam a fazer o trabalho de digestão de suas próprias certezas. Os céticos procuram. Isso não é fazer a vontade de Deus? Se o fazem, não merecem ser felizes? Ou Deus será desfavorável a quem o procura? Por que então haviam logo condenado os céticos à infelicidade?
Os embaraços iniciais darão lugar a duas coisas importantes. O diálogo vai buscar soluções que contemplem algum meio termo, pelo qual não se diga que alguém que ainda não é feliz, mas que busca a felicidade, é simplesmente um infeliz. Assim, será preciso, para dar estatuto moral à procura da felicidade, manter dois pólos: o feliz e o que não é feliz, mas entre os que não são felizes será preciso enxergar quem é infeliz e quem ainda não é feliz. Haverá um dia os plenamente saciados, e há agora (1) os que sofrem de inanição bem como (2) aqueles que se alimentam em vistas da saciedade.
A segunda conquista a ser destacada está apresentada no vocabulário próprio à alimentação: como meio termo entre saciedade e inanição, Agostinho propõe uma virtude, o comedimento, a moderação. Alimentar-se conforme as necessidades e as possibilidades. Um verdadeiro sábio deverá saber dosar sua busca, ou melhor, deverá encontrar a justa medida, a qual vai lhe ensinar o comedimento, a moderação.
Meio termo e moderação: isto quer dizer que a primeira dicotomia deve ser reexaminada, e admitir um refinamento, bem como uma dinamização. Há, no pólo inferior, algo mais próximo do pólo superior. E não apenas mais próximo, mas sim a caminho do pólo superior. A dicotomia inicial não pode portanto ser pensada meramente como contraposição: existe a possibilidade de reaproximação, existe uma dinâmica que faz com que o inferior seja dirigido ao superior.
O homem não está apenas entre a posse de Deus e a perdição completa; ao homem está dada a possibilidade da virtude, mediante a qual ele pode gradativamente se aproximar da posse almejada. Buscar a felicidade significa reconhecer a sua ausência; quem busca, busca porque reconhece não possuir. Mas isso não quer dizer mera infelicidade: é possível que seja uma infelicidade a caminho da felicidade.
Dinâmica da criação do mundo
Agora podemos ver como a noção de trajetória é estratégica. Não basta afirmar a existência de dois mundos profundamente diversos um do outro. Mesmo que seja correto afirmar que apenas um detém o que é verdadeiro, justo, bom etc., é preciso pensar o outro do ponto de vista de uma trajetória possível em direção a ele. A filosofia deve ser justamente a elaboração desta trajetória, a partir de um mundo precário rumo a um mundo perfeito.
Para apreciarmos um pouco melhor o quanto isso é antimaniqueísta, podemos ponderar o seguinte. Na verdade, este mundo não é a mistura de forças opostas, mas sim expressão menor daquele mundo perfeito. Este mundo contém vestígios daquele, imagens que são imperfeitas, mas não são contrárias à verdade. E isso se deve ao fato de que este mundo não é resultado de um embate, mas sim de um ato criador. Examinemos um pouco este ato criador, o que nos dará talvez um sentido ainda mais preciso do que é trajetória para Agostinho.
O gesto criador é duplo. Deus criou o mundo a partir do nada. Nada havia, e Deus criou o céu e a terra, vale dizer, a totalidade da criação. Mas por que é um gesto duplo? Porque implica dois movimentos: em primeiro lugar, a totalidade da criação é um outro, diferente de Deus, que não se confunde com ele. Não é algo tirado da substância divina, mas sim tirado do nada. Arrancada do nada, a criação é algo fora, diferente de Deus. Nesse sentido, deve-se dizer que a criatura é matéria. Como matéria, a criatura é inteiramente dessemelhante de Deus.
Mas, como dissemos, o ato criador é duplo: no mesmo ato Deus realiza um segundo movimento, pelo que dá forma a esta matéria informe. Isto equivale a dizer que Deus dá semelhança à matéria informe; isto é, torna a matéria semelhante a ele, pelo fato de ser agora formada, ordenada. Se, como matéria, a criatura é dessemelhante do seu criador, agora, por ser dotada de forma, a mesma criatura tem alguma semelhança com seu criador. Este duplo movimento pode ser caracterizado como um movimento inicial que põe as coisas fora, longe, seguido por um movimento de convocação das coisas de volta ao seu criador. Pelo fato de ter forma, medida, cada coisa participa da ordem universal, e desse modo dirige-se a Deus.
Em linhas gerais, podemos dizer que a trajetória humana radica também nesta dinâmica própria ao ato criador, porquanto é um caminho que segue o vetor do ato formador, contido na criação. Cada homem dirige-se a Deus, seu amadurecimento corporal e seu amadurecimento intelectual e moral são progressos rumo ao seu criador.
Mas isso requer algumas precisões, porque este movimento geral concerne à totalidade da criação, desde os seres mais simples. O homem também é parte desta dinâmica, mas seu quinhão é distinto. Tomemos então dois aspectos fundamentais da dinâmica humana, pelo que será mais claro o sentido da trajetória agostiniana. Em primeiro lugar, o movimento humano de se dirigir ao bem supremo é distinto do movimento de todas as outras criaturas porque é um movimento livre. As outras criaturas simplesmente fazem parte da ordem universal e não podem fugir a isso; ao passo que o homem tem o privilégio de manter-se neste fluxo em direção a Deus, por seu livre arbítrio.
Em segundo lugar, a trajetória humana é assinalada pelo fato de, historicamente, estar impedida. Historicamente, isto é, não mais apenas do ponto de vista natural, na dinâmica geral do ato criador. A natureza humana é livre para fazer aquele movimento. Porém, um fato histórico, que marcou a humanidade como raça, ou melhor, que fez com que houvesse a humanidade como raça de homens com um passado comum, este fato histórico atou a liberdade da vontade. Tal ato foi o pecado original. Original justamente porque originou a raça humana, raça herdeira de um obstáculo ao livre arbítrio da vontade.
Isso faz com que a trajetória não seja meramente aquele caminho natural previsto na dinâmica da criação, mas a trajetória é agora uma peregrinação de exilados. Expulsos do paraíso, os homens têm que fazer um árduo caminho de volta a uma condição perdida. Essa será a tarefa da filosofia: preparar a razão, para que esteja em condições de retomar sua dinâmica originária.
Podemos então divisar o quanto era importante para Agostinho não se deter no dualismo maniqueísta. Não se trata de condenar este mundo, mas sim de ver nele o lugar de um caminho. O mal não está no mundo, não está na matéria; o mal está no aprisionamento da vontade humana. Este mundo é apenas o palco onde se desenrola o drama dos homens, onde suas trajetórias deverão ocorrer. Agostinho não nega este mundo; ele nega o apego a este mundo, na medida em que tal apego significa um esquecimento da condição de peregrino, um exilado.
Uma última metáfora agostiniana resumirá as demais. A consciência do peregrino permite que ele distinga duas coisas: uma pátria e um caminho. Este mundo não é sua pátria. Como exilado sabe que sua pátria é alhures. O que ele pode procurar neste mundo é tão-somente o caminho em direção à pátria. A dicotomias iniciais podem ser traduzidas como a dicotomia entre a pátria e o exílio. Não são mais mera contraposição, porque este é um quadro dinâmico. Trata-se para o homem de saber enxergar no exílio o caminho para a pátria, e deste modo considerar a teologia e a filosofia no sentido de studium sapientiae.
Moacyr Novaes
Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP