As fake news entre digitalização e polarização da política
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Esta semana fui convidado a falar em dois eventos que, não por coincidência, tratavam do mesmo tema: fake news e mídias sociais. Na segunda-feira, estive no TRE de Sergipe, falando em um Fórum de Enfrentamento à Desinformação para um público da Justiça Eleitoral preocupado em como as fake news estão envenenando o ambiente político durante as eleições e no intervalo entre os pleitos. A preocupação fundamental neste meio consiste em saber se é possível enfrentar as fake news ou evitar os danos à democracia por elas causados.
No dia seguinte, na terça-feira, falei como convidado na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional sobre Fake News, para senadores, deputados e um público preocupado em como investigar ou dar respostas legislativas a ataques cibernéticos, à utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições passadas, ao assédio digital a agentes públicos e ao aliciamento para o cometimento de crimes de ódio.
Esta CPI, como se sabe, virou um cabo de guerra entre governo e oposição justamente porque o tema das fake news e do uso de mídias sociais para a propaganda de ataque, para o assassinato de reputações e para linchamentos e assédios digitais é de extrema susceptibilidade na nossa circunstância política. Lembrem-se que esta semana ainda a deputada Joice Hasselmann acusou os três filhos de Bolsonaro de chefiarem uma “milícia digital” paga com dinheiro público para estraçalhar os seus adversários políticos. Declarou ainda que nas eleições de 2018 o clã Bolsonaro havia montado um verdadeiro time de “fake news”, com o mesmo propósito. A própria deputada foi alvo de montagens disseminadas pelas mídias digitais esta semana depois de que a facção bivarista rompeu com facção bolsonarista do PSL.
É óbvio, então, que ao redor da expressão “fake news” circulem muitos fenômenos da assim chamada “política suja” em meios digitais, uma prática em que qualquer investigação haveria de ser capaz de identificar as digitais e o DNA da nova direita. Claro que tais expedientes podem ser realizados – e vêm sendo executados – por todas as posições do espectro ideológico, vez que a extrema-direita não possui o monopólio da malignidade, mas os sucessos eleitorais de Trump e Bolsonaro certamente devem parte da sua efetividade a estratégias de comunicação digital baseadas em disseminação de informações inventadas, ou informações que alteraram ou distorceram fatos para fins de destruição dos adversários ou de construção da própria imagem.
Fake news consistem, portanto, em informações que inventam ou distorcem fatos, e que, além disso, são produzidas, embaladas ou envelopadas para serem compartilhadas em mídias digitais. Essas três dimensões andam juntas. Primeiro, dá-se o caso de pretensamente serem referidas a fatos e a dados. Em suma, à realidade, não a ficções, não a teorias, não a opiniões. É preciso criar a ilusão de que é uma informação. Segundo, só são fake news porque são uma contrafação, uma falsificação de fatos. Terceiro, fake news são digitais, existem para serem compartilhadas em meios e ambientes digitais, embora os seus efeitos, naturalmente, tenham impacto sobre todos os aspectos da vida.
Para quem pensa que “fake news” é só um nome novo para um fenômeno antigo, convido a pensar se não está confundido gênero com espécie. Fake news política são espécime do gênero da mentira, do boato e da enganação com fins políticos, mas nem todas as mentiras ou enganos são fake news. Fake news são espécime do gênero das informações enganosas, inexatas ou fabricadas, algo típico do mau jornalismo ou de um pseudojornalismo partidário, mas fake news não são um fenômeno do jornalismo e sim da militância política.
Não é à toa que começamos a ouvir falar sobre fake news apenas de 2016 em diante, quando dois fenômenos se consolidaram no mundo: o avanço sem precedentes da direita conservadora digital e a hiperpolarização da política. Além disso, não havia fake news antes de algumas transformações relacionadas à nova sociabilidade baseada em comunicações digitais, a saber: a) uma tão ampla penetração da internet, em que praticamente todo mundo está finalmente online; b) o estado de hiperconexão em que nos encontramos, com todo mundo online o tempo todo; c) a constituição de ambientes sociais inteiramente digitais de convivência política, em que não apenas se produz e consome informação, como também se constroem representações comuns e se distribui abundante capital social.
As fake news políticas são, então, ao mesmo tempo, uma criatura da hiperconexão digital e do universo da hiperpolarização política. Do universo digital porque existem para a disseminação online, ou viralização, dotando-se, portanto, de um nível de facilidade de produção, velocidade de disseminação, alcance e capilaridade sem precedentes. Do universo da hiperpolarização porque elas são ferramentas de combate, típicas do estágio do conflito político em que nos encontramos, em que cada parte considera que está em guerra e ainda pode eliminar o oponente e que, por conseguinte, tudo está valendo, inclusive inventar, exagerar e distorcer os fatos para demonizar e desmoralizar o adversário.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)