Ir insistentemente em direção a um Brasil que teima em se perder
Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas, co-autores de 'Arruaças' junto com Rafael Haddock-Lobo (Foto: Walter Alves/Divulgação)
Em uma das, para mim, mais belas passagens de Platão, depois de ter dito o famoso “só sei que nada sei” e diante de sua morte da qual ele se encontra à espera, Sócrates afirma, entre outras coisas da maior importância, que isso a que se dedicou durante toda a sua vida – a filosofia – é (pasmem!) um novo tipo de música ou de poesia, que se distingue, entretanto, da poesia ou da música “popular”, da poesia ou da música “do povo”. Se foi justamente esse traço inventivo de impopularidade dessa nova música ou poesia, chamada de filosofia, à qual se dedicara toda a vida, que o levou a ser julgado e condenado à morte, com o tempo, algumas caricaturas da história da filosofia ancoraram-na numa impopularidade cada vez mais erudita, mais afastada da música e da poesia, mais adequada aos sistemas políticos e institucionais dominantes. Contrária ao gesto transgressor socrático, tal adequação se faz presente, de modo geral, em nossos meios acadêmicos e institucionais.
Gostaria, então, de começar dizendo que Arruaças, o novo livro de Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo, faz o movimento reverso daquele socrático inicialmente citado, tendo, entretanto, um caráter contraventor decisivo: eles arrastam a – já nada nova e bastante erudita – filosofia, afastada, em grande parte, da música e da poesia, radicalmente de volta tanto a elas quanto à sua dimensão popular (aos pontos de macumba, por exemplo), onde reside, em nosso processo de colonização, a força maior da subversão dos escravizados e de seus herdeiros, de um pensamento corporal em ritmo descolonial, diretamente atrelado a práticas religiosas e cosmopolíticas interventivas das vidas subalternizadas e da vida em sua imanência, diretamente atrelado ao real dito pelos orixás e seus mediadores. Isso se vincula a uma rede política de solidariedade ética pela liberdade e sobrevivência comuns.
Eis uma das linhas de fuga
mais potentes que resiste
em nosso país em chamas,
feridas, mortes e desagregação
social – a dos que lutam
insistentemente pela vida
criando maneiras para, a
todo custo, fazê-la vencer
a necrocracia que desde o
início até hoje impera aqui.
Havendo no Brasil uma tentativa, de cunho deleuziano, de esboço de uma filosofia pop, trata-se, em Arruaças e no projeto de seus autores, de um pensamento que se alinha a outra direção: como na música, a uma filosofia popular brasileira. Filosofia musical e poética que, não buscando um fundamento exclusivo nem qualquer verdade primeira ou última, parte da multiplicidade das sabedorias e das práticas de saberes do povo das encruzilhadas, das veredas e dos varadouros para, desde as ancestralidades indígenas e africanas, dar um tranco no projeto civilizatório de recorte europeu, “esculachando-o” e, a um só tempo, encantando-o. Do mesmo modo que, para esses “catedráticos das esquinas”, “doutores de rua” ou “filósofas de mulambos”, acostumados a “adequações transgressoras”, há aliados filosóficos e literários de tradição europeia (Espinosa, Nietzsche, Benjamin, Derrida, Kafka…) que se deslocam para encontros inesperados, há também “um forte empreendimento contra o espírito positivista e o conservadorismo que regulam o país”, uma distância “dessas coisas complicadas de epistemologia, metodologia, propedêutica ou outras palavras difíceis”.
Nessa filosofia dos terreiros, das aldeias, dos cruzamentos, em que os pés pisam os solos em dança, luta e caminhada, Kafka, por exemplo, encontra-se com Exu Caveira, Espinosa se encontra explicitamente com Madame Satã e implicitamente com Elegbara, Walter Benjamin vai à Madureira, Simone de Beauvoir, quando esteve no Brasil, deixando Sartre irritado, rende-se ao terreiro de João da Gomeia na Baixada Fluminense, ao qual foi com ninguém menos que Abdias do Nascimento e Darcy Ribeiro, e diz Je suis de la Gomeiá… Com filósofos ou não, são muitas as histórias deliciosas que, página a página, esse livro de textos breves alternando seus autores vai nos contando, ensinando-nos sabedorias populares para práticas contracoloniais que fazem Arruaças funcionar como um “tratado de sobrevivência em tempos de hostilidade”.
Como tenho dito, com alguma frequência, que escrever é tentar esbarrar no real que insiste em escapar, Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo sabem que escrever, tal qual nos interessa por aqui, é, dentre outras coisas, ir insistentemente em direção a um Brasil que teima em se perder, mostrando-nos os traços dessa perda, os rastros históricos do “repertório poético das inúmeras ancestralidades e infâncias aldeadas em nossas margens”, para que eles possam compor em nós um país que, em todas as instâncias, incorpore a relevância maior da cultura popular e do que seu povo é capaz. Afinal, o que pode o povo brasileiro?
Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária na UFRJ. Publicou, entre outros, de Que porra é essa – poesia?, A fronteira desguarnecida e Para que poetas em tempos de terrorismo?
Arruaças: uma filosofia popular brasileira
Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo
Bazar do Tempo
200 páginas – R$48,00