Arca antropofágica

Arca antropofágica

Situada na interseção entre o folclórico e o urbano, financiada pelo establisment e destituída de uma doutrina comum, a vanguarda modernista teve seu potencial subversivo enfraquecido, tornado-se objeto de uma construção historiográfica reducionista e auto-referida, legitimada pela crítica dos anos 40

Marcia Camargos

Com seus desdobramentos políticos e econômicos, a Primeira Guerra Mundial colocou à intelligentsia a tarefa de redescobrir e resignificar o país dentro de uma nova dinâmica. Enquanto nas nações beligerantes o patriotismo assumia sua face mais agressiva, abaixo do Equador ele sublimou-se num retorno aos temas nacionais. Contra os valores importados, impunha-se a essência verde-amarela anunciada pelos cantos anônimos dos sertões, do vaqueiro, do negro e do capira, com escreveria Oswald de Andrade na Revue de l’Amerique Latine, um artigo republicado pela Revista do Brasil em dezembro de 1923.

Se por aqui já se detectava o esforço de penetrar a fundo na realidade, em busca de uma linguagem que expressasse a riqueza étnica e cultural, a Semana de 22 viria a candidatar-se como o acontecimento galvanizador dessa tendência. Mas, nesse processo, os modernistas oscilaram entre a admiração pela vanguarda parisiense e o repúdio aos preceitos francófilos responsáveis pelo academicismo então vigente. Ora partiram em defesa da internacionalização – ao difundirem, ainda que com atraso, as doutrinas em voga no Velho Continente, na tentativa de manter o passo com o ritmo do progresso de além-mar – ora lutavam pela brasileirização da criação plástica e literária.

Autor de Espelho de Ariel, de 1922, Ronald de Carvalho procurava firmar a soberania do país para integrá-lo na civilização latino-americana, gerada em nossa carne e fruto do nosso sangue. Recusando-se a aceitar o produto das enxertias que em sua opinião, infectava a produção artística tropical, aconselhava a não temerem que os chamassem de bárbaros. Deveriam antes amar a sua barbárie, da qual os europeus não podiam mais prescindir.

Entretanto, como lembrou José Paulo Paes (A ruptura vanguardista: As grandes obras), na promoção culta da barbárie, paradoxalmente, foi decisivo o impulso aqui recebido do surto primitivista que contagiou Paris no começo do século 20, como no caso da estatuária africana, apropriada pela escultura cubista. Provocando uma impulsão da modernidade criada no bojo do projeto literário tradicional e substituindo-a pela importação das correntes de vanguarda, os modernistas selaram uma união com o progresso que se processava fora das nossas fronteiras. Proclamando-se nacionalistas, estavam também – e tardiamente, diga-se de passagem – embarcando na voga que assolou a Europa por ocasião do Manifesto Futurista de 1909, lançado na primeira página do Le Figaro. E, como as consquistas tecnológicas do pós-guerra encurtavam tempo e distâncias, agora era possível imitar a França sem o atraso de outrora…

A cruzada do diplomata e poeta Ronald de Carvalho e dos modernistas em geral coloca a nu sua perspectiva crítica ingênua. Para Roberto Schwarz (Que horas são?), ela padece de pelo menos dois problemas fundamentais: faz supor que a imitação seja evitável e impede que se enxergue a interpenetração dos elementos culturais.

A idéia da objeção aos estrangeirismos torna-se ainda mais controversa se levarmos em conta a composição populacional de São Paulo à época, com um significativo contingente de imigrantes. Em 1920, no Correiro Paulista, Menotti del Picchia comentava como era difícil apreender o verdadeiro sentido dos termos nacionalismo e brasileiros, pois se consideravam patriotas prontos a morrer pela terra todos os filhos de imigrantes aqui nascidos. E acrescentava que não eram poucos. Naquele ano, realmente, pelo menos dois terços dos seus quase 600 mil habitantes constituíam-se de estrangeiros que, espelhando a pluralidade étnica da cidade, forjariam o estilo macarrônico imortalizado por Juó Bananére.

Não se pode tampouco minimizar o fato de que a Semana de 22 realizou-se no Teatro Municipal, alugado por René Thiollier, diretor do Jornal do Commercio, junto à Prefeitura, ao preço de 847 mil réis. A elite ilustrada, que  na ausência de órgãos oficiais já vinha, desde o século anterior, tomando para sia tarefa de promover as artes, não se sentia ameaçada pelas propostas insurgentes dos modernistas. Cedendo a eles aquele espaço institucional, consagrado pelo status quo e símbolo da pujança da cidade, a burguesia local – que, aliás, sempre se confundira com o Estado – monopolizava os debates, num momento de crucial importância para a metrópole do café na disputa com o Rio de Janeiro pela supremacia cultural.

O establishment financiou a Semana através de contribuições coletadas por Paulo Prado, convertendo a platéia do Municipal, como registrou Menotti del Picchia, numa “admirável corbeille de elegância, de beleza e de espírito”, graças à presença da “mais fina aristocracia paulista“. Não é de se estranhar, portanto, que no domingo seguinte ao evento, alguns dos seus expoentes – como Graça Aranha, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho e Guilherme Almeida – tenham se reunido na residência de Freitas Valle, deputado pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e típico representante da oligarquia, onde confraternizaram e posaram para a fotografia batizada pelo anfitrião de “Invasão Futurista” na Villa Kyrial. Mecenas e articulador do Pensionato Artístico, quase dez anos antes Valle patrocinara a primeira exposição do pintor Lasar Segall no Brasil e depois concederia bolsas de estudo no exterior a Victor Brecheret e à pintora Anita Malfatti – esta última, a pedido de Mário de Andrade.

Nesse contexto de submissão ao poder político, em que o recrutamento, as trajetórias possíveis, os mecanismos de consagração e as condições necessárias à produção dependiam quase que inteiramente do favorecimento das classes dominantes, os intelectuais não dispunham de um princípio de identidade que os remetesse a vínculos institucionais. Como não se situavam num campo independente como hierarquias e estratégias alicerçadas em critérios estáveis, ao exaltar o nacional nos anos 20, eles obedeciam, segundo Daniel Pécaut (em Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação), ao desejo de escapar dessa conexão subalterna e decretar sua autonomia.

Vocação para mandar

Situada na interseção de folcore e urbanismo, a estética modernista exprimia as contradições e a iconoclastia típica das vanguardas. Mas devido a mecanismos eficientes de propaganda e a sua prática sistemática de exclusão que negava, omitia e se opunha a qualquer manifestação estética divergente dos seus postulados, ofuscou inúmeros autores empenhados no resgate das nossas raízes e na construção da identidade nacional. Na área literária pretendeu tornar seu o inconformismo de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato que, resistindo ao idealismo romântico quanto à retórica superficial e alienada da Belle Époque, deslocaram olhar do litoral para voltá-lo em direção ao interior, focalizado sob uma perspectiva condizente com a conjuntura em transformação.

Projetando-se como corte epistemológico no âmbito da cultura e das artes, espécie de marco zero e divisor de águas, a Semana de 22 foi objeto de uma construção historiográfica reducionista e auto-referida, resultante da posição hegemônica que o grupo modernista, legitimado pela crítica dos anos 40, passou a desfrutar no país. No campo da música, ignorou compositores que influenciaram Villa-Lobos e desempenharam um papel fundamental na formação musical brasileira, como Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald e Francisco Braga – para mencionar só alguns nomes.

Além disso, na lógica da palavra de ordem por eles lançada – uma guerra contra o transplante cultural – residiu sua maior falha, pois, conforme apontou Roberto Schwarz, centrava suas baterias na relação entre elite e modelo, sem incorporar os estratos populares no seu ideário. Foi Oswald de Andrade quem descreveu o Modernismo como um equívoco onde o contrário do burguês não era o proletário, e sim o boêmio, num território onde as massas continuavam ignoradas, enquanto os intelectuais brincavam e de vez em quando “dava tiros entre rimas”.

Da mesma forma, Florestan Fernandes  (A condição de sociólogo) acusou-os de ficarem aquém do papel que lhes cabia – o de críticos da sociedade. Mais do que qualquer outro grupo posterior, acabaram cedendo quando deveriam se opor, sucumbindo a uma condição  a que não lograram renunciar. Para Florestan, eles foram vítimas de um momento de transição, onde a insatisfação com o passado não engendrou o futuro pelo qual se deveria lutar.

O próprio Mário de Andrade, aliás, em crônica no Diário Nacional, em 10 de abril de 1932, afirmava que com o Modernismo se alteraram as maneiras de verseja, espevitara-se um bocado o jeito de dizer, enfeitando-se a nossa escrita de brasileirismos vocabulares: “grande mudança!”. Em 1944, admitiu o engano de quem “combateu lençóis superficiais de fantasmas”, no livro Testamento de uma geração, organizado por Edgard Cavalheiro. “Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como ela está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade de cultura.”

Essas ambigüidades, aliadas à ausência de uma filosofia, de uma doutrina comum a unir seus participantes, que não ansiavam pelas reformas no mesmo grau nem do mesmo jeito, contradizendo-se e entrando em conflito entre si, sufocaram a potência subversiva do movimento, revela Raul Bopp (Vida e morte da antropofagia): “A Arca antropofágica encalhou em São Paulo, com esse material a bordo. Urubu foi ver se as águas tinham baixado. Não voltou mais. Houve imprevistos na descida. Os planos de reação e renovação ficaram num deixa-estar ou acomodaram-se em variantes cosmopolitas. A experiência brasileira do grupo perdeu o seu significado inicial.”

Nada mais natural, portanto, que a trajetória dos vanguardistas  passasse, após 1930, pelo engajamento nos programas culturais do governo Vargas. Participando da máquina de Estado, o Modernismo manteve a linguagem do poder e proclamou sua vocação para elite dirigente.
 Marcia Camargos é jornalista, doutora em história social pela USP, autora de Villa Kyrial: Crônica da Belle Époque paulistana (editora Senac) e co-autora de Monteiro Lobato: Furação na Botocúndia (editora Senac)

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult