Antunes Filho: Tenho que atingir o humano na sua grande extensão

Antunes Filho: Tenho que atingir o humano na sua grande extensão
O encenador Antunes Filho (Foto: Bob Sousa/Divulgação)

 

Antunes Filho tem 82 anos, 60 como diretor de teatro, e nunca encenou Hamlet. Mas esse parêntese em branco está prestes a ser preenchido.

A explicação para a demora tem a ver com a espera por uma espécie de chamado. Não compete a um diretor escolher o momento de montar essa que é considerada por muitos a obra-prima do autor inglês William Shakespeare (1564-1616), defende o mais velho dos encenadores brasileiros ainda vivo.

“Ninguém que tenha montado Hamlet planejou montá-lo. Ele fica em gestação dentro da gente. De certa maneira, ele está sempre lá, pré-montado, esperando. É uma espécie de duplo de quem faz teatro”, diz Antunes.

O príncipe da Dinamarca, ele reitera, manifesta-se no teatro quase como uma entidade: “É ele quem decide: agora eu quero aparecer”.

Nessa breve abordagem do diretor, fica a sensação de uma busca no plano espiritual, embora ele próprio faça contraponto a sua enunciação metafísica: “Olhe a loucura que estou falando!”.

Por isso o cuidado. Antunes avisou que ia montar Hamlet há uns meses, depois tratou de anunciar que iria deixar seu projeto de lado por um tempo.

“Mas não desisti. Estou com muita dificuldade, é isso. Para fazer bem, eu tenho que fazer uma saudação ao teatro. Um saravá! Eu gostaria que meu espetáculo fosse bom o suficiente para brindar essa arte.”

O encenador ainda não sabe apontar sua tradução favorita, mesmo porque as próprias traduções determinam perdas que não dizem respeito somente à transposição da língua. Shakespeare tinha sua própria companhia de atores e costumava reescrever suas peças. Não existe apenas uma versão de Hamlet, e qualquer tradução conjuga, edita, contrai… ou opta por uma delas.

Quebra-cabeça

Três dessas versões são mais conhecidas, e em cada uma há cenas que não podem ser encontradas em seus pares. Hamlet é um quebra-cabeça. “São muitos fatores, além do problema de ter de escolher um elenco”, diz Antunes.

Shakespeare escreveu a peça na passagem do século 16 para o 17, poucos anos após seu filho Hamnet, aos 11 anos, falecer. A relação entre a morte do filho e a criação do texto, no entanto, é discutida apenas como uma possibilidade.

Os que defendem essa teoria, como o teórico britânico Stephen Jay Greenblatt, situam a peça em um período na vida de Shakespeare determinado pela crise da perda.

Lida em sua superfície, essa crise pode ser política: um príncipe vive uma tomada de consciência ao descobrir que sua mãe matou seu pai. Ela, a rainha Gertrudes, estava em conluio com o irmão do rei, e os assassinos se casam e tomam o trono.

Incrustadas a essa sinopse reducionista (afinal, como contar Hamlet em três linhas?), somam-se análises que atravessam os tempos: a psicanálise, por exemplo, pode enxergar ali uma vasta expressão do mito edipiano, da crise desencadeada pelo amor que o filho sente pela mãe.

É isso o que Antunes tem pela frente, e é exatamente o excesso de referências que ele parece querer evitar. “Se eu penso nessas coisas, fico prisioneiro. Eu quero ficar puro em relação a ele. Eu quero ficar olho a olho, uma relação visceral. Não vou ficar preocupado com o documento de identidade dele.”

Com o projeto ainda em fase embrionária, o diretor, de qualquer forma, esboça um olhar de que, sim, tem inclinação política.

“No país em que vivemos, com esses ministérios todos apodrecidos, com o crime banalizado, com a corrupção banalizada… precisamos de um Hamlet para desmascarar essa farsa”, argumenta.

“Bancar o loucão”

Ao embarcar em um fluxo de consciência desenfreado e prestes a trombar com a loucura, o personagem desvenda-se em um tipo que Antunes, de maneira coloquial, define: ele é um sujeito que “banca o loucão”.

Que esse maluco viesse então para, de maneira farsesca, “desmascarar a grande farsa”, conclama o diretor. “Porque nós estamos vivendo uma farsa. A farsa da sociedade de consumo. Do espetáculo. Do sistema político brasileiro.”

Antunes, de qualquer forma, nunca fez uma arte puramente política. Sua busca passa pelo que ele – citando como influência recente o filme A Árvore da Vida, do diretor norte-americano Terrence Malick – chama de “algo planetário”. “Tenho que atingir o humano na sua grande extensão, e isso é muito difícil. Recentemente, o Malick me deu essa dimensão. Uma visão quase cósmica.”

Se o projeto chegar ao fim, Hamlet será o quinto Shakespeare de Antunes. Os outros foram: A Megera Domada, Júlio Cesar, Trono Manchado de Sangue (adaptação de Macbeth) e Romeu e Julieta.

Júlio Cesar, que pertence à fase que Antunes declaradamente classifica como comercial, ainda é considerada por ele uma montagem “catastrófica”. “Não dá para montar Shakespeare em 25 dias. Acabei beijando a lona, e foi bom, porque ali eu vi que eu não era o Super-homem, eu era humano.” O papel principal foi interpretado por Raul Cortez.

A fase comercial acaba em 1978, com a histórica estreia de Macunaíma, adaptação para o romance de Mario de Andrade.

No livro Panorama do Teatro Brasileiro (Global), Sábato Magaldi pondera sobre a montagem da seguinte forma:

“Se a modernidade do teatro brasileiro pode ser datada de 1943, com a estreia de Vestido de Noiva, talvez o marco da contemporaneidade caiba ser definido como o ano de 1978, pelo lançamento de Macunaíma (…). Início da fase de domínio dos encenadores-criadores, a partir da montagem de Antunes Filho para a adaptação cênica da ‘rapsódia’ de Mário de Andrade, e abrandamento da censura, que levou a mudanças da linha da dramaturgia desde o Golpe Militar de 1964.”

Em Macunaíma, Antunes introduz ao seu teatro o elemento cênico que vai se repetir em diversos outros espetáculos concebidos por ele: a utilização do coro, potencializado por um estudo obsessivo sobre a técnica vocal para o palco.

Essa ferramenta lhe serviu em algumas das mais belas montagens para textos de autores gregos, como Medeia (2001), de Eurípides, ou mesmo para a releitura da fábula de Chapeuzinho Vermelho em Nova Velha História (1991), na qual o diretor cria uma língua exclusiva para seu espetáculo.

A partir de 1978, Antunes passa a se dedicar ao teatro experimental junto do seu Centro de Pesquisa Teatral (CPT, mantido pelo Sesc). Suas referências passam a se relacionar então em um contexto histórico mundial. A modernização do teatro no Leste Europeu – o polonês Tadeusz Kantor ainda é uma das referências evidentes no trabalho de Antunes – e mesmo o butô do japonês Kazuo Ohno difundem-se pela metodologia de pesquisa e ensino do diretor.

Antunes passou a ser visto como mestre formador de grandes atores brasileiros. Saíram de seu CPT, por exemplo, Cacá Carvalho, Bete Coelho, Giulia Gam, Luis Mello e, mais recentemente, Juliana Galdino.

“Meu padrinho me fez ler, quando criança, o livro 20.000 Léguas Submarinas e, então, me disse: sua vida será procurar um capitão Nemo. Antunes é um capitão Nemo”, compara Cacá Carvalho. “Ele vem à superfície, mas vive num mundo submerso e nos encoraja pela aventura de fazer mergulhos”, completa.

Nessa descrição, cabe dizer, mora um diretor que, mais do que nos dias de hoje, foi absolutamente afeito ao embate e que, como se tornou não só público como mito no meio teatral, não raro submetia seus atores a um estresse desmedido.

Seu método já passou por broncas que fizeram atores desistir de permanecer na companhia.

Cacá admite. Deixar o grupo de Antunes Filho causou nele uma mistura de sentimentos: “ódio, alívio e amor”. “Não é uma relação significativa simplesmente. É uma relação altamente significativa”, resume.

“A velhice é chata”

Hoje, embora Hamlet pareça querer se manifestar, Antunes mostra-se mais tranquilo. Nas horas vagas, vai à feira que tem perto de sua casa, no bairro do Sumaré, ou se dedica a ver exposições de arte, o que lhe serve como uma espécie de “descanso de toda a bobagem que a gente vê por aí”, resmunga.

Depois da velhice, a vontade de se relacionar com as artes plásticas, e sobretudo com as gerações mais jovens de artistas, acentuou-se.

Antunes admira a criação de um novo campo proporcionado pelas novas mídias e diz que se sente um garoto no corpo de um velho, com vontade de criar também dentro desses novos limites. “A velhice é uma coisa chata. Sou contra a velhice”, brinca.

Em A Falecida Vapt Vupt, o diretor procurou uma relação direta com a videoarte, esforçando-se por elaborar uma adaptação calcada na sobreposição de cenas do texto A Falecida, de Nelson Rodrigues. Um risco que, na base de sua concepção, parece não ter se consumado completamente segundo a proposta de manter um diálogo aberto à fragmentação narrativa e estética – que Antunes tentou emprestar das novas mídias.

A crítica de teatro Beth Néspoli, por exemplo, diz que não conseguiu detectar na montagem a sobreposição de sentidos almejada pelo diretor ou uma construção poética que, como ela diz, a obrigasse, como receptora, a fazer escolhas entre diferentes quadros simultâneos, a correr o risco da perda.

“Não senti que existia a possibilidade de realizar diferentes combinações ou escolhas. Havia sonoridades e movimentações constantes, porém o olhar do público, ao meu ver, rapidamente percebia as cenas a serem acompanhadas, em ágil sucessão como as criou o dramaturgo, transformando os demais elementos em cenografia ou paisagem sonora.”

O Antunes que se prepara para encontrar Hamlet é, portanto, um diretor que parece tatear seu próprio palco em busca de novos horizontes. Como nunca deixou de fazer. Inquieto e perseverante.

(4) Comentários

  1. Também aguardo com entusiasmo, mas me preocupa que ainda não se tenha discutido na mídia o quão boa foi a montagem de Wagner Moura. Assisti de camarote o incômodo das pessoas ao verem o cômico da peça, como se Hamlet fosse apenas tragédia- não é! A parte cômica é hilária e não ameaça o dramático da tragédia. Vamos ver como a versão de Antunes Filho resolve estas e muuuuitas outras questões…

  2. “São muitos fatores, além do problema de ter de escolher um elenco”. Problema? Bem, Shakespeare escrevia para seus atores, ou seu elenco. Na natureza de seu texto está o elenco. Já que hoje é um problema – compreensível – já que cada vez menos os atores sabem falar e ainda diante da imperiosidade das “encenações” que assisto quando me arrisco a entrar num teatro, fica a sugestão: que tal fazer Hamlet sem atores?

  3. Antunes Filho é um genio absolutamente capaz de criar qualquer coisa no que diz respeito ao teatro. E minuciosamente procura a perfeicao em Hamlet, afinal, somente um talento feito Antunes Filho para questionar se ainda nao chegou o momento certo de faze-lo. Grande mestre!

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