Antiambientalismo necropolítico: em torno do assassinato de Bruno e Dom

Antiambientalismo necropolítico: em torno do assassinato de Bruno e Dom

 

 

I- Desacordo de Paris

 

Desde o início do século 21, a mídia internacional trouxe provas concretas do risco crescente das mudanças climáticas. Notícias diárias apontaram desastres naturais cada vez mais intensos e prejudiciais. Como chegamos ao ponto da humanidade colocar em risco sua própria sobrevivência no planeta? Essa é a questão do chamado antropoceno.

 

Na era pré-industrial, havia um equilíbrio na emissão de gases de efeito estufa entre a atmosfera, os oceanos e a biosfera, que se mantinha em torno de 278 ppm de CO2 concentrado. As atividades industriais modificaram esse equilíbrio. Em 1959, chegou a 315,98 ppm (partes por milhão) e foi crescendo ano após ano no mesmo padrão: em 1970, 325,68 ppm; em 1980, 338,76 ppm; em 1990, 354,45 ppm; em 2000, 369,71 ppm.  Em 2014, aumentou 143% acima da média da era pré-industrial, chegando a 398,87 ppm ; em 2015, a 401,01 ppm.

 

Percebe-se que, a partir do pós-guerra, o crescimento é vertiginoso e anômalo. Muitos cientistas alertaram para o problema desde os anos 1960. Até os anos 1990, grandes corporações duvidavam da confiabilidade dos dados alarmantes, contratando cientistas que os relativizassem ou dessem uma interpretação apaziguante. Porém, a magnitude do risco sobressaiu e as lideranças mundiais começaram a ser pressionadas a reagir diante do quadro de uma futura calamidade, depois de muito protesto e difusão.

 

Com vistas a reduzir o aquecimento global para limitar o aquecimento médio do planeta a 1,5 graus, impedindo de chegar a 2,0, foi discutido o Acordo de Paris, assinado em 12 de dezembro de 2015 e entrando em vigor em 4 de novembro de 2016. Até 2017 ele foi assinado por 195 países.

 

O acordo previa uma série de medidas restritivas que implicam numa dura modificação de tecnologia e mercado. Muitos países se comprometeram, o que não significa que estejam verdadeiramente dispostos, nem que seu empenho conquiste resultados substanciais. São muitos passos que envolvem enorme capacidade de transformação, controle e coordenação de diversas entidades estatais e privadas. Não demorou a chegar um presidente que considerou todo esse desafio indesejável e assumiu, de novo, o caminho rentável mais fácil e calamitoso. O que não se esperava é esse presidente ser o da maior economia mundial.

 

Com o mandato de Donald Trump, de 2017 a 2020, houve um verdadeiro retrocesso, pois o segundo maior país em emissão se retirou do acordo. Em 2017, a emissão subiu para 406,76 ppm; em 2021, chegou a 416,45 ppm. Durante esse período, a consciência ambiental global continuou sendo reforçada por toda a imprensa diante do crescimento dos desastres naturais, desta vez em contraponto a um inimigo cínico e abusado, que não mede palavras para atacá-la com teorias conspiratórias na mídia alternativa e mesmo parte da mídia oficial. O contraste entre as medidas do presidente extremista estadunidense e os protestos protagonizados pela jovem estudante sueca Greta Thunberg, o velho bilionário e a representante da nova geração, marcaram um quadro de oposição cristalizada.

 

A surpresa da pandemia revelou implicações não esperadas do colapso ambiental, de modo a incrementar ainda mais a lista de temores e horrores. Por outro lado, a Europa central e a China, com governos menos desastrosos, pareciam estar no caminho do cumprimento do combinado. Já a outra parte do acordo, o financiamento de países pobres, dificilmente pôde ser cumprida.

 

II- Luta entre guerras pela atenção pública

 

No meio do impacto da pandemia, no dia 19 de fevereiro de 2021, os Estados Unidos, sob a presidência de Joe Biden, se reintegraram oficialmente ao Acordo de Paris. Depois desse conturbado histórico de lentos avanços e enormes retrocessos, enquanto o problema só se alastra, imaginava-se que esse novo governo agisse de forma positiva e segura nessa direção, até porque foi uma das maiores promessas da campanha. Apesar da amargura da regressão trumpiana, esperava-se que, finalmente, medidas definitivas compensassem o atraso.

 

O início do governo Biden prometia um robusto “pacote social e ambiental” de US$ 3,5 trilhões, que, devido à pressão de uma visão econômica antiambientalista sempre preponderante no dito mercado, logo foi reduzido para US$ 1,85 trilhão. Desse total, US$ 555 bilhões financiariam incentivos a energias não poluentes. Com maciça votação contrária dos republicanos e a daninha resistência brotada do próprio partido democrata, o pacote estagnou.

 

Logo em seguida, a guerra da Ucrânia foi deflagrada. Não é difícil supor o quanto uma guerra desse porte contraria todas as expectativas de avanço global no desenvolvimento sustentável, seja por causa dos danos concretos dos bombardeios, seja devido ao deslocamento monetário para a produção e consumo de armamentos pesados, que, infelizmente, ocorreu mesmo num país de longo histórico antibelicista desde o pós-guerra, a Alemanha.

 

Um dos mais graves efeitos da guerra foi ter desviado o impulso a todos os frágeis esforços mundiais para a necessidade de energias renováveis, interrupção de desmatamentos e estímulo a reflorestamentos.

 

Dentro dessa discussão, a floresta da Amazônia contém a maior biodiversidade do mundo. Como, então, o governo brasileiro, que abrange o território de 60% da floresta, tem tratado seu maior tesouro, do qual o mundo todo depende? Depois de aproximadamente uma década de considerável redução de desmatamento nos governos petistas, o que tornou o Brasil respeitado internacionalmente, no governo Bolsonaro o desmatamento aumentou 56,6% de agosto de 2018 a julho de 2021. Em Terras Indígenas  houve alta de 153%, segundo o estudo do IPAM.

 

A causa do aumento está no enfraquecimento de órgãos de fiscalização, o que leva a um verdadeiro incentivo a atividades ilegais de pesca predatória, garimpo, extração de madeira, grilagem das terras públicas, narcotráfico e agropecuária. Porém, em meio à enorme crise institucional do país, esse se tornou somente mais um dos abomináveis escândalos. A mídia mundial, entre a pandemia e a guerra, também não tem se devotado muito a esse assunto, para além de reconhecer o desastre do presidente e do ministro antiambientalista do Meio Ambiente Ricardo Salles entre janeiro de 2019 e junho de 2021, sucedido por Joaquim Leite, que mantém a fiel continuidade do solapamento da Funai e do Ibama. Por mais que as bravatas de Salles tenham provocado a revolta de muitos ambientalistas e jornalistas internacionais, a pressão estrangeira se demonstrou débil frente à convicção extrativista e monoculturista de um governo autoritário plenamente convergente com os interesses de grandes corporações multinacionais inescrupulosas, que não deixam de se comprovar suficientemente poderosas. Até que desabou sobre os ombros de todos uma notícia bombástica.

 

O desaparecimento do indigenista licenciado da Funai Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, com a posterior confirmação de assassinato com arma de caça e possível esquartejamento dos corpos, comoveu a tal ponto a comunidade internacional que retomou as atenções em torno do destino da Amazônia. É a primeira vez que ocorre um assassinato de jornalista devido ao desmonte da Funai, e mais, um jornalista inglês, estrangeiro, colaborador do  The Guardian, Washington Post, The New York Times e Financial Times, isto é, de parte dos mais prestigiados veículos internacionais. Agora todos vêem com clareza que, no mundo, assuntos predominantes como a guerra da Ucrânia, e no Brasil, os vários ataques do governo ao STF e TSE têm acobertado a guerra fundamental que, para as consequências do mundo, é bem mais importante do que todas as outras, mesmo que seja difícil dizer qual é mais absurda e alarmante.

 

O devir transtornado da inquietude neoliberal multiplica cada vez mais complicações disparatadas. De todos esses erráticos distúrbios, a depredação da Amazônia é, para todos nós, o mal central, o núcleo de todos os crimes. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips emblematiza a execução de todas as outras centenas de ambientalistas tão dedicados quanto Bruno Pereira, que passaram despercebidos porque não estavam ao lado de um prestigiado jornalista inglês. A morte deles e dos indígenas, guardiões da floresta, representa a nítida antecipação da nossa morte. Ela certifica a dimensão dessa guerra que é antiga, pois existe desde a fundação da colônia no Brasil, mas agora está no auge de seus desdobramentos e consequências.

 

III- Guerra fundamental: contra a floresta

 

Ao longo de toda nossa lastimável narrativa, que não passa de um breve enredo dos pontos mais salientes do chamado antropoceno, percebe-se um conjunto previsível de sabotagem da necessidade de medidas ambientais.

 

Primeiro: diante do aumento da emissão de gases de efeito estufa, a primeira reação foi ignorar ou protelar o problema. Segundo: grandes multinacionais financiaram cientistas negacionistas que, nos anos 90, gozavam de uma respeitabilidade na mídia equivalente aos alarmistas. Terceiro: a indiferença e a protelação da redução de gases deu lugar ao reconhecimento moroso. Quarto: o acordo de Paris foi discutido e assinado por 195 países. Quinto: a maior economia mundial sai do acordo devido ao presidente extremista. Sexto: a pandemia veio acrescentar um novo motivo de temor das consequências do descaso pelo meio ambiente. Sétimo: com novo presidente democrata, os Estados Unidos retornam ao acordo e prometem um enorme pacote ambiental, que, entretanto, não sai do papel. Oitavo: uma nova guerra de implicações mundiais reverte metas sustentáveis e regride a políticas de financiamento de mais armamentos. Nono: a morte de um indigenista brasileiro e um jornalista inglês na Amazônia retoma as atenções para a guerra contra a floresta, um dos principais fatores que vai decidir o destino do planeta.

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.

 

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