Anacronismo e outros erros
(Reprodução)
“Surge então a pergunta: se a fantasia funciona como realidade; se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no fim das contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece realmente mais valioso, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado? Machado de Assis passou a vida ilustrando esta pergunta (…).”
Antonio Candido, Esquema de Machado de Assis
Uma das lições dessa quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus é que o medo e o tédio podem nos habitar quase ao mesmo tempo. Às vezes a alternância entre o pavor da morte e o marasmo do confinamento se passa no ritmo dos segundos. O noticiário de televisão intensifica essas emoções. Não apenas devido ao constante aumento do número de cadáveres que vemos nas estatísticas, mas sobretudo pelas explicações apresentadas: “não há leitos de UTI no Rio de Janeiro”, “os respiradores comprados pelo governo não funcionam”, “não existem equipamentos para os profissionais de saúde em Manaus”, “as pessoas não estão obedecendo ao distanciamento social”. As frases estão mais vazias do que as ruas. Mesmo aquelas que trocamos com os amigos mais queridos num chat qualquer pois nos falta um rosto em que se possa tocar. Faltam os olhos nos olhos e permanece o desejo de algo que nos roube, ainda que por alguns instantes, da sucessões do medo e do tédio.
Essa dificuldade tem levado várias pessoas a curtir a nova onda das lives. A experiência da simultaneidade, seja com artistas famosos, amigos, parentes e namorados abafa um pouco da solidão num mundo que já consegue chamar de “eu” o perfil no Facebook ou no Instagram. Outra alternativa para relaxar são as plataformas de filmes. O capital tem sido generoso com aqueles que possuem internet de banda larga, realiza promoções de diversos tipos e faculta acessos gratuitos hoje, mirando os futuros pagantes de amanhã. Por outro lado, sempre existe aquele livro que permaneceu intocado por anos mas agora encontrou a sua chance em meio a peste.
No meu caso, a coleção das obras completas de Machado de Assis eram os volumes mais atraentes da estante. Difícil era saber por qual deles começar. Romances e contos, mesmo na prosa dos grandes escritores, podem descambar em alguma forma de marasmo. Uma narrativa longa tem sempre um capítulo mais complicado para se seguir adiante e, por vezes, uma estória, mesmo curta, nos faz emperrar nesta ou naquela frase. A solução foi o volume quatro dedicado às crônicas. Uma leitura em que as ansiedades dessa quarentena podiam se diluir na imaginação perdida nas atualidades de outros tempos. Os últimos acontecimentos vinham da peça A história de uma moça rica, o concerto musical Mosqueteiros da rainha e fatos inusitados como o aparecimento de uma baleia nas praias de Copacabana, então uma região de pescadores. Mesmo coisas tristes como a morte prematura do poeta Casimiro de Abreu não eram doloridas pois toda gente de hoje sabe que o passado, se foi também um futuro incerto aos homens e mulheres de outrora, agora é parte indelével de seu destino.
Talvez tenha sido essa constatação que logo na terceira manhã de leituras, precisamente nos Comentários da Semana de 1º de Novembro de 1861, destruiu toda a minha esperança de alienação do presente. De certa maneira, meio sibilina, Machado havia me alertado para o problema no dia anterior quando informou: “falei de esperanças abertas em flor; falarei de esperanças mortas também em flor”. Mas poucos suspeitam da verdade quando esta lhes é desagradável e ainda nas primeiras linhas começou a surgir, frase depois de frase, a descrição do Brasil de nossos dias. Não falo do “Brasil contemporâneo”, no sentido abrangente que encontramos em Caio Prado Jr., mas do Brasil atual, o país da semana passada, com pandemia e tudo:
O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. (…) O que dá razão a este marasmo? Causas Gerais e causas especiais. Foi sempre princípio do nosso governo aquele fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas com o destino. O que há de vir, há de vir, dizem muitos ministros, que, além de acharem o sistema cômodo, por amor da indolência própria, querem pôr culpa dos maus acontecimentos nas costas da entidade invisível e misteriosa, a que atribuem a tudo.
O princípio fatalista de nossos governos… palavras nas quais se lê sobre o atual presidente, no último sábado, em um jet ski, explicando aos apoiadores, gente do setor de aviação chateada com a baixa no movimento: “é uma neurose (as medidas de distanciamento social), 70% vai pegar o vírus, não tem como…”. Por “vírus” entenda-se “a entidade invisível e misteriosa” a que se atribui a causa de todos os maus acontecimentos. “Não há política” e os brasileiros estão desamparados das instituições competentes em meio a maior crise mundial da saúde pública. Pena mesmo é serem frouxos os laços que, segundo Machado, nos prendem a sina dos povos orientais, posto que fazem muita falta os respiradores da China.
De qualquer maneira, voltemos às últimas notas da semana passada, expostas pelo autor. Não houve maior prova de “amor à indolência própria” que aquela dada por Regina Duarte, ministra da cultura, quando interrogada sobre as consequências da ditadura para cultura brasileira e a ausência de auxílios governamentais aos artistas sem emprego devido ao avanço da Covid-19. Primeiro ela dançou e cantou: “pra frente Brasil, salve a seleção, não era bom quando a gente podia cantar essa música”. Sobre as pessoas que morreram nos porões do DOPS afirmou: “na humanidade não para de morrer [pessoas], se você fala vida, do lado tem morte (…) tortura, sempre houve tortura (…) Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas”. Gente assim, narra o cronista, “dorme à noite com a paz na consciência, uma vez que de manhã tenha assinado o ponto na secretaria”. E meditando sobre esse sono dos justos realizou uma grande descoberta:
Está dada a razão por que [este governo] subiu no meio das antífonas e das orações dos amigos, apesar do travão de fel com que alguns quiseram fazer-lhe amargar a taça do poder. Diziam estes: “É um Ministério medíocre”; mas, por Deus, por isso mesmo é que é sublime! Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão; para os que tem a fortuna de não se alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do Estado se coze e tosta o apetitoso pão de ló, que é depois repartido por eles, para a glória de Deus e da pátria.
“Brasil acima de tudo, Deus acima todos”. A mediocridade é um brasão. A vulgaridade é um título. Mas brasões e títulos de verdade sem que haja razão em amargar com fel a taça do poder. Explico melhor este grande achado do cronista: se você mora em um país onde o secretário da pesca vem lhe explicar que os peixes são inteligentes e escapam por si próprios dos acidentes ambientais, como fez o senhor Jorge Seif Junior, é porque a vulgaridade trocou de sinais. Não pertence mais ao pólo negativo dos valores. É boa, bela e verdadeira. Parte inseparável da própria realidade. É como um hospital de referência com leitos de UTI vazios em plena pandemia. Justo o que se passa na zona norte do Rio de Janeiro, no Hospital Federal de Bonsucesso. Daí que nosso autor, sempre realista, flagre nessa transvaloração brasileira dos valores a existência de “um sentimento de caridade, ou direi mesmo, um princípio de equidade e justiça. Por toda parte cabem as regalias às inteligências que se aferem por um padrão superior; é bem que os que não se acham neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra”.
No dia seguinte àquela leitura perturbadora o país havia enterrado mais de 11 mil vítimas da Covid-19 e voltei uma vez mais para a fatídica crônica. No trecho final, que escapou a minha atenção na manhã anterior, julguei adivinhar novos comentários sobre os dirigentes da nação: “esse povo, que vive no requinte dos prazeres materiais, só entende o que lhe fala aos sentidos, e considera bem-aventurados os que morreram, que já gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo profeta”. Todavia, neste ponto, Machado de Assis não se referia ao Brasil, mas aos costumes religiosos dos povos orientais na Turquia.
Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Membro do Núcleo Afro/CEBRAP. Autor do livro O Massacre do Libertos: sobre raça e república no Brasil.