Amor digital
Marcia Tiburi
A história da teoria e da prática do amor está intimamente ligada a uma conceituação do corpo. O que entendemos por corpo está, por sua vez, condicionado às teorias e práticas da ciência e da tecnologia. O amor platônico é das épocas dualistas em que corpo e alma se opõem. O amor romântico é o do tempo da crença na procriação e no casamento e, por isso, é amor regulador do corpo das mulheres. O amor livre dos anos 1960 e 70 do século XX resulta de uma compreensão do corpo como experiência do prazer e de uma liberdade possível. Assim é que cabe avaliar o estatuto do que chamamos de amor em uma era digital.
Não é possível não falar desse afeto essencialmente corporal quando suas novas formas revisitam os modelos mais antigos e as mesmas questões teológicas que fizeram sua história mostram-se inultrapassáveis. Como sempre tivemos medo do corpo, natural que tenhamos também medo do amor que dele provém, no sentido mais primitivo de sua experiência. Aprendemos o amor como o aconchego máximo no corpo do qual nascemos. Podemos dizer que o amor é o modo de ser de nossos corpos mamíferos que sobrevivem no calor. Normal que uma cultura da produtividade e da competição desenvolva o horror ao corpo, já que abandonar-se a ele seria abandonar-se a Eros.
Eis a hipótese básica da teoria freudiana que contrapõe Eros e civilização. Assim é que, de aconchego e prazer do corpo, o amor tenha sido sublimado em linguagem e, em sua forma mais antiga, a do mito com o qual ainda não perdemos o contato. Embora o amor tenha vários significados, ontem como hoje ainda vemos o amor como um deus – o que os gregos chamaram Eros e os latinos chamaram Cupido. Passamos a entender isso que os gregos chamaram Eros como o próprio amor romântico. O afeto – ideia e prática – que um amante dedica a outro é necessariamente mediado pela imagem de um deus que nada mais é do que um agente mediador de uma relação. Assim, o mito de Eros expõe um jogo sagrado: flechando o desavisado, Eros o condena ao pathos, ao afeto que ultrapassa sua capacidade de autocomando pela razão.
Meios para chegar a fins
Absorvidos nessa experiência, aqueles que falam “do amor” pronunciam-se sempre segundo uma perspectiva hipostática, como que falando de uma substância sobrenatural e não de uma invenção cultural articulada em discurso e, como tal, fala pronta que pode ser repetida ad nauseam. Posto como verdade ancestral que suspende a questão do poder e da política própria a qualquer discurso, a compreensão romântica do amor é uma redução que favorece uma sublimação do corpo. É o corpo, o grande abismo, que os discursos do amor se especializaram em evitar. Mas, se antes o discurso vinha da Igreja e do Estado, instituições que detinham a máquina ideológica, hoje ele provém de democráticas mediações virtuais que naturalizam o artificial. Quem precisaria da flecha do Cupido quando tem a internet por perto?
O amor é histórico. Muda conforme mudam os meios pelos quais se estabelece uma relação com o corpo do outro. A forma de relação a que chamamos amor sempre foi mediação em relação ao abismo que é o corpo do outro. Essa mediação foi ideológica, poética, religiosa, científica, estética, política e filosófica. Atravessado por teorias, o amor foi também fruto dos media, dos meios de comunicação que, historicamente, permitiram que seres humanos se relacionassem uns com os outros. O amor romântico começa com a poesia, segue por séculos com a troca de cartas, chega à literatura pelo romance, expande-se contemporaneamente por meio de chats, plataformas virtuais e redes sociais em geral.
Os meios sustentam discursos e, assim, abonam a existência do corpo manifestando que a história do amor é a da morte da libido pelo triunfo do discurso. O amor é, entre nós, basicamente o desejo pelo corpo do outro, mas esse desejo pode prescindir do corpo como se pode perceber na ideologia do amor platônico – como amor idealizado – que avança no romantismo como culto a uma mulher idealizada, intangível, doente ou até morta. A versão contemporânea do amor digital, este amor que se estabelece como uma relação de linguagem possibilitada pela vida dos dedos sobre as teclas, impõe-nos pensar a máximarealização do discurso e da idealização. A era digital vem confirmar que não é apenas o corpo que lançamos no abismo, mas que podemos, na verdade, nos livrar de todo abismo pelo discurso.
O amor tornou-se facilmente uma forma de discurso que determina relações corporais como institucionais. Seja o da Igreja afirmando que o que Deus une o homem não separa, que teologiza a instituição do casamento, sejam as memórias do conquistador Giacomo Casanova, que pelo menos rendeu boa literatura, seja a conversa do conquistador que antes da revolução sexual usa sua “lábia” como único modo de acesso ao sexo com uma mulher antes que os rituais institucionais legalizassem a questão. O amor digital não precisa da passagem ao corpo, pois o que ele garante é um completo conforto distante do corpo pela substituição da libido. Enquanto falo, não faço, e, assim, economizo tempo, o risco de doenças, o sofrimento como um risco emocional. Garanto, assim, a sustentação da economia política dos afetos.
Questão semiótica
O amor é basicamente ligação. É aquilo que liga nosso corpo à nossa linguagem. Como questão corporal e como prática discursiva, o amor é também um problema semiótico sempre dito por meio de signos que o sustentam. A esse propósito é interessante lembrar que o signo mais importante da história do amor, a saber, o coração, perdeu seu estatuto. Por meio dele podemos compreender a crise do afeto mais desejado da história humana. Crise que se deve ao fato de que a sociedade, seguindo a medicina moderna, creditou ao coração a posição de órgão da vida e da morte por muito tempo. Desde que o coração deixou de ser o órgão da vida, o que aconteceu quando uma comissão de médicos de Harvard propôs o conceito de morte cerebral, no fim dos anos 1960, a semiótica cotidiana e poética do amor está prejudicada, afinal, continuar usando o coração para falar das tais razões desconhecidas perdeu o sentido. Essas razões são descartadas na nova ordem do amor digital.
Sem o coração o amor entra na era cerebral. As desvantagens das razões do coração aumentam com o avanço das ciências do cérebro que, em algum momento, farão um mapeamento do amor. A complexa questão do cérebro, no entanto, serve aqui apenas para lembrar que ela combina bem com os novos tempos do amor digital, posto que o cérebro é órgão análogo ao computador. Se o amor é afeto que nasce de nossas necessidades corporais, se ele é memória do aconchego, o amor em tempos digitais vem apenas mostrar quão distantes estamos de nossos corpos desde que nos bastamo nos meios pelos quais podemos praticar um amor sem corpo.
A era digital impõe pensar teorias que orientam práticas, sobretudo, que uma teologia-política do amor se transformou em tecnologia-política. Prática digital de nosso tempo, o discurso amoroso sempre se valeu da impossibilidade do amor alcançada pela idealização. A mais nova versão do amor para além do corpo é esse amor digital que, sem corpo, e pela ponta dos dedos, vem digitalizar a experiência corporal mostrando-nos que, neste mundo secularizado permanecendo na mediação, estamos no ápice da teologia. Amor digital é a vida da relação em que, jogando fora o corpo, mantemos apenas o que nos liga a ele sem que, paradoxalmente, ele esteja entre nós. Eis que o “desejo do corpo” tornou-se um “desejo dos dedos” medido em caracteres. Cada teclada vale como uma flechinha lançada a fundo perdido no deserto onde o desejo sem ter o que alcançar não sobreviverá sozinho.
(10) Comentários
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Estamos falando de extremos, Márcia? Afinal, hoje em dia não é raro encontrar em nosso círculo de amizades alguns casais que se conheceram através da internet e, posteriormente, encontraram-se no “tête-à-tête” superando o “tecla tecla”. Mas quando não ultra/passa os “dedos”, então creio que já podemos falar em desejo que se satisfaz em não se satisfazer. Eis o melancólico narcisismo.
Não sei se trata-se de uma ausência do corpo ou um excesso do próprio corpo que se exacerba de si. Um espécie de narcisismo auto-consumível. No amor digital existe imagem, e a imagem que excita é a de si próprio não a do outro. São as possibilidades de si que seduzem, encantam… belo texto Marcia!
Muito bom seu texto, sempre me surpreendo com as percepções dos assuntos. Parabéns.
Tudo igual na fortaleza dos amantes.
Marcia, tão certeira e justa, voce traçou toda a História das origens da insatisfação. Porque sempre a princípio nossos atos decorrem do amor; maldita seja a tologia política, quando somente sobrevive com subversões de princípios. O corpo é adorado, mas “em última instância, é o pecado, ou princípio do fim”. E se não tiver dentro de um padrão esperado – lei teo-política-mercadológia.
“A mais nova versão do amor para além do corpo é esse amor digital que, sem corpo, e pela ponta dos dedos, vem digitalizar a experiência corporal mostrando-nos que, neste mundo secularizado permanecendo na mediação, estamos no ápice da teologia.”
E os fieis agradecem a concessão dos dedos, enquanto os aproveitam para pervestir os anéis, já que o resto está perdido aos valores da imagem; e sequer me lembro quando o cérebro excitava, e emávamos os virtuosos da civilização.
Bom, sempre que leio esse tipo de visão, me vem a idéia do “conservadorismo nostálgico” a mente, por mais que que não veja nada de melhor nos relacionamentos “antigos”.
Não entrarei em Freud porque não me apetece, mas a questão da desvalorização do corpo em prol da “theoria”, da razão, vem certamente do modelo socrático-platônico, como muito bem colocou Nietzsche, inspirado pelo Blake. Lembrando que o tecnicismo e a necessidade produtiva, são de um “modeus operanti” ocidental, vinculado ao racionalismo, falando a grosso modo.
Há culturas onde a palavra “amor” não emergiu como conceito. Estas então não conheceriam o amor como nós? Seria o amor um produto de “um discurso” como colocado?
A internet trouxe a possibilidade de experimentações em relacionamentos em níveis muito grandes. E, eu vejo isso como um grande avanaço, e não como retrocesso ou de forma negativa. Dificilmente alguém se contenta apenas com teclas, se as utilizam é como meio de irem do “virtual” ao “real” com maior facilidade, que é o que acaba acontecendo.
A possibilidade de conhecer pessoas que não conheceríamos sem a internet, e a possibilidade de uma “aproximação” muito mais facilitada, torna possível um número de relações muito maior, e consequentemente, um aprendizado muito maior. E esse aprendizado comtempla também o aprendizado em lidar com os niveis de idealização muito grandes que acontecem pelo meio vritual. É um processo.
Desculpe, mas, pra mim, amor não é nem nunca será “desejo pelo corpo do outro”. O desejo viria do prazer pelo corpo do outro, mas prazer eu posso ter me masturbando ou pagando pelo corpo de outrém, satisfazendo ou aplacando o “desejo”. E, o desejo que se sustenta somente no prazer, é efêmero, “tristeza pós-coitum”, alguns chamariam…
Pessoas que têm relacionamento “real” e têm que sustentá-lo virtualmente passam por imensas dificuldades, acho que todos nós conhecemos histórias assim. O que digo é que a ausência da presença física é difícl; sendo assim, é muito complicado falar sobre “amor virtual”, que se sustente só através dos “dedos”. A necessidade de contato é preemente.
Muito mais que uma forma de maior “idealização” pela linguagem, me parece uma forma de confrontar a idealização e lidar melhor com ela.
Exatamente pelo fato da possibilidade de idealização ser maior, quando o contato com o “real” acontece, nos damos conta (em maior ou menor grau) da imagem que construímos ou nos deixamos levar.
Achei bastante forçados os argumentos na “questão semiótica”, mas já escrevi demais por hora…
Abraço!
Muito bom seu texto, claro e atacando o ponto fundamental da questão, inclusive podemos dizer que há uma alienação do corpo em relação ao que os dedos buscam como realização de sonhos e fantasias. O que não se pode fazer com o corpo, é feito apenas virtualmente…quando não se consegue realizar os desejos com o parceiro, o corpo é esquecido (alienado) e realiza-se virtualmente! Marx ia adorar isso! bjs
A busca por um amor diferente e o que faz a procura por um amor virtual,ou o que esta a nossa frente nao nos atrai mais ou e a carencia em perceber as pessoas mais proximas?Talvez sim,a imaginaçao,a espera,os dizeres ,as frazes tudo isso fortalece uma paixao,mas saudade a ausencia desfaz todo brilhantismo da paixao,do amor virtual,tem tambem a loucura de se achar louco por amar alguem que so conhece por linhas virtuas,mesmo com toda a possibilidade tecnologica de vermos a pessoa pela a tela do computador ,ainda sim somos bem materialista ,precisamos do cheiro ,do toque,do sexo ,nao vejo a perda do corpo fisico,nessa questao,porque se ao longo nao encontrarem nada vai fazer esse amor durar.
Eduardo Marques, tenho pra mim – respeitosamente e pelo debate – que sua leitura foi um pouco precipitada. Quando se falou do “corpo”, não se tinha em foco apenas a carnalidade da questão amorosa, mas sobretudo o impulso mais basal que nos leva ao outro. Impulso este institivo, bruto, não passível de racionalização, único, pontual em relação aos envolvidos, pontual em relação ao contexto, íntimo e irrepetível.
Esses eventos idiossincráticos que – ao desconsiderarmos o corpo – jogamos na vala comum conceitual da palavra amor. A associação imediata corpo/sexo me parece já uma catalogação a partir do abstrato. Variáveis relevantes de uma pulsão complexa/absurda.
“O amor tornou-se facilmente uma forma de discurso que determina relações corporais como institucionais.”
A institucionalização deste “impulso mais basal nos levaria ao outro” como “amor” – discurso e conceito – nada mais é que uma regulação que leva à uma perda (ou desconsideração) de possibilidades, de experimentações e do risco de caos. Risco do caos como potencial, embora desconcertante, de (des)construção da realidade.
Marcia Tiburi, muito bom o texto. Uma saborosa provocação.
(palmas/to 15out2010)
“Cada teclada vale como uma flechinha
lançada a fundo perdido no deserto
onde o desejo
sem ter o que alcançar
não sobreviverá sozinho.”
Ter-me com pessoas bem formadas, estudadas em boas escolas e sempre bem relacionadas desde o berço, custa-me um esforço descomedido, portanto não seria piegas pedir-lhes paciência por meus erros e defeitos. “A possibilidade de conhecer pessoas que não conheceríamos sem a internet, e a possibilidade de uma “aproximação” muito mais facilitada, torna possível um número de relações muito maior, e consequentemente, um aprendizado muito maior. E esse aprendizado comtempla também o aprendizado em lidar com os niveis de idealização muito grandes que acontecem pelo meio vritual. É um processo.”
Em outras palavras, ou sutilmente, mantendo a pertinência ao tema, o advento da internet colocou em cheque, ou revelou, as origens e “consequências” de qualquer relacionamento baseado ao conceito de amizade, suas escalas para o “bem” e para o “mal”, segundo os desejos e carater dos envolvidos. Toda amizade, portanto, é o “processo” de construção ou desconstrução de cada ser, direta ou indiretamente, repito, envolvido.
“Como sempre tivemos medo do corpo, natural que tenhamos também medo do amor que dele provém, no sentido mais primitivo de sua experiência. Aprendemos o amor como o aconchego máximo no corpo do qual nascemos. Podemos dizer que o amor é o modo de ser de nossos corpos mamíferos que sobrevivem no calor.”
Apesar de incontestável tal afirmação, quando levada à realidade digital, torna-se aparentemente absurda. Conseguir tal “calor”, até formalizarmos religiosa e cientificamente, via virtual é possível apenas de duas formas: do próprio excitar-se ou devido ao excesso de tempo com a literal máquina ligada. Então, afora outras formas não ortodoxa de conhecimento, porque existe religiosidade tão “oficial” quanto a ciência, esta questão é muito oportuna e segue em aberto. Não se pode considerar mesmo fadada ao fracasso.
Eu, desde sempre, acredito numa possibibildade de ter-se ao outro, e vici e versa, de corpo e alma, inseparáveis, desconsiderando mesmo as dimensões temporais e espaciais. Com muita vantagem ainda, vide o exemplo de criatividade: o fenômeno Deus.
Infelizmente qualquer pessoa tem todo o direito de pensar o que quiser, mas a questão muito relevante é o que pensa, e agravando muito a situação – o que lembra muito as idéias de Raul Seixas – é onde – quê e de quem – o espaço – está pensando. Ah, novos espaços – virtuais! – que controlam o tempo de quando e o que pensar.
Graças a Deus, fora do mercado, é claro, consegui publicar.
Acho interessante qnaudo tentamos aplicar uma noe7e3o de tempo entre grandes transformae7f5es sociais e mais interessante ainda prever a prf3xima transformae7e3o.Alguns fatos interessantes sobre preparae7e3o/inflexe3o tecnolf3gica:A mateme1tica e a fedsica veam evoluindo e0 mileanios no sentindo da automatizae7e3o dos ce1lculos.O embrie3o da Internet nasceu na de9cada de 60, um pouco antes da computae7e3o pessoal.Foram cerca de 15 anos de Web ate9 algue9m cunhar o termo Web 2.0.Olhando de dentro do mundo da Cieancia da Computae7e3o, tenho uma vise3o ranzinza:No geral: Penso que a Cieancia da Computae7e3o e9 um mundo altamente imperfeito. No hardware: A arquitetura vigente foi criada tambe9m na de9cada de 60. Na usabilidade: Por mais que hoje haja mobilidade e telecomunicae7e3o, ainda estamos sempre presos he1 uma tela redgida e bidimensional, um teclado e um mouse. O computador ne3o compreende de fato nossa vf3z, ne3o enxerga o contexto das nossas buscas, nem permitem uma relae7e3o REALMENTE rica com a informae7e3o. A computae7e3o realmente onipresente (ubedqua) este1 LONGE. Na Engenharia de Software: a formae7e3o dos programadores e9 apenas razoe1vel nas melhores universidades. Os cronogramas atrasam, empresas disputam a tapa arquitetos e projetistas realmente competentes. Os programas de3o pau, ne3o rodam em qualquer plataforma, maleme1 se3o internacionalizados. Desenvolvedores discutem a linguagem que vai tornar seu trabalho mais fe1cil e mais re1pido e a evengelizam como se ela fizesse o cafe9 pra vocea tambe9m, sendo que suas bases se3o iguais as das outras.Este3o fazendo avane7os, muitos avane7os em todas essas e1reas, ora, mas e9 claro, mas mesmo assim acho que seu pra sacar que, no meu ponto de vista, tal ponto de inflexe3o este1 um pouco mais longe do que pensamos.