Amazonas nunca mais

Amazonas nunca mais

Ua:Brari (1990), relançado agora pela Objetiva, foi a terceira tentativa de Marcelo Rubens Paiva no gênero romance. Trata-se de uma aventura nas selvas amazônicas: o jornalista Fred é convidado a participar da expedição de resgate de um jovem herdeiro paulista, seu amigo de infância, que abandonara tudo para reaparecer como profeta cultuado por índios e caboclos, na fronteira entre Venezuela e Brasil.

O enredo guarda vaga semelhança com a expedição de Marlow ao Alto Congo em busca do enlouquecido Kurz de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, combinada com a viagem de Euclides da Cunha que deu origem a Os Sertões. Entre os dois relatos e Ua:Brari, contudo, medeia um Amazonas literário. A começar pelo fato de que o nervo da narrativa de Paiva está dado menos pela selva, ou pelo fenômeno do messianismo, do que pelo quadrado erótico na base da aventura: Zaldo, o profeta, tinha sido amante da noiva de seu irmão, Júlio, a mesma Bia que também era amante de Fred, que seguia viagem ao lado do irmão traído. De erotismo, porém, nada mais digo, tão canhestra é a composição das cenas de sexo.

Acrescento que Zaldo havia abandonado a família e se embrenhado na selva porque era bom e honesto e não suportara descobrir as falcatruas do pai; e ainda que se aliara a um capitão do Exército, e que juntos traçaram o plano de reunir as populações amazônicas num movimento revolucionário capaz de libertar a América Latina. Isso tudo, “antes” de Zaldo enlouquecer, tomado pelo “fator amazônico”, e dar feitio messiânico à ação.

Se o enredo parece ingênuo e inverossímil, rocambolesco e previsível ao mesmo tempo, deixemos suas águas rasas e tomemos o val do estilo.

Notável é o emprego de frases interrompidas ou, inversamente, distendidas, nas quais o sinal de dois-pontos, ou o de ponto e vírgula, suspende o fim da frase para lhe acrescentar algum pormenor explicativo: “Se me movesse, meu fim: ressaca”; “Muitos homens armados; guerrilheiros”; “Cada qual numa experiência única de adoração; a sua revelação”; “Sofro de uma doença incurável: desilusão”; “Respirei fundo: irritação”.

Um leitor de boa vontade talvez imagine que o gosto pelos dois-pontos seja uma homologia da forma “ua:brari”. A hipótese apenas acrescentaria impropriedade ao uso, já que os dois-pontos do título são um sinal fonético de alongamento da sílaba, nada tendo a ver com o emprego do sinal ortográfico do português.

A esse tipo de narração engasgada e alusiva, articulam- se outros procedimentos que a acentuam. É o caso das inumeráveis enumerações: “Na mesma pista, carros com bicicletas, pranchas de surfe e de windsurfe, pipas, balões de gás, crianças e pais excitação-domingo- sol. Parques, plays, circos, shoppings nas margens, atraentes opções”. Com sorte, esse tipo de lista vale como um apressado “etc.”, jamais como índice convincente de uma experiência.

Outro aspecto da mesma inépcia em engatar a narrativa está no uso abundante de frases com verbos no gerúndio e no infinitivo, o que dá mais ideia de agenda burocrática do que de observação direta: “Morumbi. Alamedas semidesertas, árvores em toda parte, empresários-cooper, empregadas levando cachorros para passear, sorveteiro apertando a buzina”; “Revestir-se de proteção, defender-se sozinho e começar a fazer planos: ir embora, o mais rápido possível”.

De novidade mesmo, há a trívia. A certa altura, um personagem experiente com índios menciona os “mubras”, índios que resistiram à colonização. Não seriam os “muhra”? Também diz que “o rei Sebastião foi um monarca português, que sumiu em Marrocos, no século XVI. Seu pai, quando rei, morreu, e o tal Sebastião estava voltando para casa, para assumir o trono, quando desapareceu”.

O pai de dom Sebastião morreu mesmo, como tinha de ser, mas meses antes de o filho nascer e sem nunca ter sido aclamado rei; o rei era o avô, dom João III, que também não morreu quando ele “estava voltando para casa”, pois a essa altura ainda era menino. O sumiço foi muito mais tarde, quando o tal Sebastião, que já tinha assumido o trono havia anos, se lançou na fatídica batalha de Alcácer-Quibir. Mas, claro, são detalhes: irrelevantes.

(4) Comentários

  1. profAlcir, crítico brilhante que não se compõe com panelinhas,um intelectual verdadeiro.É ótimo saber que mensalmente vai escrever na Cult.obrigada e parabéns.

  2. O professor alcir pécora como colunista fixo da Cult é ótimo.
    Eu o considero o melhor crítico do país,depois de Antonio Candido,claro.

  3. Mas se o professor Alcir detestou tanto assim, como conseguiu ler até o final e, pior, por que fazer uma resenha sobre ele? Ah, sim, para fazer polêmica, chamar atenção. Não seria melhor indicar livros que ele gostou? Este tipo de jornalismo é tão anacrônico…

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