“Abnegação 3: restos” – o teatro como espaço comum às grandezas negativas

“Abnegação 3: restos” – o teatro como espaço comum às grandezas negativas

 

 

A palavra “abnegação” foi introduzida no português no século XVI e provém do latim abnego (recusar, negar, denegar) cujo uso na cultura irradiada a partir de Roma não aparece antes do poeta Virgílio (70 a 19 a.C.), de acordo com o Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire de mots, de Alfred Ernout e Antoine Meillet. Incorporada mais tarde à língua da Igreja, adquiriu o sentido de “renúncia a”, dando origem, no baixo latim,à forma abnegatio, ligada à ideia de denegação ou negação. Do ponto de vista religioso, a abnegação diz respeito à renúncia ascética à própria vontade em função de anseios místicos ou de princípios advindos da religião. Nos Evangelhos de Mateus e Lucas – XVI, 24; IX, 23, respectivamente – está escrito: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo/renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me/tome a sua cruz cada dia e siga-me”. Entretanto, para a filosofia, a negação de si não representa propriamente perda; constituindo, antes, a ideia de reencontro com a verdadeira identidade. No âmbito da ética, a noção de abnegação implica o sentido de sacrifício voluntário dos próprios desejos, da própria vontade ou das tendências humanas naturais em nome de qualquer imperativo ético – o que teria levado o poeta Paul Valéry (1871-1945) a tratar do conceito de “abnegação heroica” entre os franceses. Por fim, na psicanálise, “denegação” – forma linguística desdobrada de “abnegação” – é o termo proposto por Sigmund Freud (1856-1939), em Estudos sobre a histeria, para caracterizar “um mecanismo de defesa através do qual o sujeito exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou existência recalca”, de acordo com o Dicionário de psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon.

Consciente ou não dessa miríade de sentidos, o grupo Tablado de Arruar nomeou de Trilogia Abnegação a reunião de seus últimos trabalhos – os espetáculos Abnegação 1, Abnegação 2: o começo do fim e Abnegação 3: restos (cujos textos são de autoria do dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra) –, que vêm sendo apresentados consecutivamente desde junho no Sesc Ipiranga como parte integrante do projeto da companhia de comemoração de seus quinze anos de existência, projeto esse que conta ainda com um ciclo de debates, de que participam convidados especiais, e laboratórios de interpretação e de dramaturgia ministrados por membros do próprio grupo. No texto do programa que apresenta a trilogia, o diretor e ator Clayton Mariano declara que a preocupação constante que vem perseguindo o trabalho do Tablado de Arruar desde sua criação é a imbricação de forma artística e conteúdo político, depurada, segundo ele, nos trabalhos dos anos mais recentes: “A relação entre forma e política se desdobra em forma dramatúrgica, e, portanto, literária, e em forma cênica – centrada basicamente na investigação do trabalho do ator”. Interpretação e dramaturgia são, assim, os dois pilares a dar sustentação à atuação da companhia, que na Trilogia Abnegação se deixam impregnar pela ideia de negatividade, ainda segundo Mariano: “… trata-se de uma forma literária que trabalha a partir do negativo, seja pela via do gesto direto da destruição, seja pelo impulso de abrir fissuras, como em uma incisão cirúrgica. O objetivo é, em um sonho provavelmente impossível, o da exposição daquilo que se esconde por trás da realidade”.

Embora o conceito de negatividade seja por demais amplo e complexo, é possível perceber e compreender em cada um dos espetáculos da trilogia a elaboração de um sentido negativo específico – bastante atraente não só pelos efeitos de estranhamento que tal senso de negação (ligado às ideias de renúncia e destruição) direciona à plateia, mas também pelos mecanismos de controle que texto e interpretação exercem sobre tais efeitos, resultando em conteúdos desabridamente pulsionais que, de modo paradoxal, não abrem mão de rigor e elaboração formais. Entretanto, como seria de se esperar, cada parte da trilogia logra resultados diversos. Abnegação 1 é uma espécie de diamante bruto, cuja grande qualidade parece residir no estranho clima de exasperação e desespero que vai enovelando as figuras ligadas a determinado partido político em cena, sem que seja possível nomear o mal que os aflige,no plano da grande estrutura semântica da peça, ou dar nome aos bois, no plano da concretude política que o texto corteja de tempos em tempos. Abnegação 2: o começo do fim investe em proposta conceitualmente mais ousada, entrelaçando dois núcleos narrativos: a de um grupo de dirigentes de um partido político envolvidos em atuação criminosa – uma clara alusão ao episódio do assassinato de Celso Daniel – e a de uma série de figuras cindidas entre o real e o impalpável, expostas à violência sem sentido. Embora o dramaturgo tenha defendido, em interlocução com este crítico durante a temporada regular da peça, que a proposta de Abnegação 2 é “olhar para o que incomoda com as ferramentas do próprio incômodo”, de modo a se “conhecer o que não quer ser conhecido”, ainda nos assalta a impressão de que texto e espetáculo não conduzem a nenhuma ação livre por parte do espírito crítico do espectador, optando antes por tiranizá-lo ao mantê-lo preso à pior versão possível da narrativa da morte de Celso Daniel, contra a qual ele, espectador – com angústia, incômodo, aflição ou o que quer que seja –, reage de forma literalmente reacionária.

Eis que a última parte da trilogia – Abnegação 3: restos – ora em cartaz no Teatro do Sesc Ipiranga até o próximo dia 17 de julho, constitui o ponto alto dessa tríade de espetáculos diante dos quais não se fica indiferente – dado o dínamo de cesuras e ulcerações estilísticas e formais que está na base de suas estruturas. Cesuras e ulcerações comprometidas com os sentidos de renúncia, negação e denegação imantados no vocábulo “abnegação”, conforme já se viu. Comecemos pelo texto de Alexandre Dal Farra. É admirável a capacidade demiúrgica do dramaturgo, modelando por meio da difusa plasticidade que caracteriza a cena contemporânea a matéria caótica da vida social brasileira, ainda sem contornos definidos, mas já disposta a se exercitar como performatividade teatral. Diferentemente de muitos autores que registram a posteriori certas emanações da mentalidade cultural do país, quando formas e conteúdos já se cristalizaram e se transformaram em clichês – estratégia de que se valem as comédias de costume e os espetáculos de stand-up comedy mais conservadores (há muitos que não o sejam?) –, Alexandre parece se dedicar a uma escritura a priori, estando atento às coisas que já existem, mas ainda não foram dadas a conhecer, atitude talvez estimulada por sua formação intelectual, que transforma as leituras de Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek e Vladimir Safatle, por exemplo, em experiências sensíveis. E muito consequentes.

O dramaturgo renuncia ao conceito clássico de personagem e convida à cena uma série de seres destituídos da profundidade psicológica da pessoa. Trata-se de figuras de superfície, que não renunciam em hipótese alguma ao último simulacro da autonomia e da liberdade humanas: a fala compulsiva. Seus corpos existem representados tridimensionalmente, mas emanam presenças planas como cartas de baralho. Talvez eles sejam até mesmo seres incorpóreos fadados a proferir palavras sem espessura. Daí a expressiva solução encontrada pela encenação – a cargo do próprio dramaturgo, agora na função de diretor, ao lado de Clayton Mariano – de posicionar os intérpretes lado a lado, colocados frontalmente diante da plateia, negando-lhes a possibilidade de contracenar, de onde poderia emergir a aura de uma subjetividade reconfortante, porque flagrada em profundidade, mas absolutamente falsa.

Estar diante de seres que falam tudo o que lhes vem à cabeça é familiar para nós, habitantes de um mundo assaz opinioso, raramente opinativo; entretanto, há muito de estranho na performatividade dessa série de falas, que se precipitam em acontecimentos por si sós, sem compromisso algum com causas e efeitos. Ao negarem a causalidade de seus diálogos, tais figuras mergulham o espectador na incerteza sobre se ele tem diante de si a representação de um sujeito, ainda que precário, ou de um discurso algo automatizado. Rapidamente, o foco de atenção desse espectador se volta, então, para esse mecanismo anti-psicológico por natureza, e por isso mesmo altamente desestabilizador. Naturalmente, para que esse efeito seja atingido é necessária a presença de intérpretes maduros, seguros de seus recursos técnicos e emocionais, chamados de talentosos, enfim, quando à crítica não cabe outra atitude senão louvar a grande realidade imaterial do teatro: a aptidão artística de quem se dedica a ele. O fato é que o nível de interpretação dos atores do Tablado de Arruar em Abnegação 3: restos é altíssimo. Alexandra Tavares, Amanda Lyra, André Capuano, Antonio Salvador, Ligia Oliveira e Vitor Vieira, sem assimetria de espécie alguma entre eles, lançam-se à difícil tarefa em cena de, com suas vozes, esgares e gestos, conferirem o devido senso de performatividade ao movimento incessante de “cortarem e serem cortados” de que se vale o espetáculo, já que a imagem do “bisturi do mal” proposta pelo psicanalista Tales Ab’Saber a respeito do romance Manual da destruição, de Alexandre Dal Farra, é tão cara ao grupo. Aproveitando a imagem de Gilles Deleuze a respeito do estoicismo (um tipo de abnegação, talvez?), é como se os intérpretes soubessem muito bem “cortar demasiado profundo, mas não o bastante”, de modo que o espectador perceba, tal como Paul Valéry, que “o mais profundo é a pele”.

Examinar mais detidamente “as cinco situações paralelas, que se passam em ambientes privados, em um mesmo momento histórico”, onde “é traçado um panorama de uma sociedade à beira do colapso”, conforme anuncia o resumo da peça publicado no programa, parece inteiramente circunstancial, apesar de soar negligente ou anti-intelectualista até, por parte da crítica. Do mesmo modo, elucubrar sobre “personagens com antigas ligações ao PT”, que “se sentem perdidas em um mundo que parece não mais necessitar deles” ou sobre “as novas gerações” que se veem “defronte da necessidade de criar um lugar para si próprias, em um mundo onde os tempos históricos não se sucedem, mas se sobrepõem” soa igualmente dispensável. Talvez se trate até mesmo de um caso agudo de denegação crítica; a conferir.

O fato é que dramaturgia, encenação e atuação se unem em Abnegação 3 para construir um tipo de teatralidade que fala de coisas reconhecíveis, mas estranhas. É dessa ambiguidade que parece ecoar toda a força do espetáculo, assentada sobre a oposição entre o fundo e a superfície, desdobrada, por suas vez, da alternância entre unheimlich (estranho) e heimlich (familiar), conforme estudado por Freud. A grande qualidade de Abnegação 3 é renunciar à arte sociológica, negar a política institucionalizada e denegar o proselitismo geral, mantendo “escondido, oculto, de modo que os outros não consigam saber” o que ainda carece de se manter dissimulado – de modo a causar feridas e cicatrizes sem que se veja com que instrumentos elas tenham sido feitas. A linguagem contemporânea do Tablado de Arruar, construída sobre negações e destruições tão caras à modernidade do teatro, tem algo de paradoxalmente arcaico. Porque sem sentido, como anunciado pelo Livro de Jó: “Revelar-te-ia os segredos da Sabedoria, que desconcertam toda sensatez!”. Entretanto, aqui, o Leviatã e o Beemot nos espreitam do antípoda da profundidade, já que é na superfície da contemporaneidade que nos define que habitam nossos monstros.


 

Abnegação 3: Sob a ótica da linguagem

 por Alexandre Dal Farra

Do ponto de vista do texto, se em Abnegação 1 e 2 procurei abordar as sensações, pensamentos, urgências que o corpo a corpo com o material ligado diretamente à trajetória do PT me causava, em Abnegação 3, procurei elaborar a sensação mais ampla, mais geral, da presença de algo que já não existe, mas cujos restos, perdidos em um mundo que já não lhes pertence, reverberam de maneiras diversas. É assim que figuras ligadas de maneira direta ou indireta ao PT servem como pontos de apoio para cada uma das cinco situações que a peça apresenta – todas, sinais do mesmo desacerto. Uma dessas figuras advindas do PT (ou da esquerda brasileira, mais amplamente) se mata; outra foge; outra simplesmente aguarda, passivamente, pelo pior; outra se abstém, e se retira para fazer uma caipirinha; outra, tenta retornar ao seu ponto de partida – à casa onde vivia na época da sua atividade política mais intensa. Um dos aspectos que estrutura a peça é esse movimento, em que os remanescentes de algo (não só do PT, mas de uma determinada esquerda) como que vagam por um mundo onde já não têm possibilidade de agir, mundo que são incapazes de abarcar. Por outro lado, na peça, esse mundo (formado pelas figuras que contracenam com esses “restos”) se estrutura segundo uma determinada lógica. Essa lógica obedece, em linhas gerais, a uma operação que é, em grande medida, de linguagem. É essa operação que eu gostaria de abordar no presente texto.

 

***

 

Em meados de 2014, se não me engano, surgiu na internet um filme muito interessante, e muito bom. Em algum bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro (creio que se tratava do Leblon), algumas personagens discutiam. O núcleo da confusão eram um homem vestido de Batman e um outro homem, de meia idade, vestido normalmente, como quem vai a um boteco e mora na região. No início do filme, que pega a discussão já iniciada, o Batman vocifera que o outro não sabe nada sobre Batman, que ele sabe sobre Batman, ao que o homem responde, que se trata de um herói imperialista. O homem vestido de Batman toma ares republicanos, diz que se veste de Batman para se manifestar, eles batem boca, o homem vestido de civil diz que o outro tem medo de mostrar a cara, o Batman retira a máscara. Eles atravessam a rua. A essa altura outra coisa já chama bastante atenção: além da câmera que está justamente captando as imagens que assistimos, há mais duas câmeras dentro da cena, uma, nas mãos de uma mulher de aparelho dental e olhos esbugalhados, que, enquanto filma, de vez em quando grita para o Batman, “manipulado!”; e a outra câmera, mais profissional e maior, é operada por um câmera, que é acompanhado de um rapaz, um tipo de entrevistador. A discussão perde intensidade por alguns instantes e o rapaz que está ao lado do câmera se aproxima. Ele pergunta, em francês, algo sobre as favelas do Rio, se o dinheiro da Copa não poderia ser utilizado para isso, ao que o homem vestido para ir ao boteco responde, argumentando que isso é um “factóide”, e dizendo que o Batman é de direita. A isso, a mulher de aparelho, que está filmando, emenda, “de direita não, porque eu sou de direita”, ela assume o primeiro plano e diz que todo o mundo sabe que existe uma ameaça comunista, e bate na lente da câmera que capta as imagens do filme, como se gritasse para nós, para quem está do outro lado. O Batman se aproxima novamente, a discussão volta a ganhar fôlego, alguns simpatizantes (ao que parece) do Batman se aproximam, e questionam o homem de boteco, que descobrimos se tratar de um cineasta – porque ele começa a vociferar, “eu ganho muito dinheiro! Eu ganho dinheiro pra caralho! Eu sou cineasta!” A discussão se espraia para as pessoas em volta, e assim segue o vídeo, até terminar com a partida do cineasta.

Todos os dias, quando entro em uma conta do facebook, do instagram ou do twitter, sinto inevitavelmente a necessidade de dizer algo, de me colocar. Quase sempre há algum fato, alguma matéria, algo horrendo, algo indefensável, e a tela do meu aparelho demanda o meu posicionamento, a minha palavra, o meu gesto. Demanda o meu protesto. Esses dispositivos me levam constantemente a gerar pequenas opiniões que eu talvez não elaborasse, não fosse essa demanda constante, diária, cotidiana, por dizer o que eu penso. Por um lado isso pode me levar à necessidade de pensar sobre as coisas que estão aí, sobre fatos do dia a dia. No entanto, o que o algoritmo demanda não é o pensamento, não é a reflexão, não é o espaço para o contraditório. A demanda é pela opinião. Pelo posicionamento. Posicionamento esse que, evidentemente, não se dirige à questão frente a qual me coloco, mas, aos outros que assistem o meu opinar. Dar uma opinião, ou se posicionar frente a algo, é um gesto que visa, antes de tudo, aquele que me observa (e não aquele sobre o qual opino). É um gesto para ser visto por terceiros. Quando opino no facebook sobre a Síria, sobre o estupro, sobre o Donald Trump, não estou falando dessas coisas apenas; estou sobretudo mostrando para os meus friends o meu posicionamento frente a isso, mostrando para eles a minha opinião. Como o algoritmo só funciona quando a minha opinião é externada – porque é o que gera likes, é o que demonstra as minhas preferências, aprofunda o conhecimento algoritmo em relação a mim (já que em certa medida ele é um imenso sistema de anúncios personalizado, um aparato altamente preciso de identificação de perfis consumidores e abordagem dos mesmos). O processo da criação da opinião não interessa ao facebook, ao twitter. Não interessa a ninguém. A dúvida não interessa, porque ela não gera respostas para o imenso questionário de preferências que é a alma profunda dessas interfaces. O que importa é opinar, defender as suas opiniões, ter clareza do que você pensa, mostrar para os seus friends e para os seus followers o seu gesto de opinar com clareza, com certeza, com tranquilidade. A sua opinião pode ser até polêmica. Mas ela não pode ser confusa. Duvidosa. Reticente. Reticências não geram likes. Não são retwittadas. Não geram nada. Somem da linha do tempo. Desaparecem.

Em Abnegação 3 aparentemente o que está em jogo é a vida privada de algumas figuras, em determinadas situações familiares. Já de cara, no entanto, uma personagem afirma que não sabe que parte do que ele faz é pessoal, que parte é profissional. Penso que essa fala dá a medida de algo que perpassa a peça inteira. Embora os conflitos sejam todos teoricamente privados, nada é tratado como privado. É tudo o tempo inteiro público. Não existe fronteira entre intimidade e vida pública, e tudo é tratado de forma absolutamente aberta, explícita, escancarada. O que de cara parece impedir essa sensação de intimidade, de privacidade, é o fato de que o que vemos na peça não é uma interação entre personagens, mas sim, uma interação entre discursos. Cada personagem se configura, no fundo, enquanto puro discurso da personagem sobre si mesma e sobre o mundo, como se cada um deles fosse uma pequena máquina geradora de opiniões e de autoanálises, espécies de mônadasultraconscientes, que emanam, todas, uma mesma lógica discursiva, auto-enunciadora, opinativa e auto-questionadora. É o intuito da peça que, através dessa justaposição de figuras, de situações, de discursos, através de um grande fluxo discursivo, seja possível ter um sopro de uma sensação de todo mais amplo, como se a soma dos pequenos universos fosse aos poucos gerando um sentimento geral, difuso, nada claro, a sensação de um país – como apontado acima, feito de ecos de uma esquerda que já não dá conta de se estruturar como aglutinadora, contraposta a um mundo que tampouco se faz ainda completamente identificável (quase como um tipo de túnel escuro que não sabemos onde nos leva). Gostaríamos que essa imagem não se completasse, ou que ela fosse completada pelo público:que restasse, na peça,como que suspensa no ar, algo enigmática, ameaçadora e, talvez, triste.

No texto Elogio da profanação, capítulo de um livro denominado Profanações, Giorgio Agamben procura indicar o que é para ele uma das principais tarefas de um pensamento crítico e ativo hoje – que denomina como profanar o improfanável. Ao longo do texto, Agamben nos explica o que, para ele, é o improfanável. Profanar é restituir ao uso algo que foi separado, retirado do mundo para uma esfera protegida do toque. O exemplo talvez mais claro do que seria essa separação na atualidade é o Museu. No museu, as obras, partes de que eram de uma dinâmica social mais ampla, são separadas e levadas a um ambiente onde não podem mais ser usadas, onde se tornam como que os restos de algo que um dia foi decisivo e verdadeiro, mas que hoje é apenas um objeto que não pode ser usado por mim, mas apenas consumido – o ato de consumo pensado aqui como uma espécie de repetição de um gesto vazio que não implica o real contato com o objeto. O uso, por outro lado, seria a possibilidade de efetivamente criar uma relação com o objeto, em que não estivessem dados de antemão o meu lugar e o lugar dele, mas, ambos fossem recriados pelo próprio ato do uso. Agamben dá o exemplo do gato com o novelo de lã. A relação que se estabelece entre ambos é retirada da ordem da repetição (que corresponderia ao consumo no nosso caso), no caso do gato, trata-se da esfera dos instintos de sobrevivência: o gesto da caça, utilitário e repetitivo, instintivo, em certa medida, cego, se transmuta em jogo, em brincadeira e, nesse momento, se liberta. No caso, um instinto natural de sobrevivência (a caça) é profanado pelo uso livre desse mesmo instinto (pelo seu uso sem uma finalidade). Assim também os nossos impulsos repetitivos precisariam ser desativados em jogo, precisariam ser profanados. O movimento profanatório gera, ainda que por um instante, situações em que as ações deixam de ter finalidades. O exemplo do gato é claro. O gesto da caça é suspenso e perde a sua finalidade, para se tornar o que Agamben denomina um meio puro. Aqui, no entanto, é que a provocação do filósofo se aprofunda. “Na sua fase extrema”, diz ele, “o capitalismo não é senão um gigantesco dispositivo de captura dos meios puros”. Ou seja, aquilo que inicialmente era um gesto de profanação é justamente o que está sendo mais intensamente visado pelo dispositivo do capital. E é esse gesto profanatório, capturado novamente pelo capital, que Agamben denomina o improfanável. É sobre ele que, como o filósofo propõe, deveríamos agir.

O gesto de emitir a minha opinião, de exigir espaço para o meu ponto de vista, de ir para a rua e colocar a minha perspectiva sobre o mundo; o gesto de retirar a centralidade dos grandes aparelhos de mídia, do aparato de informação da sociedade capitalista do século XX, para furar esse bloqueio com o que eu tenho a dizer; o gesto de ir para a rua sem ninguém que me represente, fora de um sistema claro de representatividade partidária, para simplesmente dizer o que eu acho – tudo isso parece soar algo de profanador. No entanto, é claro que esses impulsos já foram devidamente capturados e separados como ocorre com essa espécie de museu gigantesco de opiniões, que é o facebook. É sobre esses impulsos que Abnegação 3 procura agir, esse impulso de “dizer o que eu acho”, de “dar a minha opinião”, de me localizar no mundo a partir do meu próprio discurso. Trata-se mesmo talvez, como Agamben coloca, de desativar esse tipo de impulso (que normalmente obedece a toda uma economia de auto-exploração e de auto-representação, repetitiva), de recolocá-lo em jogo, como se fôssemos todos uns gatos brincando com bolas de lã. Não se trata talvez de querer retomar o impulso inicial, originalmente profanatório (algo que por exemplo eclodiu em junho de 2013, notadamente nas primeiras grandes manifestações), mas, aqui, talvez o que façamos seja mais simplesmente olhar para isso, para esses impulsos, desativá-los, desconectá-los das suas finalidades, e observá-los, experimentar outras possibilidades com eles. Se em junho de 2013 foi uma tentação acreditar que surgia, como que espontaneamente, uma real opção à esquerda institucional que já havia perdido em grande medida a sua legitimidade, não se trata agora tampouco de querer retomar uma espécie de impulso original desse tipo de movimento, mas sim, de, através da profanação dos discursos auto-afirmativos, olhar para o próprio gesto opinativo, sem a sua finalidade, transformado, ainda que por um instante, em um meio puro.


Abnegação 3: restos

Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822)
Quando: Até 17 de julho. Quinta a sábado, às 21h; domingos, às 18h
Quanto: de R$ 25,00 a R$ 7,50
Info: (11) 3340-2000

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