A universidade em debate

A universidade em debate

A CULT entrevistou dois renomados intelectuais da sociologia brasileira: Laymert Garcia dos Santos e Chico de Oliveira. Laymert é professor titular do departamento de sociologia da Unicamp e estudioso das múltiplas relações entre sociedade e tecnologia nos campos da arte, cultura e meio ambiente. É autor de Revolução tecnológica, internet e socialismo (Perseu Abramo, 2000) e Politizar as novas tecnologias (Editora 34, 2003), entre outros livros e ensaios. Chico de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) e doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual se desligou em 2003 alegando discordância em relação aos rumos então tomados pelo partido. No ano seguinte, ajudaria a fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Questões candentes como a lógica neoliberal aplicada ao universo acadêmico, os métodos de ensino a distância e a saturação das estruturas do ensino superior foram discutidas nas entrevistas a seguir, concedidas ao sociólogo Ruy Braga e ao repórter da CULT Wilker Sousa.

CULT – A partir do início dos anos 2000, em países como Itália e França, professores, pesquisadores e estudantes se organizaram em movimentos em defesa da autonomia do campo científico contra a “colonização” dos interesses de mercado. Existe algo semelhante acontecendo na universidade brasileira hoje?

Laymert Garcia dos Santos – Acredito que não, embora a crise da universidade brasileira seja um reflexo desse mesmo movimento que atinge universidades em outros países. Isso não acontece aqui, pois ainda não houve a percepção sobre o sentido da transformação, sobretudo na área de humanas. A sensação que tenho é que ainda não há um entendimento sobre a profundidade da transformação que a chamada sociedade da informação e do conhecimento tem sobre o capitalismo contemporâneo e o modo como isso está articulado com o neoliberalismo. No Brasil, a questão é tratada de um modo muito fragmentado. A universidade é lenta para entender o que está acontecendo e lenta para reagir.

CULT – Quais são os pontos centrais da crise universitária?

Laymert – A principal questão é a conjunção de neoliberalismo com sociedade da informação. Deve ficar bastante claro que essa articulação entre economia e tecnologias da informação não precisava ser fatal, como está ocorrendo. Esse contexto está de certa maneira aposentando a universidade, pois a produção de conhecimento não mais se dá fundamentalmente no âmbito universitário.

Noto, por exemplo, que a universidade não percebeu que a produção de conhecimento hoje não é só feita por humanos, mas sim por homens e máquinas. Não se pode mais prescindir das possibilidades de elaboração do conhecimento através de relações entre homem e máquina, que vieram para ficar. Como a universidade é anterior a isso e em certa medida não está pensando muito sobre o assunto, a reação é passadista – na tentativa de tentar conter o movimento –, ou então uma espécie de “fuga para a frente”, sem uma visão crítica sobre essa transformação.

CULT – Como o senhor analisa a invasão do capital privado no financiamento a pesquisas na universidade pública? A lógica do lucro se sobrepõe à construção do pensamento crítico?

Laymert – No caso brasileiro, a situação é diferente. Se analisarmos o conjunto euro-americano e o Japão, existe uma relação positiva entre universidade e empresa, porque há interesses comuns em desenvolver tecnologia e inovação. No caso do Brasil, apesar dos esforços desesperados de transformar a universidade em um parceiro das empresas, isso não acontece. Não é porque a universidade tem uma posição crítica. Ao contrário, ela é absolutamente favorável, assim com agências de fomento como CNPq, Fapesp.

O obstáculo está no outro lado, pois as empresas não têm interesse em desenvolver inovação. Por quê? Porque há o capital financeiro, que permite ganhar mais sem correr riscos. É muito mais interessante especular no mercado financeiro do que correr o risco de fazer inovação. A articulação universidade-empresa no Brasil é muito mais fantasmática do que efetiva, embora do ponto de vista do discurso seja completamente igual ao que acontece fora do país. Não podemos falar quer a universidade está dominada pela força do mercado porque o mercado não se interessou por ela.

CULT – Uma das questões polêmicas atualmente é a implementação do ensino a distância na educação superior. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

Laymert – É evidente que o ensino a distância é algo que veio para ficar, pois a tendência é ocorrer de fato uma transformação forte. O problema é estabelecer o programa sem promover uma discussão maior com a própria universidade. Deve-se discutir não só a criação do ensino a distância, mas também como esse modelo pode se articular com a própria transformação da universidade. Mas tudo é feito de forma completamente compartimentada, não há discussão.

Quando se analisa na verdade o que é esse projeto de universidade virtual em São Paulo, nota-se como foi feito de maneira completamente estanque e burocratizada. Inclusive a própria visão da tecnologia é miserável porque a visão é instrumental, mas do pior ponto de vista, em seu nível mais baixo. Ou seja, vamos massificar mais. Usa-se a tecnologia para colocar um número elevado de pessoas nas universidades, para se dizer que há muita gente integrada ao sistema.

Não há nem o pensamento sobre qual é a nova relação entre conhecimento e tecnologia a partir da cibernética. Não existe reflexão sobre isso.

CULT – Deveria haver uma politização dessa tecnociência?

Laymert – Absolutamente. Mesmo porque, se não politizar, não há condições de saber como se deu a transformação entre cultura e tecnologia e como se pode utilizar esse novo potencial em uma direção inovadora.

CULT – Segundo o Ministério da Educação, 70% das vagas oferecidas no ensino superior provêm de instituições privadas. Em certa medida, isso revela a falta da democratização do acesso à universidade pública?

Laymert – Primeiramente, não considero as instituições particulares como universidades. A produção de conhecimento é muito fraca, não existe plano de carreira nem pesquisa. Na verdade, são usinas de produção de diplomas. Além desse problema, há um outro, que se refere ao ensino público. As autoridades pensam a universidade pública sempre em termos de massificação, sem alterar a estrutura em que o ensino se encontra hoje – o que é uma espécie de imitação daquilo que fazem as instituições privadas. Ora, isso é receita para desastre. Porque se há alguma coisa que funcionou e funciona bem no Brasil é a universidade pública. Mas isso é destruído ao aumentar o número de cursos e, paradoxalmente, investir cada vez menos na contratação de novos professores.

Cito um exemplo. Faço parte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que está entrando em processo de extinção. Houve pouquíssimas contratações nos últimos anos e muitos professores estão se aposentando. Estamos em estado de emergência porque, em 2010, se aqueles que puderem se aposentar se aposentarem de fato, o instituto fecha. O que se pode pensar sobre isso? Será que existe uma política deliberada para acabar com as ciências humanas? Será que acreditam que as ciências humanas já se tornaram obsoletas nessa nova configuração de sociedade do conhecimento? Se for isso, é delirante, porque não se poderão formar pessoas certas para lidar com essa nova situação, sem que percebam em que mundo estão e como ele mudou. Quem faz isso são as ciências humanas.

CULT – Como então a universidade pública pode permitir maior democratização sem perder a excelência do ensino?

Laymert – Acredito que a palavra democratização com relação à universidade está viciada. Afinal, todo mundo é a favor da democratização, mas seria preciso perguntar: em que termos? Qual o sentido de democratização? Democratização do quê? Da degradação da universidade? Porque no fundo é isso que estão propondo. Eles propõem que vão democratizar, mas piora. É bom isso só porque é democratização? É um acesso demagógico e anacrônico, porque não corresponde às necessidades da sociedade. Há um descompasso enorme em relação ao problema de fato.

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