A Supercensura contra a turma dos quadrinhos
Ingênuos, puros e bestas: o esquadrão dos bem-pensantes acha que os gibis têm de ser assim. Códigos e lacres nas bancas são armas contra a expressão livre das HQs
Rogério de Campos
É a lei: estão proibidos quaisquer livros, filmes ou peças de teatro que contenham cenas de violência ou nudez. Palavras como “terror” e “horror” estão banidas de qualquer obra de ficção, assim como frases obscenas, profanas ou vulgares. Também estão proibidas histórias que possam levar a questionamento de autoridades. Estão, portanto, proibidas histórias nas quais pais, policiais, juízes, militares, governantes ou religiosos sejam retratados de maneira crítica. E, é claro, não serão permitidas histórias que toquem em temas como racismo, desigualdade social ou adultério.
Imagine que tal lei estivesse em vigor desde a década de 1950. Esqueça Coppola, Scorsese e Woody Allen: o máximo que hoje teríamos como filmes adultos seria Homem-Aranha e Esqueceram de Mim. Quanto à literatura… Teríamos literatura? Não só jamais ouviríamos falar de beatniks ou Hunter S. Thompson. Autores como Sade, Nabokov ou Mark Twain teriam sido banidos das bibliotecas e livrarias.
Felizmente para a literatura, para o cinema e para a dramaturgia, e apesar de diversas tentativas isoladas, uma lei assim jamais se tornou realidade. Infelizmente para os quadrinhos, em outubro de 1954, tal lei tornou-se realidade nos Estados Unidos da América. O chamado Comics Code foi elaborado pela própria Comics Magazine Association of America (CMAA), entidade formada pelas grandes editoras de quadrinhos dos EUA. Era uma resposta à pressão exercida pela Igreja, pela mídia sensacionalista e por uma comissão do Senado que, unidas, acusavam os gibis de serem os responsáveis pelo surgimento da delinqüência juvenil na América.
Vários editores simplesmente tiveram de sair do ramo. Bill Gaines, dono da EC Comics, que havia enfurecido o Exército norte-americano com suas HQs antimilitaristas, tentou alguma resistência, mas acabou sendo forçado a abandonar os comics books. Lev Gleason (dono da Crime Does Not Pay), que havia sido preso durante a caça aos comunistas promovida pelo senador Joseph McCarthy, não resistiu a mais esse avanço da paranóia norte-americana e fechou as portas de sua editora.
O objetivo expresso do Comics Code era que os quadrinhos se tornassem mais ingênuos que a programação de TV da época. Garantir que fossem leitura “saudável” de criança. Os gibis de bichinhos fofinhos, super-heróis e Archies foram impostos à força como padrão a ser seguido por todas as editoras.
O Comics Code vigorou por décadas. Em 1969, por exemplo, dos cerca de mil gibis analisados pelo comitê da CMAA, 309 tiveram de ser refeitos de alguma maneira para receberem o selo de aprovação. “Na maioria das vezes”, conta Mike Benton em seu livro Horror Comics, “eram apenas pequenas modificações, já que a maioria das editoras de quadrinhos tinha seus próprios encarregados de garantir que as regras do Comics Code fossem seguidas”.
No final da década de 1940, uma pesquisa nos EUA mostrou que “mais da metade dos leitores de gibis tinham mais de 20 anos, que o leitor adulto consumia uma média de 11 gibis por mês, que quase metade dos leitores era mulher e que o pessoal de escritório, de terno e gravata, constituía o grande público consumidor” (cf. Gerard Jones, Homens do amanhã, Conrad Editora, 2006). Os quadrinhos estavam prestes a se tornar uma linguagem tão respeitável quanto o cinema. No entanto, no final da década de 1950, o ambiente era completamente outro. Mesmos os gibis femininos, de popularidade crescente, tinham sido cancelados por causa de uma interpretação rigorosa do item do Comics Code que decretava que “temas românticos não deverão ser tratados de forma a estimular as emoções baixas e infames”. Ou seja, o Comics Code foi um sucesso ao transformar os gibis em entretenimento de meninos ingênuos.
Ainda que o Comics Code tenha perdido a força nos anos 1970, os comics books norte-americanos até hoje sofrem as conseqüências de tal golpe. Nos anos seguintes à sua criação, todas as tentativas de fazer quadrinhos adultos tiveram vida curta, sufocadas de imediato por um sistema eficiente de censura por meio da rede de distribuição. E a história dos melhores momentos dos gibis norte-americanos de lá para cá foi a história da luta contra o mundo criado pelo Comics Code. É a história de Robert Crumb e a Zap Comix, de Bill Griffith e a Arcade, de Harvey Pekar e a American Splendor, de Art Spiegelman e a Raw Comics, de Alan Moore, e a Fantagraphics e de tantos outros. Se, para as grandes editoras que articularam a imposição do Comics Code, tal operação foi bem-sucedida ao eliminar concorrentes ao mesmo tempo em que satisfazia a América Paranóica, para a indústria do comic book como um todo foi um desastre. Não só porque foi obrigada a renunciar à maior parte do público potencial, mas também porque o código provocou uma debandada dos melhores talentos da área. Quadrinistas se transformaram em publicitários, cineastas, escritores, professores de artes etc.
É uma história trágica. E uma tragédia que não fica restrita à América. Como ela determinava os rumos da cultura pop mundial, o decreto de que os gibis deveriam ser ingênuos, puros e bestas passou a valer para todo o Ocidente.
No Brasil, por exemplo, a imitação do Comics Code chamou-se Código de Ética, e uma das medidas da ditadura militar, já em 1965, foi criar uma lei de censura específica para os gibis. Enquanto no início dos anos 1960 havia várias dezenas de gibis de aventuras, guerra, romance e terror brasileiros, no início dos 1970 tudo isso estava quase acabado.
Hoje, a persistência na grande imprensa de variações da frase “quadrinhos não são mais apenas coisas de criança”, em artigos simpáticos a respeito de Robert Crumb, Milo Manara ou Art Spiegelman, revela quanto a idéia oposta ainda reina.
Se a literatura, o cinema, o teatro, a música popular são compreendidos como linguagens que podem expressar, e de fato expressam, diferentes pontos de vista e anseios que surgem da sociedade, os gibis são entendidos como leitura de criança que, portanto, têm de se adequar ao que se espera de uma leitura para crianças.
Ainda hoje, mesmo um gibi que venha lacrado e com o aviso “Impróprio para Menores de 18 anos” (imagine isso em um livro de Jorge Amado ou Jean Genet, por exemplo) pode tornar-se motivo de escândalo e ser impedido de ser comercializado. Os quadrinhos ficaram na condição de linguagem (artística, se quiser) sem permissão para tornar-se adulta. Impedidos de se desenvolver plenamente, os gibis avançavam para uma morte por velhice sem nunca terem ficado completamente maduros.
Isso explica em parte o choque do Ocidente nos anos 1980 ao ter contato com o mundo dos quadrinhos japoneses. E “mundo” é uma boa palavra para dimensionar a indústria do mangá. Para aqueles conformados com o destino do quadrinho ocidental como parte da indústria de brinquedos ou, na melhor das hipóteses, humilde subdivisão do mercado de livros de arte, foi uma grande surpresa descobrir que havia um lugar no planeta que não tinha sido infectado pelo Comics Code. Um lugar onde os quadrinhos puderam se desenvolver em todas as direções, falar de todos os temas, ser de todos os gêneros, ter todos os públicos.
Os números são espetaculares, e já se falou bastante das tiragens de até 7 milhões semanais da Shonen Jump ou dos 2,6 milhões de exemplares para tiragem inicial de um dos volumes de One Piece. Mas o que mais entusiasma é mesmo a maravilhosa riqueza de traços, temas e idéias que se descobre a cada nova incursão no mundo dos mangás.
É claro que a chegada dos mangás ao Ocidente não foi comemorada por todos. Se os quadrinhos de modo geral são vítimas de preconceitos, os mangás têm sido vítimas em dobro. Seja por medo do novo, por apego ao velho o, seja por simples etnocentrismo. Paul Gravett, no livro Mangá – Como o Japão reinventou os quadrinhos, conta que o The New York Times foi obrigado a se retratar por uma matéria na qual afirmava que o nível de alfabetização no Japão era baixo por causa dos mangás. Na verdade, o jornal admitiu depois que o nível de alfabetização no Japão é altíssimo, muito superior ao dos EUA.
Tão divertido quanto esse episódio é ler artigos na imprensa norte-americana ou ver editores de comics books “made in USA”, inclusive no Brasil, dizendo que nós precisamos resistir à suposta invasão nipônica. “Nós quem, cara pálida?”, perguntamos, tontos que somos.
Outro artigo do mesmo The New York Times constatava em pânico que era preciso fazer algo para salvar a produção norte-americana de desenho animado, porque ela não tinha como competir com os preços mais baixos dos animês japoneses. E nós aqui nos perguntamos: “Sim, mas por que esse argumento não vale no resto do mundo contra os enlatados norte-americanos?”. Ah, o tal mercado livre…
Também é engraçado ver nerds profissionais norte-americanos (ou americanizados), tal qual versões teen de Adorno, criticando mangás com a mesma falta de conhecimento específico e com os mesmos argumentos que tantas vezes têm sido usados para definir seus quadrinhos favoritos: “tolos, infantis, violentos demais, feitos apenas para ajudar a vender brinquedos”. Estamos falando do que mesmo?