A retórica homofóbica

A retórica homofóbica
(Foto: Lula Marques/Agência PT)

 

Examinar as coisas ditas e os modos de dizer e não crer em quem as disse. Esta é uma tarefa incontornável da crítica. Uma das valiosas lições de Michel Foucault indica esse mesmo caminho: interrogar a linguagem, não na direção para a qual ela remete, mas na dimensão histórica e social que a constitui. A conhecida anedota ilustra isso muito bem: quando Pedro fala de Paulo, sabemos mais de Pedro do que de Paulo. O discurso é algo raro. Condicionado por fatores culturais, históricos e sociais, Pedro escolhe dizer algo específico sobre Paulo e o faz de certo modo, em detrimento de tantas outras coisas que a língua e a lógica lhe permitiriam dizer.

Os discursos materializam as ideologias das classes e grupos de uma sociedade, mas também as crenças, as sensibilidades e os afetos dos sujeitos. A despeito de sua complexidade e dos cruzamentos em suas fronteiras, eles poderiam grosso modo ser divididos entre os que pregam a discriminação e mesmo a exclusão das diferenças étnicas, econômicas, sociais e sexuais, por um lado, e os que defendem a inclusão dessas diferenças, por outro. Nesse sentido, o que dizemos e as formas como enunciamos revelam muito mais de nossa sociedade e nós mesmo do que costumamos supor.

Em condições históricas de retrocessos políticos e comportamentais, os discursos da exclusão certamente encontram um solo mais fértil para sua reprodução. Mas, tais discursos não desaparecem nos contextos de conquistas inclusivas. Era este o cenário no início do terceiro mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores na presidência da República: várias políticas afirmativas já haviam sido instauradas e outras começavam a ser propostas e implantadas.

Foi nesse contexto político que o então deputado federal Jair Bolsonaro aproveitou-se do anúncio de uma ação governamental de combate à homofobia para atrair os holofotes da mídia e encobrir sua medíocre atuação parlamentar. Sua estratégia consistiu em reproduzir conhecidos elementos da retórica homofóbica, uma das mais segregadoras, entre tantas que circulam em sociedades profundamente injustas, desiguais e excludentes como a brasileira. A força e o alcance das ideias e condutas heteronormativas são fundamentais para a adesão aos discursos do preconceito contra as sexualidades não conformistas.

Foi principalmente no início de seu sexto mandato que Bolsonaro adquiriu protagonismo no cenário nacional, por meio da oposição ao projeto que tornava crime a homofobia. Sua atuação ajudou a impor uma derrota ao Ministério da Educação, que pretendia distribuir material anti-homofóbico nas escolas, em 2011. Para a promoção de Bolsonaro, a cobertura e a repercussão midiática foram fundamentais.

Entre tantas outras, houve essas duas circunstâncias nas quais grandes veículos da mídia abriram espaço para a manifestação de sua posição: “O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) protagonizou um novo bate-boca na Câmara nesta quarta-feira, ao criticar homossexuais durante uma audiência sobre segurança pública. Bolsonaro voltou a dizer que nenhum pai pode ‘ter orgulho de ter um filho gay’ e atacou o ‘kit gay’, material anti-homofobia que o Ministério da Educação estuda distribuir às escolas” (Folha de São Paulo, 27 de abril de 2011).

Poucos meses depois, a revista Época promoveria uma entrevista de Bolsonaro concedida a seus leitores. Nela, o deputado disse o seguinte:

Minha luta vitoriosa no Congresso foi contra a distribuição do kit gay nas escolas do 1º grau. Não podia me omitir diante do material que estimulava nossos meninos e meninas a ser homossexuais. E deviam se orgulhar dessa condição. Não acredito que nenhum pai possa se orgulhar de ter um filho gay. Se lutar para impedir a distribuição do kit-gay nas escolas de ensino fundamental com a intenção de estimular o homossexualismo, em verdadeira afronta à família, é ser preconceituoso, então sou preconceituoso, com muito orgulho. (Época, 02 de julho de 2011)

Além da mentira, Bolsonaro forja ali uma personalização belicosa de sua atuação, que lhe rendera uma vitória e, ao precisar o adversário combatido, emprega uma expressão simplista e muito pregnante. Prova dessa pregnância foi o fato de que a expressão “kit gay” tenha passado a circular na imprensa e eventualmente mesmo entre alguns partidários mais desavisados de ideologias igualitárias.

O deputado constrói um simulacro grosseiro, mas eficiente, da posição antagonista, mediante o qual o material anti-homofobia se torna “intenção de estimular o homossexualismo”. A própria opção pela palavra “homossexualismo”, em detrimento de “homossexualidade”, já é uma marca do discurso homofóbico, ainda com mais forte razão na medida em que consiste numa “verdadeira afronta à família”. É assim que se constrói e se ostenta o orgulho de seu preconceito. O contraste entre esse orgulho e a vergonha imputada ao outro é uma propriedade patética fundamental da retórica homofóbica.

É nessa direção que se mobiliza o argumento falacioso de que não haveria outra opção além destas duas opostas: ou a vergonha ou o orgulho de “ter um filho gay”. Assim, sua formulação joga com essas duas paixões, tenta impô-las e exclui a possiblidade de que a sexualidade não seja motivo nem de uma nem de outra. Nesse sentido, o “orgulho gay” é réplica e resistência necessárias ao covarde e terrível gesto que pretende humilhar comunidades e pessoas por suas sexualidades.

Populistas com atávicos traços fascistas tendem a transferir sua vontade de poder para questões sexuais. Daí deriva seu machismo, seu “desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade”, conforme nos mostrou Umberto Eco.

Bolsonaro voltaria à cena política e midiática na audiência na Comissão de Direitos Humanos no Congresso, realizada no dia 28 de junho de 2012. Manifestava-se ali novamente sua obsessão com a sexualidade alheia.

Presidente, o comandante Jean Willys abandonou a tropa de homossexuais. E a tropa de homossexuais está batendo agora em retirada. São heterofóbicos. Quando veem um macho na frente, eles ficam doidos. O que tá em jogo neste país aqui é a esculhambação da família. É isso que tá em jogo. E são tão covardes, que atacam lá nas criancinhas, a partir de 3, 4 e 5 anos de idade. Num é palavra minha, não. Fizeram aqui ó, no dia 15 de maio, o IX Seminário LGBT infantil. Canalhas! Canalhas! Emboscando crianças nas escolas. Canalhas, mil vezes! Homossexualismo? Direitos? Vai queimar tua rosquinha onde tu bem entender, porra! Eu não tenho nada a ver com isso. Não queiram estimular crianças, filhos de vocês aqui, humildes, que ganham um salário mínimo, tão recebendo uma carga de material homoafetivo na escola.

O deboche sobre os homossexuais, a produção do contraste entre a virilidade do universo das armas e a debilidade do campo homossexual e ainda a linguagem chula, violenta e supostamente viril são mais alguns elementos de sua retórica homofóbica, na qual os homossexuais são distorcidos como seres humanos pervertidos e reduzidos à sua sexualidade, completamente controlados por seus instintos sexuais e essencialmente constituídos por sua covardia. Tudo ao inverso da ostentação do que seriam as virtudes puras e a hipertrofiada virilidade, exclusivamente encontradas na macheza.

Destaca-se ainda um efeito de verdade que encobre uma descarada mentira: a “prova” de que teria ocorrido um evento dedicado ao proselitismo homossexual estaria num panfleto mais do fake mostrado por Bolsonaro, mas visto por quase ninguém, numa data precisa de sua realização e em seu título com ares de fajuta verossimilhança. A farsa do “IX Seminário LGBT infantil” dá ocasião e justificativa para a indignação do nobre deputado e para a carga muitíssimo agressiva e vulgar de seu ataque. O ápice de sua baixeza é, então, sucedido pela denegação, tão desnecessária, no plano lógico e linguístico, quanto inevitável e absolutamente reveladora, na dimensão subjetiva: “Eu não tenho nada a ver com isso”.

Ora, a retórica homofóbica é fundamentalmente reacionária. Diante das reivindicações e das propostas inclusivas, igualitárias e emancipatórias, a retórica reacionária faz proliferar as profecias da inocuidade, dos efeitos perversos, dos riscos e das derrocadas fatais que assolariam a sociedade: “Isso não adianta nada; tudo vai continuar na mesma!”; “Isso vai produzir mudanças, sim, mas elas só vão piorar as coisas”; “Isso vai fazer com que percamos os benefícios que já conquistamos!”; “Dar esse passo rumo ao ‘seu’ progresso significa forçosamente dar dois outros que nos conduzirão ao abismo!”. Onde terríveis desigualdades abissais grassam há séculos, quanto maior potencial transformador houver nas coisas ditas e nas práticas que elas ensejam, maiores serão a velocidade das reações, a força de seus golpes e o raio de sua extensão.

Essas e outras abjetas falas de Bolsonaro e dos bolsonaristas, tais como as mais recentes “Tem de deixar de ser um país de maricas” e “Máscara é coisa de viado”, são bastante reveladoras. Primeiramente, porque tornam patentes os preconceitos de gênero e de sexualidade que ainda devastam o Brasil, a despeito de importantes e insuficientes avanços igualitários conquistados a duras penas. Em seguida, porque tornam manifestas as condescendências institucionais diante dos descalabros verbais do deputado e do candidato à presidência: vários setores da mídia, da política e da justiça não lhe impuseram as sanções necessárias. Sem punições e com visibilidade midiática cada vez maior, o político do baixo clero foi galgando espaço e dividendos eleitorais até chegar à presidência da República. Enfim, à sua revelia, suas declarações revelam obsessões do próprio sujeito que as produz.

Ao examinar a linguagem de Hitler e dos nazistas alemães durante o Terceiro Reich, o filólogo judeu, Vitor Klemperer, chegou à seguinte constatação: “A linguagem sempre revela o que uma pessoa tem dentro de si e deseja encobrir, de si e dos outros, ou que conserva inconscientemente. Uma pessoa pode fazer declarações mentirosas, mas o estilo deixará as mentiras expostas”. Os ataques obsessivos e virulentos a comportamentos sexuais alheios e a insistência na superestimação de si que se concentra numa virilidade hipertrofiada revelam muito mais sobre quem os produz e sobre a sociedade que os abriga e os faz circular do que sobre aqueles que preconceituosamente são perseguidos e atacados por todas essas discriminações e violências.

 

Carlos Piovezani é professor de linguística da UFSCar, pesquisador do CNPq e autor de A linguagem fascista (Hedra, 2020) e de A voz do povo: uma longa história de discriminações (Vozes, 2020).


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