‘A personalidade autoritária’ hoje: por que o fascismo volta a fascinar?
Theodor Adorno, Frankfurt, 1963
O fascismo está em alta no Brasil e no mundo. Em Chemnitz, na Alemanha, neonazistas mostram abertamente nas ruas o seu ódio contra os imigrantes. Em Charlottesville, nos Estados Unidos, supremacistas brancos desfilam sua ira contra os negros. No Brasil, mostram-se sem maiores pudores louvores à tortura, à execução sumária de “bandidos” e o elogio do “cidadão de bem”, que estaria prestes a eleger aquele que “daria um jeito” à “corja” unicamente responsável por todos os males do país: em primeiro lugar, os LGBTs, mas também os “comunistas”, as mulheres que não se conformam com o papel a elas atribuído pela dominação patriarcal, os negros (sobretudo os quilombolas, por uma estranha lógica fetichista que os transforma em alvo especial de ódio), os índios (vistos como “vagabundos” e alvos de contestação quanto à demarcação de suas terras)… a lista está pronta para ser ampliada indefinidamente, sempre segundo a lógica do “nós”, “de bem”, “trabalhadores” contra “eles”, “vagabundos” e “imorais”.
Corte temporal: anos 1930 do século passado, ascensão do nazismo na Alemanha. Um grupo de intelectuais se inquieta com o apoio popular às plataformas políticas – diríamos hoje, a “agenda” – de Adolf Hitler. Essa agenda parece fazer sentido para muita gente, em diversos setores da sociedade: trabalhadores na indústria e comércio, estudantes, médicos, professores universitários. O que diz essa agenda? Para a Alemanha voltar a ser grande, é preciso dar cabo dos “parasitas”, dos que não trabalham e só “sugam os recursos” do país: sobretudo os judeus, mas também os comunistas, os homossexuais, os ciganos e quem mais se pusesse no caminho da suposta unidade racial da nação. Era preciso botar essa gente no seu “devido lugar”, e destacar o “bom alemão”, trabalhador, honesto, limpo e saudável. É essa figura imaginária que vai ser criada e estimulada a gritar o seu “nós somos diferentes deles”, “este país é nosso”. Toda essa situação social e cultural parecia instaurar quase da noite para o dia um pesadelo no meio da realidade, na visão desses intelectuais alemães. Quem são eles?
Antes, um parêntese terminológico. O que se quer dizer quando se usa o termo “fascismo”? Aqui é preciso fazer distinções. O uso mais corrente do termo remete àqueles que expressam em palavras e ações uma atitude de recusa de direitos, de desvalorização política e social e de negação de valor individual a pessoas vindas de determinados grupos tidos como minoritários, seja pelo seu número reduzido em relação ao todo da população (os moradores estrangeiros em um país, por exemplo), seja pela sua posição subalterna em relação a um grupo humano tido como padrão normativo (as mulheres, em relação aos homens, por exemplo). Ao lado dessa acepção, seria oportuno indicar um uso do termo ligado à ciência política, que registra o seu lastro histórico, e tem sua referência maior no fascismo italiano e no nazismo alemão, da primeira metade do século passado. Segundo essa acepção, o fascismo é uma forma política caracterizada por uma série de elementos que se apoiam mutuamente: o culto a um líder carismático, dotado de propriedades quase sobre-humanas; nacionalismo expansionista; etnocentrismo (o “nós” da comunidade nacional, definida racialmente, de modo excludente); valorização da violência como elemento criativo e regenerador do corpo político; eliminação de partidos políticos dissidentes; terror policial organizado estatalmente contra todos aqueles vistos como inimigos do regime; projeção imaginária de uma ideia de identidade nacional sem fissuras; mobilização permanente da sociedade civil em torno da projetada unidade mística da nação.
Voltemos ao contexto histórico do fascismo alemão. Quando o fascismo se instala na Alemanha, sob a designação de nacional-socialismo (nome do partido nazista), a pesquisa científica autônoma, a imprensa livre e a liberdade de opinião e de publicação passam a não existir mais. Livros são queimados num ritual sinistro que, volta e meia, tem os seus adeptos no Brasil. O nazismo se choca frontalmente com o trabalho de um grupo de intelectuais alemães, a maioria deles de origem judaica, que escrevem e pesquisam junto ao Instituto de Pesquisa Social, da Universidade de Frankfurt, inaugurado em 1923. Dedicado inicialmente à pesquisa do movimento operário alemão, o Instituto tomará uma orientação muito singular de pesquisa, que será chamada mais tarde de Teoria Crítica da sociedade. O nazismo, como fenômeno social e político alemão, não poderia ser deixado de fora do trabalho intelectual do Instituto. As múltiplas facetas do fenômeno nazista, simultaneamente econômicas, políticas, culturais e psíquicas, exigem um enorme esforço de elaboração reflexiva daqueles que querem entender a singular imbricação de irracionalidade e sistematicidade racional que o nazismo representa. As características básicas dessa empreitada intelectual já estavam sendo constituídas no início dos anos 1930 pelo Instituto. Aqui ganha destaque a figura do filósofo Max Horkheimer (1895-1973) e seu projeto de um materialismo interdisciplinar como ideia-guia.
Será preciso citar um trecho do texto seminal (de 1931, dois anos antes de Hitler ascender ao poder) de Horkeimer, A presente situação da filosofia social e as tarefas de um Instituto de Pesquisa Social: “pouco a pouco as discussões sobre a sociedade se cristalizaram sempre mais claramente em torno de uma questão: o problema da conexão que existe entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e as transformações que tem lugar nas esferas culturais em sentido estrito – às quais pertencem não somente os assim chamados conteúdos espirituais da ciência, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, a moda, a opinião pública, o esporte, as formas de divertimento, o estilo de vida etc.” Aqui cabe ressaltar três aspectos do que desde então foi chamado de materialismo interdisciplinar da Teoria Crítica: 1) economia, cultura e subjetividade são postas como realidades dialeticamente interdependentes, sem postular a primazia de qualquer uma sobre a outra; 2) realidades eminentemente culturais como a moda e o divertimento são assumidas como possuindo um conteúdo substancial, no sentido de poder de gerar efeitos consideráveis na realidade, uma vez que a elas é atribuído um estatuto sociológico comparável ao da religião e da ciência; 3) a vida psíquica dos indivíduos é pensada como realidade eminentemente dialética, em estreita conexão de sentido com as formas econômicas e culturais. Isso significa que ela é pensada não como a fonte primeira das demais, mas também não como uma esfera a reboque das outras – ela tem uma densidade própria que convém investigar.
É no espírito do materialismo interdisciplinar que a A personalidade autoritária (1950) é pensada como um amplo conjunto de trabalhos de investigação psicossocial sobre preconceito e autoritarismo. Trata-se de uma pesquisa inteiramente feita nos Estados Unidos, para onde o Instituto e a maioria de seus membros haviam emigrado, após o início do regime nazista. Ela faz parte dos “Estudos sobre o preconceito”, uma série de pesquisas levadas a cabo pelo Instituto nos anos 1940, sob os auspícios do American Jewish Comitee. Os co-autores da pesquisa envolvida em A personalidade autoritária eram psicólogos e cientistas sociais da Universidade da Califórnia em Berkeley – e, portanto, pesquisadores “externos” ao Instituto –, cujos nomes devem ser justificadamente indicados: Else Frenkel-Brunswick, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford. Trata-se de uma investigação cujo objetivo é mapear tendências subjetivas básicas, configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes de expressão de preconceito antissemita, etnocentrismo, conservadorismo político e econômico e, finalmente, potencial fascista. O trabalho empírico nessa pesquisa foi maior do que em qualquer outra do Instituto, mobilizando um processo que durou vários anos de confecção, teste e aperfeiçoamento de questionários, escalas, entrevistas clínicas individuais e interpretação interdisciplinar dos resultados.
É preciso ressaltar que a confecção das escalas de aferição de preconceito em A personalidade autoritária respondeu aos protocolos mais rigorosos da psicologia acadêmica americana da época, de modo que não se pode minimizar seu processo de gênese. Essa reconstituição não poderia ser feita aqui, de modo que gostaria de remeter o leitor aos trabalhos de Iray Carone, que são de uma clareza notável a esse respeito. Interessavam aos autores da pesquisa o estudo de correlações empiricamente observáveis (e clinicamente investigáveis) entre a expressão de atitudes em diferentes dimensões da relação com o outro e a autoridade social. Em termos muito sucintos, o estudo mostrou correlações significativas nos resultados obtidos nas escalas de medida de preconceito contra os judeus (AS, de antissemitismo) e etnocentrismo (E), bem como entre ambas e a escala F, de potencial fascista. A correlação entre as duas primeiras e a escala de conservadorismo político e econômico (PEC) mostrou-se significativa apenas para alguns sujeitos da amostra, mas não para todos, razão pela qual essa diferença precisou ser investigada por entrevistas clínicas, e levou à proposição de uma distinção entre o “pseudoconservador” (com alta pontuação na escala PEC e nas escalas de preconceito) e o “conservador genuíno” (com alta pontuação na escala PEC, mas com baixa pontuação nas escalas de preconceito). E quanto a escala F, de potencial fascista?
A escala F é o principal achado metodológico de A personalidade autoritária. Trata-se de testar a ideia segundo a qual predisposições políticas vinculadas a ideologias autoritárias, antidemocráticas (fascistas, no limite) apresentam um correlato no nível das tendências psíquicas mais profundas, pouco conscientes ou inconscientes. A escala F propunha aos sujeitos um questionário formado por uma série de itens que seriam indicadores dessas tendências psíquicas, sem confrontá-los diretamente a agendas políticas, econômicas ou sociais (na acepção da atitude de preconceito contra grupos específicos). Com a devida ressalva de que esses itens não podem ser entendidos fora da história (e não devem ser, portanto, transportados imediatamente para o Brasil atual, uma vez que resultaram de pesquisa empírica com sujeitos de uma condição social e cultural específica) seria útil apresentar três exemplos de itens que constavam da escala F: 1) “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, 2) “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes”; 3) “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”.
Antes de tudo, cabe uma observação: não é a resposta isolada a um item que configura um tipo de disposição psíquica autoritária. Uma análise complexa da inter-relação entre os itens é pressuposto da interpretação do resultado de cada sujeito na escala F. Se, de acordo com o primeiro item anteriormente citado, “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, a interpretação levada a cabo em A personalidade autoritária vai situar a resposta afirmativa a esse item como indicador de “submissão autoritária”, isto é, de “atitude submissa e acrítica em relação às autoridades morais idealizadas do grupo”. A concordância com a formulação do segundo item, de que “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes” indicaria, na formulação dos pesquisadores, não só uma tendência no sentido da “superstição e estereotipia”, a saber, “crença em determinantes místicos do destino individual; disposição a pensar em categorias rígidas”, mas também uma inclinação para “poder e ‘dureza’”, isto é, “preocupação com as dimensões dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase exagerada em atributos convencionais do ego; afirmação exagerada de força e dureza”. Finalmente, a concordância com a terceira asserção, “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”, seria indicativa de “projetividade”, entendida como “disposição a acreditar que acontecem coisas selvagens e perigosas no mundo; projeção no exterior de impulsos emocionais inconscientes”.
Qual seria o significado psíquico da concordância com os itens da escala F? A pontuação alta significaria que o sujeito “é” uma “personalidade autoritária”? Em outros termos: existe mesmo uma personalidade autoritária? E, não menos importante: estariam os autores da pesquisa assumindo que a causa última da adesão ao autoritarismo é psicológica? A resposta a essas questões é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar: uma pontuação alta na escala F, segundo os autores do estudo, apresenta correlações significativas de pontuação alta nas escalas de antissemitismo e de etnocentrismo, sendo, assim, um indicador confiável do que os autores chamaram não de “personalidade autoritária” (como no título do estudo), mas de “síndrome fascista”. Trata-se de uma dinâmica psíquica que os autores buscaram configurar em termos de “tipos psicológicos”. Assim, o sujeito com pontuação alta na escala F teria uma grande chance de apresentar uma dinâmica psíquica marcada pela rigidez, pela pouca plasticidade da consciência e pela rejeição da assimilação de vivências de alteridade – retrato sucinto do que os autores chamaram de “tipo autoritário”.
Dito de outro modo, esse sujeito não “é” uma personalidade autoritária, ele apresenta (no momento do teste) uma dinâmica psíquica marcada por traços libidinais e ideacionais que se associam a atitudes de preconceito e autoritarismo. Por fim, isso não significa dotar a esfera psíquica do poder causal último na configuração de atitudes políticas anti-democráticas e preconceituosas. Uma discussão mais ampla dessa questão levaria às críticas de Adorno à psicologia do Ego (e mesmo ao conceito de “personalidade”!), desde Minima moralia até trabalhos dos anos cinquenta e sessenta – algo que não pode ser feito aqui. Contudo, é necessário assinalar que Adorno e os pesquisadores de Berkeley, sem “psicologizar” fenômenos ideológicos e políticos complexos, abriram caminhos importantes para a consideração da mediação subjetiva de atitudes extremas como o preconceito e o entusiasmo por regimes de força.
Como Susan Sontag notou certa vez, é preciso reconhecer que há para muitas pessoas um fascínio peculiar e sombrio no fascismo. O legado de A personalidade autoritária reside em apontar para os riscos de situações em que a propensão ao autoritarismo e ao preconceito é estimulada pela dinâmica social dominante e pelas formas culturais com maior poder de disseminação. Em outros termos, em dadas situações, certas pessoas não terão de fazer um grande esforço subjetivo para aderir a pautas discriminatórias e antidemocráticas, uma vez que elas já estarão instaladas nos seus modos subjetivos de reação ao mundo. Seria o caso de se perguntar, hoje, se as tendências subjetivas estruturantes que a pesquisa de Berkeley encontrou estariam sendo estimuladas hoje pela sociedade e pela cultura: convencionalismo, agressividade, oposição a tudo que é intelectual e subjetivo, submissão autoritária, ênfase em estruturas rígidas de poder e dureza, tendência ao pensamento estereotipado, tendência a uma desconfiança geral de tudo que é “outro”. Este seria um trabalho a ser feito, não exatamente repetindo os itens e as escalas da pesquisa, mas recuperando as suas intuições originais e a sua abordagem interdisciplinar.
Nossa opção hoje em dia é entre esclarecimento ou barbárie. Ou lutamos para nos tornarmos conscientes de tudo que apela à agressão e ao preconceito em nós mesmos e nos outros, ou abraçamos o fascinante fascismo daqueles que tiram sua sobrevivência psíquica da vã satisfação de odiar.
Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em filosofia pela UFMG, professor associado do departamento de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), autor Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral (Escuta), entre outros.
(4) Comentários
Excelente artigo. O último parágrafo me lembrou Schiller que, no final do século XVIII, afirmava que a humanidade vivia entre a barbárie e a selvageria. Aparentemente ainda não encontramos um caminho que nos afaste desses dois estados da existência.
Boa contribuição. É por tudo isso que se tornou urgente nossa posição contra todos os que defendem ideais discriminatórios. Por exemplo, Bolsonaro, que não deveria estar na disputa política presidencial ou mesmo ser deputado.
Texto muito esclarecedor.
Conclusão lúcida e determinante.
Embora o texto é sucinto, mas nos desperta para a busca de uma compreensão mais ampla sobre o fenômeno do fascismo e o fascínio que este vem causando nas pessoas. Parabéns ao autor.