A persistência de Deus
Deus é a personagem cuja morte mais foi proclamada na história da filosofia. O que explicaria, porém, sua persistência nessa mesma história?
Juvenal Savian Filho
“Nos últimos séculos, assistimos à ‘evaporação racionalista de Deus’. Mas era o Deus dos racionalistas. Soprai, e dissipai esse vapor. Isso não vai nos abalar. Nós respiraremos mais à vontade. O Deus verdadeiro, aquele que nós não cessamos de adorar, está alhures. Ele está em toda parte onde vós credes alcançá-lo; Ele está em toda parte onde vós não o alcançais.”
Henri de Lubac
Sabemos como a Modernidade, aos poucos, relegou Deus para o domínio do irracional, considerando a fé um ato exclusivo da vontade, sem nenhum motor ligado à inteligência. Mas é facilmente observável, nos últimos dez anos, da parte de muitos filósofos contemporâneos, uma verdadeira renovação da quaestio Dei (questão de Deus), e das questões conexas a ela, tais como a origem, a criação, a morte, o mal, as relações entre filosofia e fé/teologia, história e fé/teologia, arte e fé/teologia, ciência e fé/teologia etc. O que intriga não é uma “retomada” dessas questões (elas nunca desapareceram do horizonte filosófico), mas a renovação radical na forma como elas são postas atualmente. E duplamente intrigante é o fato de que essa renovação não vem de filósofos comprometidos ideologicamente com alguma instituição religiosa.
A França, nesse sentido, pode ser tomada como exemplo, pois, nela, efetivou-se, com intensidade ímpar, o confronto estéril entre o discurso racionalista que destronou Deus e erigiu um altar à ciência, de um lado, e o discurso religioso contrário à Modernidade, de outro. Todavia, há pelo menos dez ou quinze anos, a mesma França vê debruçar-se sobre a quaestio Dei personalidades das mais significativas para a reflexão filosófica contemporânea, tais como Jean-Yves Lacoste, Jean-Luc Marion, Jean-François Courtine, Marcel Gauchet, Régis Debray, Alain Badiou, Jean-Louis Chrétien, Bruno Latour, Jean-Luc Nancy, Guy Petitdemange, Gérard Baillache etc., para não mencionar os mais conhecidos, como Paul Ricoeur, Emmanuel Lévinas, Jacques Derrida, Michel de Certeau e Michel Henry. Na Alemanha, poder-se-iam evocar os pesquisadores reunidos em torno de Robert Spaemann; na América do Norte, de Charles Taylor; na Inglaterra, de Anthony Kenny, entre tantos outros. Tal elenco não é arbitrário, pois reproduz nomes de filósofos atuais que, de algum modo, consideram positivamente a quaestio Dei.
Qual Deus morreu?
Haveria, está claro, explicações sociológicas para essa renovação do interesse por Deus, as quais se fundamentam na clássica leitura das estruturas de poder desenvolvidas pelas religiões e dos valores morais por elas enraizados na vida social. Tal renovação seria, assim, apenas mais uma estratégia de dominação ou o resultado de uma tal estratégia. Porém, a caducidade desse tipo de explicação já foi demonstrada pela história.
O caso francês aqui também é representativo; afinal, se se sabe, por um lado, que a França racionalista nunca deixou de ser a menina dos olhos das religiões, também se sabe, por outro, que a França das Luzes, em 1793, cercada e agredida, viu seus jacobinos anticlericais queimar o ídolo do ateísmo e fazer procissão diante do Ser Supremo, “fantasma congregante”, nas palavras de Régis Debray. A pergunta que não se pode calar, então, é: poderia alguma crítica sociológico-política resistir eficazmente ao apelo religioso?
Mas talvez haja uma explicação mais propriamente antropológico-filosófica para essa renovação da quaestio Dei. Trata-se de observar, entre outras coisas, que a Modernidade, em seu intuito de romper com a filosofia aristotélico-escolástica, produziu uma imagem de Deus, especialmente do Deus cristão, que não corresponde ao Deus dos filósofos e teólogos da Antigüidade e da Idade Média.
Descartes, nesse sentido, apesar da forte religiosidade manifestada em alguns de seus textos, inicia uma abordagem na qual Deus vai, aos poucos, reduzindo-se a um mero conceito, importante para a construção de seu sistema filosófico, mas cada vez mais distanciado da experiência pessoal do indivíduo. A partir daí, abre-se um caminho para a separação entre o Deus da filosofia, peça importante de um quebra-cabeça conceitual, e o Deus da vida, reservado àqueles que têm fé. Os iluministas, de modo geral, combatendo o Deus da vida (produção clerical, no dizer de muitos), mantinham o Deus da filosofia, sem o qual não conseguiam falar, por exemplo, de ordenamento na natureza, origem do cosmo etc. Trata-se da postura tradicionalmente conhecida como deísmo.
Essa separação entre o Deus da filosofia e o da vida, embora lúcida e ardorosamente denunciada por Pascal, recebe de Espinosa um acabamento novo, pois o filósofo holandês explora as virtualidades da distinção cartesiana, dando-se conta de que era possível negar a transcendência de Deus sem que este deixasse de cumprir as funções metafísico-éticas do quebra-cabeça conceitual. Alguns historiadores chegam a dizer que Espinosa é o último acabamento, inultrapassável, do pensamento de estilo grego, sem divindade pessoal nem transcendência. Uma filosofia completa da Transcendência, porém, como é o caso da filosofia de Plotino, testemunharia do equívoco dessa opinião.
Todavia, comparada às formas de pensamento que consideram o Deus da vida, ou seja, que concebem a divindade como um ser pessoal, a filosofia da imanência de Espinosa é um ateísmo. Embora “embriagada de Deus” (Deus ou Natureza), essa filosofia rompe com todo tipo de concepção religiosa do divino. O deísmo, aliás, é muito próximo desse -ateísmo, pois restringe o papel de Deus a uma explicação filosófica, a uma mística sem mistério, facilmente substituível por outros conceitos. “É freqüentemente verdade: ‘um deista é um homem que não teve tempo de tornar-se ateu’” (Henri de Lubac, Sur les chemins de Dieu, Aubier, 1956).
Da perspectiva, portanto, da história da filosofia dos séculos 16 e 17, o Deus da vida já estava morto para muitos filósofos. Restavam, porém, elementos de um absoluto concei–tual, ao qual também se chamava “Deus”. No século 18, Kant, sem desejar comprometer-se com alguma forma de ateísmo (ele, que era pietista), mas também sem tomar o lado do Deus da vida, afastou da pesquisa filosófica o que sobrava do deísmo. Como se sabe, a filosofia kantiana construiu-se a partir do paradigma da mecânica newtoniana, considerando-o a única forma de conhecimento científico dos fenômenos. Estes, por sua vez, seriam a instância intransponível para a razão, impedindo o conhecimento do noúmenon ou a realidade inteligível em si. Assim, Deus e todos os temas metafísicos passavam a situar-se fora de qualquer pesquisa filosófico-científica, relegando o Deus da experiência espiritual ao âmbito exclusivo da fé, domínio da vontade, sem nada que ver com o entendimento.
Parece possível, hoje, perguntar se Kant era, de fato, um antimetafísico estrito (ele que, inclusive, necessitou do paralogismo da existência do céu e do inferno para fundamentar sua ética). Historicamente, porém, a partir dele, isolou-se a pesquisa filosófica do Deus da experiência espiritual. O resultado prático de um tal isolamento não é difícil de identificar: o Deus de Fichte e de Hegel, que se transforma facilmente no Homem de Feuerbach.
Deus e antropologia
É importante, porém, observar que, nessa trajetória filosófica, o Deus da vida foi desconsiderado não porque não pudesse, de fato, ser analisado filosoficamente, mas porque se produziu essa idéia, ou seja, a de que ele não podia ser objeto de pesquisa filosófica. O resultado foi a indiferença e mesmo o desprezo por toda uma região da experiência humana, que, entretanto, é incontornável e resiste à qualquer tentativa de negação: a sua dimensão transcendente; sua necessidade de realização pelo encontro pessoal com uma Realidade Transcendente a que se costuma chamar de Deus.
Revelando, assim, sua negligência voluntária por essa região da experiência humana (supra-racional, mas não irracional), o projeto filosófico moderno mostra que o alvo de sua crítica era o Deus da pesquisa filosófica, facilmente erradicável ou substituível por outro tipo de absoluto. “O Deus da ‘ontologia clássica’ está morto? É possível. Não me preocupo com isso; não me interessa defender as construções glaciais de um Wolff. Mas, se a ‘ontologia clássica’ desapareceu, é porque ela não era adequada ao ser. Menos ainda a sua idéia de Deus era adequada a Deus. O espírito, por sua vez, continua vivo, e, do mesmo modo, o Deus que se impõe a ele” (Henri de Lubac).
Deixado de lado o Deus da ontologia moderna, não se pode, entretanto, compreender filosoficamente a recusa deliberada em investigar a estrutura antropológica que permite ao homem a experiência do Transcendente. Talvez a absolutização da religião ou das hierarquias católicas e protestantes pós-tridentinas tenham horrorizado os filósofos?
Em todo caso, uma análise dessa estrutura antropológica certamente apontaria para uma dimensão transcendente do homem e do mundo, posto que a pergunta por essa dimensão já implica que ela exista. Como dissera Karl Rahner, se o homem pode interrogar-se sobre o ser, então o ser pode ser conhecido; do contrário, a pergunta sobre o ser seria impossível, quando, na realidade, conforme atesta a experiência humana, ela não somente não é impossível, como manifesta já alguma forma de conhecimento do ser, permitindo a este impor-se ao menos sob a forma da pergunta ou do desejo.
A recusa moderna de interessar-se pela dimensão transcendente da experiência humana acarretou, na prática, uma indiferença para com a quaestio Dei. Essa recusa e essa indiferença, por conseguinte, demonstram como a compreensão de Deus é imbricada com a compreensão da experiência humana. Em nossos dias, quando se observa o modo como as relações são pautadas apenas em termos político-práticos, com a correspondente concentração da filosofia nos temas políticos, ficam patentes os efeitos de uma visão parcial da experiência humana (com seu corolário da indiferença por Deus); a compreensão da vida empobrece-se, e, para muitos, não passa de uma incompletude dilacerante.
Ao contrário, a experiência da dimensão transcendente do humano leva, segundo o testemunho de muitas pessoas, à afirmação de uma Realidade Transcendente, fonte de sentido para o humano e o mundo. O desejo de encontrar essa Realidade inscrever-se-ia no coração de cada indivíduo, experiência que exige dos filósofos crentes, ciosos de unidade interior e autenticidade, o reconhecimento e a tematização de sua vivência pessoal, mística, sem restringir-se apenas ao Deus da “ontologia clássica”.
Nesse sentido, muitos filósofos contemporâneos não têm cedido à facilidade do desinteresse pela quaestio Dei. Ao contrário, têm visto como a reflexão sobre Deus pode ser ocasião para esclarecimento filosófico de questões metafísicas, ético-políticas, epistemológicas, hermenêuticas, estéticas etc. Não fazem nenhuma criptoteologia, mas alimentam-se da tradição religiosa para renovar questões filosóficas; procuram encontrar aberturas para melhor compreender a experiência humana. Nesse espírito, vê-se como falar de Deus é falar do homem. E falar do homem implica falar de Deus.
Deísmo = Teísmo?
Não! Os dois termos não são sinônimos!
Deísmo vem do latim deus e representa a postura de filósofos que rejeitam a existência de Deus, tal como apresentado pelas religiões monoteístas, mas admitem a existência de um Ser supremo, de caráter indeterminado. Pode-se falar também de religião natural. Voltaire é certamente o melhor exemplo de deísta.
Teísmo, por sua vez, vem do grego théos e representa aquelas maneiras de pensar, inclusive filosóficas, que afirmam a existência de um Deus pessoal. Em outros termos, para essas maneiras de pensar, Deus é um Ser que, apesar de diferente da pessoa humana, conhece perfeitamente a vida dos humanos, por ter sido seu criador e por dialogar com eles. Essa concepção funda-se na noção de pessoa, que foi especialmente desenvolvida por filósofos gregos convertidos ao cristianismo.
Juvenal Savian Filho é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp/EPM e autor, entre outros, de Deus (Editora Globo, Coleção Filosofia Frente & Verso)
(1) Comentário
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Muito bom artigo. Com bom indice de coerencia.E bom que nao caiu no popular morte de Deus, do Nietzsche, mal interpretado´,pois ele fez uma leitura semelahnte a sua.Mas ele era meio poeta e sintetico,com aforismas.Nao gostava dos falsos e ressentidos.
Sou mais para Agostinho, que na ultima ´Cult´vc colocou como um bigeminismo na alma ?