A opressão da família feliz

A opressão da família feliz

(Arte Revista CULT)

Carla Rodrigues
Colaboração para a CULT

Você pode ler Meu menino vadio – Histórias de um garoto autista e seu pai estranho (Intrínseca), do jornalista Luiz Fernando Vianna, como a narrativa de um homem e uma mulher emocionalmente despreparados para ter um filho. Seria uma história comum porque a maioria dos casais é, mesmo sem admitir. Não fosse o fato de Henrique ser uma criança autista – e portanto exigir um conjunto de atenções específicas –, o livro seria apenas o relato de mais um casal em litígio, como tantos outros. Contrariando um pouco a sentença de Tolstói – todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes o são cada uma a sua maneira – Vianna expõe entranhas de infelicidades que não são só suas. Chega-se ao fim da leitura com a constatação de que, como família – seja como pais ou filhos –, somos todos fracassados, carentes, culpados, porque oprimidos por um ideal inalcançável de felicidade. Vianna mais, muito mais, já que cuida, ano sim, ano não, de um adolescente autista não-verbal.

As derrotas relatadas como uma experiência singular de paternidade permitem pensar diversas questões contemporâneas: o cada vez mais opressor discurso em defesa de um único e determinado modelo de família feliz, com ênfase no retorno ao papel tradicional das mulheres; o suicídio e os limites de preservação da vida; as consequências da reformulação da lei que obriga a guarda compartilhada das crianças; as insuficiências da medicina e da psiquiatria, em geral, e da psicanálise, em particular; e finalmente sobre como qualquer atitude de obediência ao politicamente correto pode ser danosa para a vida, o pensamento e a sanidade de cada um.

“Não tem nada de bonitinho no autismo”, diz Vianna em entrevistar ao jornal O Globo, frase que dá o tom do livro. Seu inimigo oculto é a ideia de que nem todo mundo é neurotípico – uma denominação muito expressiva do manejo politicamente correto do problema –, mas que os desajustados também podem e devem ser felizes. Seria ótimo, se o imperativo de felicidade não se tornasse uma obrigação dolorosa, a serviço da ampliação do sofrimento.

Iniciativas como o estatuto da família, insistentes classificações de famílias disfuncionais – casais homoafetivos e  famílias monoparentais são o maior alvo –, e discursos religiosos ou jurídicos em prol de um modelo exclusivo de união familiar são algumas formas de aumentar o sofrimento daqueles que não podem ou não conseguem se enfiar no padrão de normalidade estabelecido. Em 2003, a psicanalista Elisabeth Roudinesco publicou no Brasil A família em desordem (Zahar) para discutir as transformações nos arranjos familiares. A desordem do título é uma referência à tradicional ordem patriarcal, em desmonte pelas formas mais horizontais e mais afetivas de convivência.

O jornalista Luiz Fernando Vianna (Foto: Ricardo Gaspar)
O jornalista Luiz Fernando Vianna (Foto: Ricardo Gaspar)

Meu menino vadio não é um livro de auto-ajuda, não é sobre como atravessar melhor ou com menos dor a experiência de cuidar de um autista não verbal, não é para consolar ou alegrar ninguém. É um ótimo livro justamente porque Vianna expõe, de maneira dura inclusive consigo mesmo, as particularidades de uma família infeliz. Impossível não se reconhecer em algum momento da narrativa, seja na dificuldade de relacionamento dele com o pai, seja na dificuldade de relacionamento com o filho. Não, o amor não é tudo, embora amar um filho seja tudo, embora Vianna ame seu filho  e esse amor o tenha levado quase ao suicídio.

Por isso também, Meu menino vadio tem valor de leitura para pesquisadores do tema do suicídio. Relacionado por Émile Durkheim, no final do século 19, ao desvio da norma social, a marca do suicídio como uma falha – de quem morre e de quem estava por perto e não soube evitar – perdura até hoje, apesar da distância temporal que nos separa do sociólogo francês, e apesar dos inúmeros debates sobre o direito de escolher sobre como e quando morrer. Se são resultados de causas sociais, suicídios não deveriam ser noticiados por correrem o risco de ser “contagiosos”. Tema tabu na imprensa, o noticiário sobre suicídio foi objeto de uma dissertação de mestrado do jornalista Arthur Dapieve,  publicada em 2007 sob o titulo de Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (Zahar). Ao falar de suicídio do modo como faz – Vianna expõe suas diversas tentativas de dar fim à própria vida, uma delas incluindo morrer com o filho –, faz com que a sua narrativa venha a  se somar a uma ampla literatura sobre a autonomia e saúde.

Discutir a morte é cada vez mais necessário e ao mesmo tempo cada vez mais difícil, num contexto em que a medicina tem sempre uma nova terapia a oferecer, uma esperança de prolongamento daquilo que nem sempre pode ser chamado de vida, uma forma de objetivar o sujeito. Iniciativas como o Testamento Vital, que impedem intervenções inúteis em pacientes próximos da morte, conversas sobre a morte que inexoravelmente virá, como as promovidas pelo Death Café (agora também em São Paulo), e debates sobre suicídio assistido para pacientes de doenças terminais estão entre os tabus que o livro de Vianna ajuda a confrontar.

Até porque, como pai de um autista adolescente não verbal, todos os dias Vianna se vê diante de uma questão que está longe de ser simples. Para ele e para a sociedade. Pais se preocupam em manter seus filhos e sabem que o melhor que pode acontecer é morrer antes deles. No caso de Henrique, cuja autonomia sobre a própria vida nunca será alcançada, a morte de seus pais virá a ser o seu mais completo desamparo. Essa perspectiva no horizonte faz com que Meu menino vadio seja também um livro sobre a dura experiência cotidiana de perda. Nesse ponto, seu autor encara o paradoxo do seu fracasso. Tendo escrito uma narrativa contundente, fez com a escrita o contorno do próprio luto. E pelo menos nisso foi muito bem sucedido.

Carla Rodrigues é professora de Filosofia da UFRJ e vice-coordenadora do laboratório Khôra de Filosofia das Alteridades.

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Meu menino vadio – Histórias de um garoto autista e seu pai estranho
Luiz Fernando Vianna
208 págs. – R$ 44,90

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