A moda como manifesto da arte

A moda como manifesto da arte
Coco Chanel em 1920 (Domínio público/ Arte Revista CULT)

 

“A precisão da arte não é uma precisão artesanal, mas de significados. Pode-se construir com rigor sem contornos rigorosos. Forma não é contorno nem invólucro, mas relação.” 

– Waldemar Cordeiro

17 de junho de 2004, 16h, sala 1 do prédio da Bienal, São Paulo Fashion Week, o maior evento de moda da América Latina. Desfile do estilista Jum Nakao. O circo do mundo armado. Sala cheia, a primeira fila com os editores de moda, convidados, os fotógrafos com as câmeras preparadas. O release fala do retorno ao artesanal, do clima de sonho, do desejo, das roupas inspiradas no século 18, do sentido do existir e do não-existir.

Com 40 minutos de atraso, a primeira modelo entra, trajando uma roupa inteiramente feita de papel vegetal, com estrutura, volume, plissados, colocados sobre uma malha preta e uma peruca de bonecos Playmobil. Uma sucessão de roupas cada vez mais sofisticadas, todas de papel. O que poderia ser apenas uma abertura de desfile foi se consolidando como um todo do desfile. Certo desconforto instaura-se na primeira fila. Mas é isso? E as roupas?

12 minutos depois, e por volta de 20 modelos, segue o ritual da fila de agradecimento, quando entram todas perfiladas. Ao mesmo tempo em que entra o estilista para agradecer, a iluminação e a música sofrem uma brusca mudança e as modelos rasgam todas as suas roupas, a platéia vai ao delírio.

Todo o trabalho de se construir as roupas desaparece aos olhos incrédulos dos presentes e provoca uma catarse. Alguns choram, outros debocham, enquanto a passarela é invadida pelo público, que passa a recolher pedaços de papel que minutos antes se configuraram como roupa. Ninguém acreditava que aquelas preciosidades só existiram naquele momento e nunca mais. O que resta são imagens e, somente, imagens.

A polêmica instaura-se logo após seu término. Os que são a favor, o que são contra. De qualquer forma, como apontou Gloria Kalil no site Chic, não se tratava de um desfile de moda, e sim sobre a moda, pois utiliza todos os códigos conhecidos de um lançamento de uma nova estação. O desfile coloca em xeque toda uma estrutura imensa e dispendiosa montada em torno da roupa e do mercado que ela movimenta. É um manifesto, muitos afirmaram.

Porém, ampliando um pouco a discussão, mais do que um manifesto, esse desfile materializa muito do que se vêm falando sobre o cruzamento de linguagens, uma das grandes questões da arte contemporânea. O estilista e sua equipe conseguiram juntar, num mesmo local, moda, performance, escultura, fotografia, vídeo, música e design. Alguns jornalistas questionaram se não seria melhor se esse trabalho fosse apresentado em uma galeria de arte e não em um evento de moda.

Todavia, depois de Duchamp (1887 – 1969) ter levado um urinol para um espaço consagrado da arte e ter declarado que aquele objeto é arte, depois de as vanguardas artísticas do início do século 20 proporem o rompimento da diferenciação entre arte e cotidiano, hoje, no início do século 21, não seria o local ideal para esta apresentação o próprio local onde pretensamente é o lugar privilegiado para se discutir moda?

Passada a emoção e um pouco da paixão com que se discutiu o desfile, é bom fazer uma pausa para voltar a refletir sobre o binômio arte e moda, o que, aliás, não é um fato recente – mesmo antes da chamada corrente de wearable art, estilistas buscaram inspiração nas artes e artistas interpretaram conceitos do vestir.

Em Paris, no ano de 1921, nasceu o primeiro perfume abstrato da história: Chanel Nº 5. A estilista francesa Coco Chanel (1883 – 1971) – que recebia em seu apartamento a intelligentsia artística e filosófica da época – buscava uma equivalência a este espírito na moda. Criou, então, um perfume que não tivesse nenhuma nota que lembrasse algo como os cheiros das flores ou das frutas. O perfume era pura abstração. Já Klint vestia as mulheres em seus quadros com vestidos niilistas que não encontravam referências no mundo real. Suas “criações” foram encontrar ecos somente na década de 60, no movimento da wearable art.

Na Rússia não foi diferente. Nadejda Lamanova (1861 – 1941) interpretou na moda as criações dos trabalhos abstratos de Kandinsky (1866 – 1944) e construtivistas de Rodchenko (1891 – 1956). No ideário das vanguardas históricas, além de uma nova arte e uma nova arquitetura, também era necessário produzir uma nova maneira de se vestir. Todas essas questões marcavam um rompimento significativo entre arte e cotidiano.

No Brasil, essas relações começam na estamparia. Com o objetivo de introduzir o fio sintético no mercado da moda, um grupo de artistas foi convidado pelo grupo Rhodia para criar estampas exclusivas para sua linha de tecidos.

Na década de 60 e início dos anos 70, mais a roupa, do que a moda, ou o que podemos classificar de indumentária, passou pelos objetos sensoriais de Lygia Clark (1920 – 1988)  e de certo modo por Hélio Oiticica (1937 – 1980), em seus Parangolés. De certo modo, porque o que ele queria discutir era a possibilidade da pintura enquanto movimento.

Nos anos 80, temos a introdução do Bispo do Rosário (1911 – 1989) no mundo das artes, quando o crítico de arte Frederico Morais inclui suas obras na exposição A margem da vida, no MAM/RJ, com suas roupas e lençóis bordados. No final da década de 80, temos Leonilson (1957 – 1993), que relaciona alguns de seus trabalhos com a moda, que culmina com a instalação na “Capela do Morumbi 1993”, em que cadeiras eram “vestidas” com camisas bordadas.

Dez anos depois, na exposição Vizinhos, que procurava evidenciar o legado de Leonilson no jovem artista, realizada na Galeria Vermelho, em São Paulo, tiveram lugar as performances de moda, sob o título Corações ex-postos.

A idéia era usar a moda para restabelecer a ponte – que Leonilson tanto buscava – entre o desejo do movimento, mesmo que fugaz, e a obra de arte.

A escolha dos estilistas repousou na observação de quem na moda estabeleceria um diálogo com Leonilson. A escolha recaiu sobre Karlla Girotto, Raquel Uendi, Priscilla Darolt e Adriano Costa, que de diferentes formas responderam à questão, mas que tinham pelo menos um traço comum: formação ou ligação com artes plásticas, ocupando de certa forma um “não-lugar” no mundo da moda, talvez porque cada uma das produções representa uma antítese do caráter modal, do cíclico, das tendências gramáticas tão caras ao mercado fashion.

Eles não produzem somente em roupas para vestir, mas criam, a partir de códigos da própria moda, trajes repletos de mensagens, atitudes, conceitos que alargam os sentidos do que é o ato primordial do paraíso perdido: cobrir-se.

Neste ano, o desfile de Jum Nakao trouxe novamente esse alargamento de horizontes, que trata no fundo, também, de questionar as relações entre arte e moda. Muitos comentaram que lembravam a queda do muro de Berlim. Depois de destruído, muitos levaram um pedaço de tijolo, fragmentos que se tornariam fósseis de uma história recente. Mas, se pensarmos mais profundamente, a imagem da destruição das torres gêmeas no 11 de setembro fará mais sentido.

Essas imagens, vivenciadas on-line pelo planeta, representam um corte no pensamento contemporâneo, com o mesmo poder que a bomba atômica em 1945 teve na Escola de Frankfurt. Quando nos deparamos com as imagens das torres sendo destruídas, seja no computador, seja na televisão, seja por fotos, começamos a duvidar se aquilo era real. Quando o real passa a ser questionado por sua aparência de ficção, as fronteiras entre real e virtual, ou ficção e realidade, assimilam, com maior impacto, o signo da ambigüidade.

Se o flaneur do século 19 prenunciava a crise de identidade, hoje o cidadão globalizado tem de se entender com seus outros espaços e tempos, que não passam somente pelo estar aqui e agora. Aqui não mais representa um lugar, e agora não mais representa um momento.

É claro que não se trata aqui de um tratado sobre guerra/terrorismo, ou mesmo sobre o conceito de nação, mas sim de tentar, pelo viés artístico, apontar as transformações por que passa nossa cultura contemporânea, marcada pela visualidade e por um estágio de intensa mistura entre as mais diversas formas de construção imagética, na qual temos de lidar com a crise das passagens entre real-virtual-real.

Para o filósofo Alain Renaud, que se tem destacado por suas análises das relações entre a cultura e a tecnologia, a noção de visibilidade cultural hoje está ligada aos processos de simulação interativa, que permitem antecipar o real físico, reproduzi-lo e manipulá-lo. Dentro dessas novas estruturas, aquela que o autor denomina “imagem espetáculo” é substituída pelo “simulacro interativo”, o que gera uma transformação radical não apenas no conceito de representação, mas, sobretudo, na relação com o real.

Se analisarmos a mídia, a indústria cultural vem (re)tratando a sociedade como um espetáculo; ela tem autoridade para transformar eventos tão díspares como guerra ou vida cotidiana em simulacros de shows e games. Podemos afirmar que não estamos mais no terreno do Grande Irmão de George Orwel, em seu livro 1984, e sim imersos no universo descrito por Peter Weil no filme Truman Show (1998), que narra a história de um vendedor de seguros (Jim Carrey) que tem sua vida virada de cabeça para baixo quando descobre que é o astro, desde que nasceu, de um show de televisão dedicado a acompanhar todos os passos de sua existência.

Não é gratuito, aqui, substituir uma referência literária por uma cinematográfica. É claro que a indústria cultural não despreza a literatura, mas o cinema há muito tempo substituiu no imaginário popular, ou das massas, para usar uma expressão cara à indústria cultural, a referência cultural.

A moda, assim como o cinema, não só faz parte da sociedade do espetáculo como também a alimenta. Atualmente, a moda nunca esteve tão em voga, tanto que virou lugar-comum afirmar que a moda está na moda. Nesse caso, não deve ser entendida como roupa, assim como o cinema não deve ser considerado, em sua essência, como filme, mas como um sistema que afirma seu tempo, que é capaz de responder às velozes mudanças num mundo midiático e tecnologizado, ansioso pela próxima novidade. Poucas são as linguagens, incluso literatura, fotografia, pintura, que podem afirmar e realizar essa façanha com tanta precisão.

Foi preciso um estilista destruir sua própria criação para pensarmos para que serve a moda, a quem serve e com quem ela estabelece seu diálogo hoje. Não se pretende aqui afirmar que esse desfile tem a importância do 11 de setembro, porém, nos dois casos, poderíamos aplicar a mesma fábula moral: O rei está nu.

No caso da tragédia norte-americana, um sistema econômico e de poder foi colocado à prova. No caso do desfile, não eram modelos que ficavam nuas, e sim a própria moda, despida de seu mais importante artifício. Por isso, a lembrança. E por coincidência, o que nos resta dos dois são imagens, imagens.

Todavia, vale lembrar que quando a moda se relaciona com outras linguagens, especialmente a arte, é preciso muito mais do que uma imagem que vai ser consumida pela massa; essa relação tem de ser pensada a partir de um rompimento de códigos pertinentes a cada uma para que se estabeleça um outro lugar, que não resulta em mais um produto, e sim em uma obra. Investir nessas relações, ainda que de forma experimental, traz novas reflexões para ambos os campos de criação. O desfile-obra de Jum Nakao é uma dessas experiências. Que venham outras.


RICARDO OLIVEROS é curador de artes plásticas, produtor da Base7 Projetos Culturais. Coordena o Grupo de Arte e Moda da Galeria Vermelho. Realizou a exposição Emoção Art.ficial para o Itaú Cultural em 2002 e foi um dos curadores da exposição Imagética realizada em Curitiba em 2003.

 

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