A má educação

A má educação
O sociólogo Pierre Bourdieu (Pierre Verdy/ Getty Images)

 

Pierre Bourdieu dedicou muitas décadas ao estudo do sistema de ensino (francês), evidenciando a distância entre os sistemas reais de educação e o modelo preconizado pelas políticas educacionais, orientado segundo as exigências do crescimento econômico, e a “inércia cultural” que dele resulta.

Isso lhe permitiu estabelecer importantes rupturas epistemológicas ao desvelar interesses e objetivos dissimulados pela instituição escolar, pela prática dos profissionais da educação, pelas estratégias dos agentes mais bem posicionados na hierarquia escolar.

Seus estudos puseram em xeque os projetos de democratização da educação e os princípios da escola republicana, apoiados e justificados na meritocracia escolar.

Tendo por base o termo “herdeiro”1, inspirado na perspectiva weberiana que considera que a relação de dominação não se limita à esfera econômica e retendo do pensamento marxista o caráter fundamental da divisão da sociedade entre dominados e dominantes, Bourdieu e Passeron rompem, por meio da obra Os Herdeiros (1964), com a “ingenuidade” da ideologia da igualdade de oportunidades que funda o projeto escolar da Terceira República francesa.

Esse projeto defendia a tese do “privilégio cultural”, levando a escola a se tornar “indiferente às diferenças”, a tratar como iguais em direitos e deveres crianças desiguais em relação aos critérios exigidos para o êxito escolar.

Ainda que a escola proclame, persistentemente, sua função de instrumento democrático da mobilidade social, seus estudos vão mostrar que ela exerce um papel crucial na legitimação e, portanto, na perpetuação das desigualdades diante da cultura.

Ao ignorar que as aptidões dos alunos não se devem somente aos “dons naturais” e méritos pessoais (os quais permanecem hipotéticos), a escola transmite – por meio dos dispositivos de julgamento que emprega – a cultura da elite, reafirmando seus privilégios sociais: “Todo ensino, e mais particularmente o ensino de cultura (mesmo científica), pressupõe implicitamente um corpo de saberes, de saber-fazer e sobretudo de saber-dizer que constitui o patrimônio das classes cultas” (Bourdieu e Passeron, 1985, p. 36).

Herança cultural

A partir de estatísticas que mediam as desigualdades de acesso ao ensino superior (francês) segundo a origem social e o sexo, apoiando-se num estudo empírico das atitudes dos estudantes universitários e de professores e também numa análise das regras – frequentemente não escritas – do jogo universitário, nossos autores evidenciam a força da herança cultural e do ambiente familiar (onde a cultura é adquirida “como por osmose”) no desempenho e nas escolhas das habilitações desses estudantes.

Fica assim demonstrado que a carreira e o êxito escolar não decorrem somente das desigualdades econômicas, pois o “peso da herança cultural é tal que se pode desfrutar dela sem ter necessidade de excluir, pois tudo se passa como se fossem excluídos apenas os que se excluem” (Bourdieu e Passeron, 1985, p. 43).

A maior originalidade da tese esboçada nesta obra, que põe em questão os princípios da meritocracia escolar, está relacionada à gênese do conceito de habitus, um dos conceitos centrais da sociologia de Bourdieu.

Ao concebê-lo como a interiorização das condições objetivas das quais ele é o produto, o autor constata que os indivíduos aprendem desde muito cedo a antecipar seu futuro de acordo com a experiência vivida no presente e, portanto, a não desejar o que, no seu grupo social de origem, aparece como eminentemente pouco provável ou, no caso do sexo feminino, como inadequado.

Assim, o que frequentemente se considera – sobretudo pelos professores – como ausência de dons ou capacidades é tão somente o resultado de uma socialização diversa daquela preconizada e realizada pela escola.

 

Nota

1. O termo “herdeiro” foi quase completamente incorporado à linguagem corrente para designar os filhos das famílias mais cultas e mais bem favorecidas economicamente, dos quais se sabe que não terão problemas na escola e farão carreiras universitárias brilhantes: “Ao lado do capital cultural que dispõem os jovens oriundos das classes mais favorecidas, a saber, todos esses elementos (livros, obras de arte, viagens, acesso às mídias…) que compõem um ambiente propício às aprendizagens, é mais amplamente a ‘herança cultural’ que constitui a dimensão mais discriminante e mais decisiva em termos de êxito escolar” (Duru-Bellat e Zanten, 1992, p. 67).


IONE RIBEIRO VALLE é professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e está traduzindo Les Héritiers (Os Herdeiros), de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. O livro sai no final deste ano pela Editora UFSC.

(2) Comentários

  1. Boa noite, estou pesquisando pela internet afora em busca de informações do lançamento do livro, mas até o momento nada foi descoberto. Peço a todos, se tiverem notícias sobre um possível atraso na edição, ou mesmo o nome da editora responsável por esta, informar-me. Estou desenvolvendo um trabalho sobre o assunto e esta leitura seria decisiva.
    Agradeço desde já.

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