A loucura da fé

A loucura da fé

A mística cristã, representada por nomes como Mestre Eckhart e São João da Cruz, constitui uma tradição em que a vivência religiosa do encontro entre criatura e criador se dá no plano da imanência e em que a experiência de Deus não está ao alcance da racionalidade ou da linguagem

Ceci Baptista Mariani

Quando o sentido vem, a alma se esvai
O corpo se dobra,
se ajoelha,
morre
e Vive!

Falar de mística é ousar dirigir-se para o que não está ao alcance da racionalidade tendo como ponto de partida três pressupostos. O primeiro, que a existência do humano inclui uma dimensão de abertura que o lança para além dos limites da sobrevivência material; a dimensão da transcendência aparece quando se vivencia o trabalho para além do salário, a política para além da manutenção da ordem, o relacionamento para além da reprodução… O segundo pressuposto implica a afirmação da existência do transcendente, existência que, apesar das múltiplas tentativas não pôde nunca ser comprovada pela inteligência, mas que pôde sempre ser testemunhada pela experiência. Nesse sentido, é referencial importante para a tradição cristã o esforço de Tomás de Aquino em sistematizar as cinco vias para se chegar à existência de Deus, cinco vias conhecidas como provas da existência de Deus, mas que na verdade são argumentos para tornar menos louca a “loucura da fé”. O terceiro e mais ousado pressupõe a possibilidade de relação, do encontro entre criatura e criador, experiência no nível da imanência do absolutamente transcendente, experiência espiritual.

É um monge beneditino, Ghislain Lafont, que esboça um caminho interessante no sentido de poder estabelecer alguns pontos de referência para a compreensão de uma experiência que, segundo ele, é um saber que não está ao alcance da racionalidade, mas no nível das percepções primeiras nas quais se desenvolve a linguagem e para as quais não há linguagem. Esse autor vai afirmar que a experiência espiritual, o encontro com o numinoso, no entanto, deixa marcas no corpo e é a partir da observação dessas marcas que se pode dizer algo sobre mística.

De dentro da tradição cristã podemos observar alguns corpos marcados, gente mística que expõem cicatrizes “risonhas e corrosivas”, sinais de experiências paradoxalmente vividas como prazer e dor. Gente que chegou a experimentar o transcendente como presença amorosa, que sentiu em si o Amor que o coração humano mal pode suportar, amor com o qual o próprio Deus ama. De dentro da tradição cristã se afirma que “Deus é amor” (ho Théos agape estín [1 Jo 4, 8.16]). Segundo o teólogo espanhol André Torres Queiruga, esta frase constitui o ponto de partida e a matriz de todo o discurso de João no Novo Testamento e é, para o cristianismo, nuclear, irradiante, tudo o mais é conseqüência. Teresa de Lisieux, mística carmelita do século XIX, vai afirmar que a partir de Jesus Cristo não basta amar o outro como a si mesmo, mas amar como Deus ama. Em seu manuscrito autobiográfico escreve, reinterpretando a tradição, a partir da própria experiência de Deus: “Quando o Senhor ordenou a seu povo que amasse ao próximo como a si mesmo, não tinha vindo ainda à Terra. Por isso, sabendo até que grau a pessoa ama a si mesmo, não podia pedir às criaturas amor maior para com o próximo. Mas quando Jesus deu a seus discípulos um mandamento novo, o Seu mandamento, como diz adiante, não é mais amar ao próximo como a si mesmo que ele ordena, mas amá-lo como Ele, Jesus o amou, como o amará até o final dos séculos…”. Teresa fala de descentramento. O Amor, que o Evangelho chama de Agape, está presente em toda forma de amor, mas não se identifica com nenhuma forma humana de amar porque é amor absolutamente incondicional. Agape é palavra que remete à irrupção do amor sobrenatural para dentro do mundo de maneira absolutamente inesperada e paradoxal. O místico ama com o amor de outro, do totalmente Outro, e nessa medida esvazia-se de si mesmo.

A tradição monástica vai nascer do enfrentamento desse vazio no deserto. Os padres do deserto vão se dispor a enfrentar o nada, perseverar na solidão e aí lutar contra os demônios da fome com a arma do jejum; do sono, com a arma da vigília; do sexo, com a arma da abstinência. A luta é travada contra os demônios de base, necessidades primeiras que possuem força de submeter o humano, paralisá-lo nesse lugar, aprisioná-lo no mundo e determinar o papel que se deve representar.

O padre do deserto mergulha no silêncio do deserto que representa para ele a única saída para um mundo sem saída, mundo composto por vales de aldeias apinhadas, condenadas ao trabalho incessante pelo medo permanente da fome, mundo da tagarelice das palavras sem consistência. Como diz Jean-Yves Leloup, teólogo ortodoxo: “Os olhares alambicados de cobiça, os repetidos gritos da cólera, as afirmações peremptórias de entes sem fundamento, tudo isso faz subir a suas narinas o odor nauseabumdo das lassitudes e do desgosto.”

A literatura ascética dos séculos IV e V vai falar de homens transformados, transfigurados pelo deserto como Antão que, depois de duas décadas habitando uma fortaleza abandonada, emerge para reunir discípulos. O que se perpetua desses homens e mulheres são alguns relatos hagiográficos e palavras, outras palavras, palavras recolhidas no silêncio e transformadas em provérbios sapienciais. Os “apotegmas” são sabedoria humana constituída com os frutos de autêntica experiência de Deus. Sobre o silêncio autêntico e uma palavra útil, diz o “pai do deserto” (abba) Poimém: “Há um homem que parece calar-se, mas seu coração condena os outros; um homem assim fala sem parar. Ao contrário, há outro que fala, da manhã até a tarde, e no entanto guarda o silêncio, porque nada diz que não tenha utilidade espiritual” (Abba 175). E em outro apotegma: “Um irmão perguntou a abba Poimém: ‘O que é melhor, falar ou calar-se?’ O ancião respondeu: ‘Quem fala por Deus faz bem e quem se cala por Deus, também’” (Abba 174). E sobre o sentido da denominação abba: “Um dia, abba Antão recebeu uma carta do imperador Constâncio convidando-o a ir a Constantinopla. Ele refletiu sobre o que faria. Disse então a abba Paulo, seu discípulo: ‘Devo ir?’ – ‘Se fores, respondeu este, serás chamado Antão, se não fores, abba Antão’” (Abba 129).

Aqui já se pode enunciar que uma característica da experiência do absoluto é a ruptura, separação de certo nível imediato da vida corporal. A mística medieval vai viver essa ruptura como aniquilamento. Marguerite Poréte, mística de Valenciennes (norte da França), provavelmente nascida em 1250, deixa um livro intitulado Le miroir des âmes simples el anéanties. Esse escrito constitui-se numa alegoria mística sobre o caminho que conduz uma alma à união perfeita com seu criador e Senhor. O aniquilamento, para ela, é o estado em que as almas simples adquirem a mais plena liberdade e o saber mais alto. A alma aniquilada, amorosa de Deus, recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais compreensão do que a que está no alcance capacidade ou do trabalho humano de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada.

A alma não compete, aniquilando-se, entrega-se, torna-se uma com a transcendência. A alma experimenta uma indiferença radical. Aquilo que pensa, fala ou faz é exclusivamente obra de Deus, o amor operando nela. Seu saber e seu fazer de alma aniquilada tem paradoxalmente autoridade divina. Da experiência de maior humilhação, emerge uma radical liberdade.

Essa alma é a própria Marguerite Poréte que quer fazer conhecido o seu próprio itinerário místico, ela é a alma que faz escrever o livro, que enfrentou sucessivas mortes: morte para o pecado, morte para a natureza, morte para a vontade, morte para o espírito.

Marguerite Poréte, acusada de heresia recolheu-se no silêncio. Foi queimada em Paris em 1310. Seu livro, de fato perigoso, subverte a dinâmica da submissão, descrevendo o ultrapassamento, através da maior humilhação (o aniquilamento do eu é humilhação ontológica), de toda a mediação, para chegar à união direta com o Transcendente. O saber e o fazer da alma aniquilada é incontrolável porque é saber e fazer do Amor que mora nela.

O itinerário da alma que atravessa tudo o que sustenta sua experiência religiosa, que não se detém em lugar nenhum até abismar-se, saltar no abismo sem fundo, no infinito, que desde o ponto de vista da imanência é Nada, e desde o ponto de vista da transcendência é Tudo, está também presente na obra de Meister Eckhart (século XIV). O total desprendimento e a perfeita liberdade são os caminhos da Unidade. A insondável Sabedoria de Deus dirá: “Felizes os pobres.” Há duas maneiras de pobreza, interpreta Meister Eckhart no Sermão 15. Uma pobreza exterior boa e louvável no homem que a suporta voluntariamente por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas a pobreza que Meistre Eckhart quer ressaltar é outra, aquela em que se aplica a palavra de Jesus no Evangelho de Mateus: “Felizes os pobres de espírito.” Estes são os que experimentam a pobreza interior, são os que não encontram satisfação em nada que Deus tenha criado. Meister Eckhart vai, através dessa reflexão, dar à palavra pobreza um sentido elevado: pobre de espírito é um homem que não quer nada, não sabe nada, não tem nada. É preciso ser pobre, desprendido de todos os apegos, libertado até de Deus mesmo para que haja o nascimento do Filho no fundo da alma: “O Pai gera seu Filho em mim, e eu sou também do mesmo modo filho e não outro; (…) o homem deve assim viver para que a si mesmo seja uno neste Filho Unigênito, e que para ele mesmo seja aquele Filho Unigênito. Entre o Filho Unigênito e a alma não há qualquer distinção.”

O desprendimento dispõe para o encontro. Para Ghislain Lafont esta é a segunda característica da experiência do absoluto que se refere a uma entrada, ainda que efêmera, em outra região da qual o homem, em todo o seu ser, se sente transfigurado. Ninguém melhor do João da Cruz descreve a união mística.

João da Cruz, religioso carmelita reformado e reformador, em agosto de 1578 – conforme escreve o frei Carlos Josaphat em Contemplação e libertação: Tomás de Aquino, João da Cruz, Bartolomeu de Las Casas (editora Ática) – escapa da prisão de Toledo, onde o haviam encarcerado os irmãos carmelitas (não reformados), trazendo consigo um caderno escrito na penumbra do cárcere. Entre os escritos, o poema “Onde te escondeste, Bem Amado? – Canções entre a Alma e o Esposo”, inspirado no livro do Cântico dos cânticos. Poema de Amor a Deus que expressa o paradoxo do Tudo que alcança o humano que experimenta o Nada. Encarcerado num local escuro, com seis pés de largura e dez de comprimento, antiga latrina cavada na muralha que cerca o convento, João chega ao estado de nada absoluto, com os dedos enregelados, a túnica apodrecida, sobrevivendo entre os parasitas, do fundo da “Noite escura da alma” (e do corpo) ergue seu grito de amor:

Aonde te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo escapaste,
havendo-me ferido;
saí, clamei por ti, já havias ido.

A alma aniquilada, a esposa, não quer outro que Deus mesmo, seu único desejo é Tudo:
Quem poderá cura-me?
Acaba de entregar-se por inteiro;
não queiras enviar-me
um outro mensageiro,
pois não sabem dizer-me o que mais quero.

Quando o Amado descobre sua presença, a alma se esvai, o encontro místico é amor e amargura, doença sem cura:

Descobre tua presença,
mate-me tua visão e formosura;
não te esqueças que a doença
de amor jamais se cura
a não ser com a presença e a figura.

E no poema “Noite escura”, João toca o núcleo paradoxal da experiência mística:

Ó noite que guiaste!
Ó noite mais amável que a alvorada!
Ó noite que juntaste
amado com amada,
amada em seu amado transformada!

E finalmente, depois de observar esses corpos todos marcados com o selo da transcendência, pode-se enunciar a última característica da mística cristã, a comunhão, um impulso de reconciliação universal e solidariedade que se desdobra do desprendimento e do encontro, impulso descrito de maneira especial por uma palavra repetida desde fora da tradição cristã por um místico hindu e moderno: Ahimsa é um sentimento profundo, um segredo, um único desejo que Ghandi expressa como um mandamento – “Amarás a mais insignificante das criaturas como a ti mesmo. Quem não fizer isto jamais verá a Deus, face a face.” Ou melhor, sob a inspiração de Teresa de Lisieux, “Amarás a mais insignificante criatura com o amor de Deus que habita em ti”. De fato, podemos arriscar concluir essa reflexão com a afirmação de que a reconciliação universal e solidariedade foram desde sempre e continuam sendo nossos grandes desafios atuais. Desafios a serem enfrentados no reconhecimento da insuficiência humana e na abertura para uma força estranha que irrompe incontrolável para dentro do mundo, em lugares absolutamente inesperados: Deus.

Ceci Baptista Mariani
Teóloga, professora da PUC-Campinas, do Instituto Teológico São Paulo (ITESP) e da Escola Dominicana de Teologia (EDT)

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