A literatura e o direito ao perigo

A literatura e o direito ao perigo

Em seu novo livro, o ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov critica a produção autocentrada dos escritores contemporâneos e propõe uma retomada do poder de referir o mundo

Julián Fuks

Por mais produtivo e caudaloso que seja, por mais devotado a seu credo e entregue à ebulição que lhe toma os dedos, não há escritor moderno que jamais tenha flertado com o silêncio. Arrisco dizer mais: em tempos recentes, não há escritor que não tema sucumbir à mudez a cada salto brusco de parágrafo, a cada palavra que não se deixa despejar sobre a página, a cada ponto renitente que insiste em se fazer final. Frase a frase descobrem, esses homens atemorizados, que escrever é um ato feito de violência e arbitrariedade, um gesto deformador de toda ambição e toda intencionalidade, um testemunho doloroso do abismo que existe entre o mundo e a possibilidade de referenciá-lo.

Talvez para amortizar o desamparo que decorre dessas incursões sempre frustradas, há mais de um século proliferam explicações das mais diversas para a impossibilidade de narrar que acomete o homem da modernidade. Licença para abstrações: Que o sujeito protagonista da época teve sua totalidade rompida e tornou-se mera aparência, “objeto de si mesmo”, e que sua existência se diluiu “na insubstancialidade do mundo em ruínas criado por ele próprio”, como propôs o húngaro Georg Lukács; Que esse sujeito está fustigado por uma crise da experiência exemplar e da sabedoria que se transmita de geração para geração, tendo como uma de suas características a incapacidade de reconhecer episódios e “intercambiar experiências”, como queria Walter Benjamin. Comum a essas e a outras teorias, a noção de que algo se perdeu, de que uma prática importante foi deixada para trás, de que a literatura – e o gênero em que ela mais tem se encarnado, o romance – já não cumpre plenamente sua função e pode estar rumando para o desaparecimento.

São louváveis esses críticos, admiráveis suas interpretações, mas o caso é que em nada aliviam a dor da impossibilidade, e é essa a aflição que assola o escritor no instante em que ele se debruça sobre a folha em branco. Uma aflição poderosa porque teima em perpetuar-se, fazendo de cada uma de suas soluções um novo obstáculo. Daí a revolta contra procedimentos convencionais que resultou nos ímpetos destruidores das vanguardas. Daí as ruínas que restaram décadas mais tarde, letras cavando seu espaço no caos das páginas como se atravessassem territórios desolados. Daí a necessidade em que se viu o escritor de autocentrar-se, de catar as palavras uma a uma e ponderar seu alcance, de se voltar para a própria escritura e tentar a todo custo salvá-la – esquecendo, por um momento, o mundo que o circunda.

Os dois formalismos

É contra este último fenômeno, a que alguém resolveu dar o nome de formalismo, que se lança Tzvetan Todorov em seu livro mais recente. Já no título o ensaísta búlgaro reconhece estar A literatura em perigo, mas, para a surpresa do leitor habituado a tais prescrições, não se seguem menções a uma insubstancialidade do mundo ou a qualquer crise da experiência. Para Todorov, a literatura foi posta em risco pelas supostas vítimas dessas contingências, por escritores que só falam de si e de seus próprios encargos e assim deixam triunfar “uma concepção absurdamente reduzida do literário”. Culpa deles, dos que creem que “a obra impõe o advento de uma ordem em estado de ruptura com o existente, a afirmação de um reino que obedece a suas leis e lógicas próprias”. Culpa dos que veem no livro “um objeto de linguagem fechado, autossuficiente, absoluto”.

É irônico, embora não contraditório, que a acusação venha de alguém com a trajetória de Todorov. Décadas atrás foi ele o maior entusiasta das ideias do formalismo, mas não o destes homens ressabiados diante da realidade, e sim o de alguns dos que desbravaram no início do século um novo método de crítica: os formalistas russos. Foi o jovem Todorov, exilado na França a partir de 1963 para proteger-se dos excessos do regime socialista, quem se incumbiu de retomar as reflexões daqueles homens, a um só tempo valendo-se dos novos achados da linguística. Tornou-se talvez o maior propagador de um certo estruturalismo, um tipo de crítica que se desentendia dos conteúdos específicos, deixava de lado o universo referido em cada obra e buscava compreendê-la “em sua literalidade verbal”, como um sistema de signos dotado de estruturas que subjazem a todo discurso literário.

Entre formalismo e formalismo, o dos críticos russos e o dos romancistas de hoje, o que ocorreu foi uma apropriação imprevista. O que antes era matéria para análises dissertativas foi incorporado pelos escritores em suas próprias narrativas, dando-se em seguida a expulsão do mundo tal qual se refletia nos romances de outros tempos. Surgiram obras cada vez mais herméticas, que “cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento de texto, as simetrias, os ecos e os pequenos sinais cúmplices”, cujo interesse reside tão-somente nas “proezas técnicas de seus criadores”. Com a exclusão do mundo, completa-se o raciocínio do novo Todorov, teriam sido enjeitados também os leitores.

Do prognóstico negativo, Todorov parte para as resoluções. Sem nenhuma ingenuidade, permite-se ser nostálgico: quer a literatura “no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século 19”, que faça o leitor descobrir e ampliar universos, que fale da vida e o ajude a encontrar novas formas de compreendê-la. Quer que o ensino se paute por essa perspectiva, que crianças e adultos vejam nos livros alternativas para suas rotinas, que prosa e poesia recobrem seu poder de influência e voltem a ocupar seu lugar central no conjunto dos discursos vivos. Um sonho que, à primeira vista, nenhuma mente sã haveria de querer contrariar.

Ora

Do pesadelo em que submergiu a literatura do século 20, do delírio provocado pela ferida que se abriu entre criação e mimese, resultaram algumas das mais retumbantes produções humanas. No âmbito da narrativa, para dizer o óbvio, uma lista de empreendimentos singulares e grandiosos esgotaria toda a tinta aqui impressa, mas não poderia deixar de conter as obras de Joyce, Kafka, Beckett, Faulkner. Se não coroam o abandono do mundo, seus romances, ao menos arremetem contra ele uma força própria, intrínseca, constituída pelo rigor de seus preceitos e pelo radicalismo com que encaram a realidade, sem se renderem à tentativa inócua de transportá-la.

Se tem se questionado o ato de verter palavras, se tem se agravado o tormento dos que empunham a caneta e se curvam sobre a página, é por medo, sim, mas também por uma recusa a se curvarem a padrões e condutas do passado, por um acréscimo de consciência que não deve ser desprezado. A literatura se sabe problemática, sabe que não comporta o peso dos seres e dos objetos em umas tantas letras enfileiradas. Sabe-se, também, parte integrante do mundo que a ressente e sabe que não conseguirá incidir sobre ele, e não cumprirá o papel que dela se espera, enquanto não puder se haver consigo mesma – e nem assim se deixará fluir a esmo. Todorov foi quem disse, em tempos pregressos e comprovando-o com a Odisseia e com As mil e uma noites, que a literatura é feita de dois polos e “as discussões metodológicas não são uma parte secundária do domínio mais vasto, uma espécie de subproduto acidental: elas constituem seu próprio centro, representam sua tarefa principal”.

Mas vale pensar, por que não?, em uma era em que esse egotismo enfim se resolvesse e se mitigasse, e pudesse se criar outra eloquência e outra profundidade. Uma sociedade em que as canetas percorressem as páginas com mais liberdade e a literatura não se fechasse, de fato, apenas a alguns poucos conhecedores, sem no entanto ser obrigada a se abrir a qualquer anseio redutor e massificante do público. Vale pensar essa era, sem dúvida, pois de nada valeria ficar sem pesadelo e sem sonho.

A literatura em perigo
Tzvetan Todorov
Trad.: Caio Meira
Bertrand Brasil
96 págs. – R$ 25

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