A infelicidade
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… a melancolia, a reflexão sobre a infelicidade consumada, nada tem a ver com o vulgar desejo de morte. É uma forma de resistência.
W. G. Sebald, A descrição da infelicidade
1. Mariupol, pequena e bela cidade portuária da Ucrânia, se prepara para receber a Primavera do Hemisfério Norte neste março de 2022. Em 1941, os habitantes dessa simpática cidade banhada pelo Mar de Azov também esperavam a mudança das estações, as transformações milagrosas do clima, alternando a lâmina precisa do frio, o cinza, a explosão das flores, os açoites do vento, o abraço do sol. E a nova estação não veio. No seu lugar vieram as bombas e, em virtude disso, o ciclo das estações, a obra da Natureza, deu lugar à obra humana da guerra – uma força indomável capaz de parar o tempo e alterar os calendários.
Em março de 2022 a Primavera não chegou em Mariupol na data marcada. A despeito dos pedidos sinceros, das súplicas dos habitantes do lugar, apesar da boa vontade da Natureza, não veio a Primavera. Como em 1941, na época que o exército alemão chegou antes da Natureza operar seu milagre, em Mariupol as pessoas não sabem mais quando será a próxima estação, quando tempo voltará a correr sem pedir concessão, quando a beleza retornará.
A impressão que dá é que todo o planeta se interrompeu, renunciou à sua obrigação de girar e agora admira o espetáculo da devastação em Mariupol… Outra vez.
2. No coração da Primeira Grande Guerra, em 1915, nas suas Considerações atuais sobre guerra e morte, Freud escreveu que nenhuma outra força é capaz de devastar “tantos e tão preciosos bens comuns à humanidade”, lançando tudo o que é valioso, belo e elevado para o fundo de um poço.
Como hoje, 2022, naquela época a “guerra que não queríamos acreditar” seguiu derrubando tudo que lhe atravessava pela frente, os parques, os prédios, as pessoas, as barricadas de livros, como se depois já não houvesse qualquer futuro. Como em 1915, hoje a guerra é mais sangrenta e mais mortífera exatamente por causa do progresso… O progresso e as suas realizações maravilhosas!!! Lá e cá, os soldados e civis têm medo, muito medo e, movidos pelo horror, se permitem a crueldade e a violência, os estupros, torturas e assassinatos.
Do rosto de uma mulher ensanguentada, cabeça enfaixada, tendo ao fundo um prédio destruído, podemos ouvir: Sacrificamos tanto nossas vidas, trabalhamos tanto, renunciamos o fluxo livre do nosso desejo e finalmente fomos trazidos para as ruínas de Mariupol, Beaumont-en-Verdunois, Aleppo, Beirute, Colônia. Logo nós? Não bastou o sofrimento dos nossos avós em 1941?
3. A guerra é a mais poderosa máquina de produzir infelicidade que pudemos criar. A infelicidade produzida pela guerra não é a infelicidade de estrar triste porque perdemos algo precioso. É a infelicidade como algo real e concreto, alguma coisa que podemos acompanhar com os olhos ali, desfilando pelas ruas, um ser que podemos estender a mão e tocar.
Uma guerra tem o objetivo exclusivo de matar e destruir, porém sempre tem muitos lados e não dá para compreender todos eles. Existem aqueles que celebram as armas e, como abobalhados correm ao seu encontro, veem na carnificina a oportunidade para se divertir e se transformar em heróis de um filme B; temos os que lucram com a guerra, os empreendedores da calamidade (como lemos, escandalizados, em A ordem do Dia de Éric Viullard). Não podemos ignorar as causas nobres, o amor à pátria, a inspiração divina, a grande libertação, a redenção do povo, o sacrifício glorioso.
E na guerra também tem o lado dos infelizes. Não se tornam heróis, não se divertem, não lucram, não acreditam. Ficam, primeiro estarrecidos com o absurdo, depois indignados e, por fim, infelizes.
Invariavelmente, os infelizes não têm qualquer poder para decidir os rumos da guerra; seu papel se resume a lamentar, rezar, chorar… Ou resistir como podem. Existem também os que morrem nas explosões e, por isso, deixam a infelicidade escrita no testamento para seus herdeiros.
4. A infelicidade estampada no rosto da mulher não é somente o lamento e a tristeza. O infeliz da guerra está infeliz porque esbarrou na realidade e olha nos olhos da calamidade. É claro que a dor, o sofrimento e a morte não são criações humanas. A guerra, sim. Por isso, ela traz consigo, para Freud, um sentimento de desilusão. Esse é um sentimento tão radical porque também pode assumir a forma de um tipo de investigação da alma humana: há a calamidade, ela já se instalou e não há como ignorar seu poder destrutivo (não dá para agir como o personagem de A vida é bela que consegue esconder a calamidade do filho e o fazer pensar que está em uma colônia de férias e não em campo de extermínio) e algo surge nos sobreviventes.
O infeliz da guerra é aquele que se pergunta o que lhe arrastou até aqui novamente e novamente e novamente. Como em Mariupol, não é a primeira vez que os escombros tomam o lugar das avenidas, parques, escolas, teatros. Seria possível ter evitado essa desgraça? Para o infeliz, dói na alma pensar que havia, antes da calamidade, algo que estava ao seu alcance – mas ele estava distraído, tinha ido ao cinema, estava cuidando do cabelo, assistia vídeos engraçados nas redes sociais, não viu que os ovos da serpente foram expelidos e eclodiram.
Para o infeliz, é correto dizer que guerras – no abstrato – são inevitáveis. Assim como também é correto dizer que esta guerra, a guerra particular, era evitável.
5. Para quem vive a desgraça da guerra, o que lhe trouxe até a devastação é a mesma fonte tanto para o que lhe faz estar desesperado quanto o que lhe faz ter conhecimento. Talvez tenha sido por isso que W.G. Sebald escreveu que “a descrição da infelicidade traz em si a possibilidade de a superar”.
Essa é a beleza sublime da infelicidade: ela parece ser um modo de sentir que a devastação não pode se tornar um ambiente natural e familiar.
6. Pode ser estranho, no meio da contabilidade dos mortos, da ameaça nuclear, falar de beleza sublime da infelicidade.
Nós nos acostumamos a enxergar nossas dores e sofrimentos pessoais como doenças do nosso corpo individual – que sugere um avanço das artes médicas –, algo que pode ser detectado, diagnosticado, medicado e, finalmente, curado – o que demonstra o sucesso da indústria farmacêutica. Até mesmo aquele aperto no juízo, o abatimento diante da fábrica de ruínas e desalentos, mereceu seu código no CID (Classificação Internacional de Doenças). E nos perdemos da infelicidade.
No lugar da infelicidade há a depressão, essa doença terrível que consome os cérebros, até mesmo de crianças, e empilha cartelas de medicamentos de tarja preta nas gavetas dos banheiros. De certo modo, a depressão é uma negação da infelicidade. Parece que não aceitamos o peso da nossa desilusão com os caminhos da civilização. É intolerável para uma pessoa do século 21 reconhecer que a espantosa história de conquistas e realizações da civilização, o sucesso da tecnologia, dos produtos de beleza, do Direito do Consumidor, tenha nos arrastado até aqui, mais ruínas, mais violência, mais mentiras, este presidente.
Porém, enquanto a depressão causa o abatimento, a inação, um buraco do qual não conseguimos sair sozinhos, a infelicidade é uma forma de crítica de si mesmo e da cultura. A infelicidade pode, inclusive, produzir algumas coisas valiosas, como a literatura, Tólstoi, Dostoiévski, Kafka, Canetti, Thomas Bernard, Robert Musil, Jamaica Kincaid, Loyola Brandão, Julian Fuks, Itamar Vieira Jr., Paulina Chiziane, e a psicanálise. E a esperança.
“Sob este aspecto – escreve Sebald em A descrição da infelicidade –, declarar a nossa infelicidade pessoal e coletiva traz consigo uma experiência que, ainda que por um triz, mesmo assim permite chegar ao contrário da infelicidade.”
7. As tropas se aproximam, deixando para trás um rastro de destruição e veneno. Os mais velhos não têm como escapar, os mais novos não têm para onde ir, os adultos tombam, as edificações tombam e ardem. O futuro era uma ilusão. Um presidente louco vocifera palavras desconexas, ele só odeia e xinga, ri e xinga, ele convoca seus soldados para seguirem firmes sobre as ruínas. Não estamos mais em Mariupol, estamos em Jobar, Síria, estamos em Darfur, estamos em Roraima, estamos no Pará, estamos no Rio Madeira, próximos da cidade de Autages, estamos no Bairro da Paz em Salvador, estamos no Morro do Alemão. A guerra chegou aqui antes de Mariupol. Aqui também não assistiremos à próxima estação. Nosso único consolo é declarar a nossa infelicidade pessoal e coletiva.
PS.: Agradeço meu querido amigo Samuel Goldenberg pela lembrança dos textos de Freud sobre a guerra.
Waldomiro J. Silva Filho é professor titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Atualmente é Pesquisador Visitante do Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition da Universidade de Colônia, Alemanha.