A força de Derrida: para pensar o Direito e a possibilidade da justiça
Quais são os limites da justiça e da desconstrução?
Vera Karam de Chueiri
O título deste artigo não é original, pois remete à memorável fala de Derrida na Cardozo Law School, em Nova York, em outubro de 1989, intitulada Force de loi: Le fondement mystique de l’autorité. Esse colóquio ocorrido em uma escola de direito sob o título “Desconstrução e a possibilidade da justiça” (re)uniu filósofos, juristas, lingüistas, críticos literários, professores e, também, alguns alunos. Todos, mais ou menos comprometidos com a questão (ou a possibilidade) da justiça, do Direito, da ética e da política e sua relação com a desconstrução ou, com isso que é more than one language e, também, one language no more.
O fato desse evento ter acontecido em uma escola de direito nos faz pensar nessa transferência entre linguagens, isto é, não somente entre diferentes linguagens (more than one language), mas também dentro de cada uma delas (one language no more). A desconstrução pode ser esse compromisso com a transferência entre linguagens, a qual se torna dependente de outras (transferências) que estão acontecendo dentro das suas fronteiras. Tanto a língua que naturalmente se fala quanto o discurso das disciplinas individuais descobrem, através desse movimento, articulações escondidas no seu interior que abrem a possibilidade de se tecer novas redes (Weber, Cardozo Law Review, 1990: 1515). É mais ou menos como se a trama do direito fosse percebida através do seu avesso, ou daquilo que do seu interior se descobre, ainda que isso não signifique dizer que a desconstrução é o avesso do Direito.
Esse movimento que Derrida provoca, desestabliliza e põe em cena as aporias que estão na constituição da justiça. Daí é significativo relacionar a fala de Derrida com o espaço de uma escola de direito, como também as articulações e transferências ali produzidas para pensar a possibilidade da justiça. Isto é, o conhecimento especializado do Direito, esse que instrumentaliza seus operadores para dar respostas, pretensamente certas aos mais diversos conflitos que se lhe apresentam, contamina-se com algo que está além da totalidade da ciência, da en-ciclo-paedia. Algo que é mais essencial (e talvez por isso mesmo sofrível) e não se ajusta ou não pode simplesmente ser objeto de uma teoria: a possibilidade da justiça.
Logo no ínico da sua conferência Derrida fala do dever de se endereçar ao público em inglês. Essa responsabilidade de atender a uma demanda acadêmica rearticula o título do colóquio que passa a ter a forma de uma pergunta e levanta, também, uma certa suspeita: est-ce que la déconstruction assure, permet, autorise la possibilité de la justice? (Cardozo Law Review 1990: 920) Essa suspeita acerca da relação entre desconstrução e a possibilidade da justiça descobre outras relações, não menos sofríveis, como a da justiça com o Direito, acerca da qual também suspeitamos. Esse sofrimento que é experimentado pela desconstrução e por aqueles que ela própria faz sofrer é justamente a ausência de um critério mais seguro, de uma resposta certa para a (in)tensa relação entre justiça e Direito.
O colóquio da Cardozo se desdobrou, ao longo da década de 1990, em outros eventos, como os seminários de outono de 1997, 1998, 1999 e 2000 na New School for Social Research, acerca do perjúrio, do perdão e da pena de morte, todos invariavelmente marcados pela desconstrução e a possibilidade de justiça: pelo sofrimento que se sente e se faz sentir. Esses eventos foram também marcados pela questão da responsabilidade e aí, com o que ao outro se relaciona. Não somente o público presente nos seminários, mas outros sujeitos, cujas identidades não apareciam naquele cenário cultural, foram tocados pela pergunta (e pelo sofrimento) que em 1989 foi sobre a desconstrução e a possibilidade da justiça e que mais tarde assumiu outros nomes: hospitalidade, testemunho, perjúrio, perdão, pena de morte.
As respostas de Derrida ao fazer uma conferência, ao homenagear um amigo ou dizer-lhe adeus ou, ainda, ao dar uma aula de filosofia são radicalmente determinadas pela presença do outro até mesmo onde esse outro é anônimo. Atravessado por tantos outros, Derrida (e seu texto) é marcado por essa surpreendente alteridade: surpreendente, pois não há como prevê-lo antecipadamente, senão quando ele se apresenta e assim se mostra como um efeito constitutivo das nossas possibilidades. Mas que possibilidades são essas que remetem, novamente, à justiça e à desconstrução?
Alguns críticos mal-humorados diriam que tudo do que até agora se disse habita uma região irreal e estéril, desconectada do mundo. Entretanto, como diz Caputo (“Por amor às coisas mesmas…” In: Duque-Estrada, às margens…, 2002:30) “isto é uma idéia distorcida da desconstrução, já que nela tudo tem lugar como uma preparação para o evento, para algo que realmente acontece, brota e irrompe sobre nós, algo que realmente nos move e acende nossa paixão”. Talvez aqui, quase ao final deste ensaio, cheguei ao ponto (embora ele sempre escape), isto é, a possibilidade da justiça, sua articulação com o Direito e o compromisso com a desconstrução é uma trama apaixonada que nos enreda em ações prazerosas e arriscadas com o outro, uma experiência que nos liberta do confinamento do conhecimento científico que, no caso do Direito, o reduz à ficção de um sistema auto-referente de normas jurídicas. Um sistema que, em última análise, tem a pretensão de tornar racionais os (nossos) conflitos e que na sua formulação mais radical (falo do positivismo de Kelsen) o faz partindo do pressuposto de que tais conflitos estão subsumidos na estrutura de uma norma, a qual nada escapa, pois comunicada através da linguagem precisa de um enunciado (científico).
Volto a Caputo quando ele diz, “a desconstrução da realidade e da presença, da presença real, não é algo ruim, mas sim uma obra de amor e sacrifício” (2002:30), capaz de oferecer a possibilidade de alguma outra coisa. Essa outra coisa, esse algo que tanto desejamos é, assim, indesconstrutível e em relação ao qual o mundo meramente real é incapaz de oferecer.
Uma das cenas finais de Shylock e Antonio em O mercador de Veneza mostra o juiz Portia agindo aparentemente com racionalidade e eqüidade ao reconhecer que regras estritas de Direito devem ser aplicadas com sensibilidade, de forma que a justiça não seja sacrificada, desnecessariamente, pelo Direito (pela letra da lei). Entretanto, o argumento final da sua decisão para condenar o judeu à sua conversão e à indenização ao mercador é exatamente o que ela a princípio refuta: a letra da lei. Contudo, o que me interessa aqui é o que escapa ao julgamento, isto é, algo que o mundo real é incapaz de oferecer, que é impossível e, só assim, gera alguma possiblidade. O leitor pensará agora que estou novamente me referindo à justiça ao que eu afirmaria, sim, mas também ao amor.
A impossiblidade que a justiça experimenta é, na linguagem da filosofia transcendental, sua própria condição de possibilidade. Assim, a justiça é essa experiência da qual não se pode experimentar, na medida em que ainda está por vir. Esse à-venir é a própria dimensão dos eventos, irredutível a qualquer fórmula ou cálculo. Talvez por isso, a justiça não possa ser reduzida a um conceito jurídico ou a uma idéia regulativa ou a um horizonte que acomoda nossas expectativas. Ao contrário, a justiça é a possibilidade de transformação; a possiblidade de refundir e refundar o próprio Direito.
Regresso aos versos de O mercador de Veneza, os quais marcam o ritmo do amor, numa poesia sofisticada que é quase música. Regresso a Belmont, à serenata dos rouxinóis e ao final impossível dos casais: Bassanio e Portia, Lorenzo e Jessica, Gratiano e Nerissa. Eis o insight shakespeariano que em (ou com Derrida) assume a dimensão da entrega ao impossível, na medida em que a justiça e, assim, o amor seja essa entrega ou rendição (ao impossível), porém sem a qual nada pode ser transformado.
Vera Karam de Chueiri
é professora da Faculdade de Direito da UFPR
(1) Comentário
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Excelente artigo.
Tão breve quanto profundo, pois, assim como o Direito, formula questões ainda em carência de respostas. De certo seja o fruto da necessária interdisciplinariedade entre Direito, Filosofia, Literatura, e tantas outras disciplinas co-irmãs.
A vagueza de critérios enobrece a discussão jurídica que deve saltar da dogmática. Não o faz por mal, mas para o bem da dialética fundamental e pela impossibilidade de se estabelecer um norte ao jus quotidiano tão exato.