A força da ação
O filósofo Vladimir Safatle, em sua casa, na capital paulista (Foto: Marcos Vilas Boas/Revista CULT)
O apartamento de Vladimir Safatle, na região central da capital paulistana, com um belo piano na sala e as estantes forradas de filosofia e literatura em diversos idiomas, pode dar a ideia de uma torre de marfim, onde viveria um esteta comedido, pouco afeito à ação. No entanto, esse (também) esteta atua em vários fronts, com uma disposição notável. Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), escreve colunas para a imprensa, publica livros regularmente, faz parte da Comissão Arns de Direitos Humanos, ajuda a coordenar o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e, sabe-se lá em que momento, toca e compõe ao piano – recentemente lançou o excelente disco Músicas de superfície, com a cantora Fabiana Lian.
Seu discurso, não à toa, assemelha-se aos contrastes densos e agudos da música contemporânea, da qual é adepto. A linha de raciocínio é complexa, porém clara; seu olhar reto aponta para a quebra das ilusões, a difícil melodia subliminar da realidade. Em seu último livro, Dar corpo ao impossível, retoma a dialética de Hegel pelo olhar de Adorno e aponta para as possibilidades de uma superação revolucionária.
A edição, agora, dos textos do guerrilheiro Carlos Marighella, “a figura mais emblemática da esquerda brasileira”, parece uma continuação lógica desse movimento. Mesmo escritos há mais de 50 anos, são muito atuais, como explica o filósofo, especialmente tendo em vista que parte da esquerda se perdeu em conchavos e outra numa espécie de melancolia, o que permitiu que o espaço fosse ocupado por esse “misto de capitão e palhaço”. Escritos, de Carlos Marighella, é um lançamento da coleção Explosante, da editora Ubu, sob coordenação de Safatle.
Fale um pouco da coleção Explosante e do conceito que a norteia, inspirado em Breton.
Explosante, de fato, vem desse trecho do Breton, “a beleza será convulsiva ou não será”, ou seja, mistura os opostos. Também é o nome de uma música do Pierre Boulez, das mais impressionantes do repertório contemporâneo, na qual ele recupera uma ideia do prelúdio do Debussy, da organicidade da flauta como elemento construtivo, só que dentro de um processo de turbilhão. Então é a emergência mesmo, de outra forma. São textos de filosofia, política, estética, clínica, que visavam, cada um à sua maneira, falar sobre essa emergência e tirar um pouco essa coisa melancólica de análise que a esquerda brasileira tem. Acho que essa era a principal ideia. Além desse do Marighella, tem um livro do Alain Badiou, Petrogrado, Xangai, com uma descrição realmente interessante da Revolução Cultural chinesa. E um livro com os escritos psiquiátricos do Frantz Fanon. São trabalhos muito ligados à crítica da estrutura hospitalar. Ele trabalhou com François Tosquelles no Hospital de Saint-Alban, que é uma espécie de laboratório de um outro tipo de clínica extremamente explosiva. Esses são os primeiros, virão outros.
Num momento em que a palavra comunista parece ter perdido grande parte de sua emergência, apropriada pela direita como um xingamento genérico, voltar a ler Marighella é dar um novo significado a essa palavra?
O comunismo expressa, na verdade, o desejo de constituição de uma sociedade livre da submissão ao trabalho, livre da propriedade como um modo fundamental de existência e de determinação das coisas e dos sujeitos, livre de um esvaziamento da força do poder popular. Durante 200 anos, todos os piores fantasmas das estruturas tradicionais de poder sempre se consolidaram numa luta contra o comunismo. É claro, você pode dizer que a gente tem agora uma experiência histórica ruim de Estados que se constituíram como comunistas. Os processos têm uma dinâmica de fracasso e reconstrução que lhes são próprios. Por outro lado, a esquerda se autocritica desde o primeiro dia em que a Revolução Russa começou. Ou seja, tem uma dinâmica contínua, tanto que os primeiros a serem trucidados eram os aliados. Agora, você já viu um liberal se autocriticar? Eu queria que alguém mostrasse um sujeito que fale “Putz, é verdade, eu acreditei nessa Thatcher, mas olha o que deu, o resultado econômico, o desemprego”.
O próprio Marighella fez uma autocrítica importante.
Um dos textos mais impressionantes nesse livro é aquele em que ele justifica por que rompe com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O texto é de 1966, mas a análise que ele faz é terrivelmente contemporânea. Ele diz: a gente tinha um partido como o PCB, enorme, que não fez outra coisa além da articulação e conciliação com setores progressistas da burguesia. Tirou fora de seu horizonte qualquer possibilidade efetiva de transformação radical e, depois de 1964, não conseguiu admitir que sua avaliação estava errada. É dramático ler isso hoje, porque esse é o único modelo que a esquerda brasileira conhece. Por isso Marighella é a figura mais consequente da esquerda brasileira. Ele tentou um caminho institucional, fez a política conciliatória do PCB, era um soldado fiel do Partido Comunista. Até o momento em que, como consequência, vê como única opção a luta armada, que se coloca claramente num horizonte de resistência. Ele sai do PCB e fala: não faz mais sentido montar partido com estrutura, organização, burocracia partidária, nada disso. Tanto que na Aliança Libertadora Nacional (ALN) ninguém precisava pedir autorização para fazer um ato revolucionário. Quando sequestraram o embaixador norte-americano, Marighella ficou sabendo pelo rádio. Cada grupo decidia, fazia suas ações e todo mundo se implicava. Isso era algo que nem foi mais tentado.
A posição majoritária da esquerda ainda repreende o radicalismo dele?
Eu acho que é um traço forte. Quando se fala sobre a luta armada no Brasil, é muito interessante porque se fala dos equívocos. Eu sempre achei isso da ordem de masoquismo que beira a identificação com o agressor. Como assim, um erro? Até para o pensamento liberal, o tiranicídio é um direito. Isso não foi Lênin que escreveu, nem Trótski; foi John Locke. Fato é que, independentemente da luta armada, lembrar do Marighella hoje coloca uma questão absolutamente importante: as experiências de democracia parlamentar liberal no Brasil vão sempre dar errado. Em outros países esses processos, pelos acúmulos históricos e tal, permitem fazer algumas coisas que aqui não dá para fazer. Isso a esquerda se recusa a pensar. E num momento como o atual não há como não pensar.
Você acha que a luta armada seria uma possibilidade hoje?
Olha, é fato que o Estado brasileiro sempre foi marcado por uma política de violência contra sua própria população, explícita e funcionalmente. Então há de se esperar que esses setores reajam da maneira como eles podem reagir. Faço parte da Comissão Arns de Direitos Humanos, e a gente recebe relatórios aterradores sobre as práticas policiais. Por exemplo, o caso emblemático do Morro do Fallet, em que 17 pessoas foram mortas a facadas pela polícia depois de serem torturadas por três horas em uma casa no meio de um bairro na periferia do Rio de Janeiro, com todo mundo gritando e a população toda ouvindo. Numa situação como essa, o Estado já está fora da legalidade.
O que acha da polêmica em torno do fato de um ator negro interpretar o Marighella no filme do Wagner Moura?
Acho que faz muito sentido colocar a força da revolta em um personagem negro, que está inserido em um dos setores mais massacrados pelo Estado brasileiro. Há comportamentos de racismo que muitos na sociedade brasileira nem imaginavam que existiam de forma tão arraigada. Então acho que fazer uma escolha como essa é obrigar a quebrar esse sistema de autoilusão.
E essa dicotomia entre a luta de classes e as questões identitárias? Entre a fala partidária e o lugar de fala?
Eu acho que essa dificuldade é pensada e produzida, é um dos eixos fundamentais de sustentação do poder. Fazer com que até mesmo as nossas revoltas sejam conjugadas na gramática daqueles que oprimem, uma gramática da posse, da propriedade, de “isso é meu e ninguém fala sobre o que é meu”. Quando as lutas identitárias são vistas assim, perdem o que podem produzir. Porque elas são as verdadeiras lutas universalistas. São lutas que dizem: a universalidade ainda não está realizada.
Isso faz pensar na violência simbólica que você menciona no seu artigo em O que resta da ditadura. Violência que continua até hoje no apagamento da universidade, dos saberes do povo, da visibilidade LGBT, da cultura negra e tudo o mais.
Essa invisibilidade fundou o Brasil, é um modo de governo no país. É claro que nunca saiu de cena, mas agora ela se explicita de maneira brutal. A questão fundamental é quem comanda a visibilidade. A questão LGBT é um pouco essa. No discurso do conservador, o problema não é que você existe, é que você é visível. Você me toca, me afeta, seu corpo me afeta. Então, se você me afeta, me obriga a me transformar, e é exatamente o que eu não quero.
Em Dar corpo ao impossível, você afirma que o esforço de reconstrução da dialética talvez só pudesse surgir num país como o Brasil. Por quê?
A história da dialética no Brasil é longa e está um pouco ligada a essa consciência da conciliação de opostos, muito própria da nossa sociedade: o desenvolvimento em atraso, ordem e desordem, arcaico e moderno, escravatura e liberalismo… Só que era sempre uma espécie de dialética bem laudatória, muito mal pensada. O primeiro momento em que ela foi de fato bem pensada no Brasil foi quando assumiu uma força negativa, no sentido de mostrar sua capacidade de desintegração desses acordos extorquidos entre contrários. Eu quis continuar um pouco essa discussão. Ainda mais num momento como o atual, porque faz muito sentido retomar a dialética exatamente para conseguir livrar o país dessa ilusão de força de contradição sem conflito. Na Alemanha do século 19, quando a dialética é recuperada, coloca em cena uma energia negativa que vai até a ideia de revolução. E no Brasil isso não aconteceu. Eu me pergunto se talvez o momento atual não fosse de realmente permitir que esse movimento ocorresse até o fim. Porque a gente vive uma revolução – de sinal trocado, uma contrarrevolução preventiva. A única saída é fazer o mesmo movimento em direção oposta.
Como definiria o governo atual?
É um modelo de neoliberalismo autoritário, que tem traços fascistas no sentido clássico do termo. A gente vive um momento de recrudescência de tendências fascistas em uma série de governos, e o nosso é exemplar. É exemplar na estrutura de culto da violência, na sua estrutura de nacionalismo paranoico, na sua transferência da soberania popular em direção à figura que paira acima. Não é um governo de gestão, é um governo de saque.
E os bolsonaristas?
É a população que fez uma escolha protofascista clara e vai com ela até o fim. Qualquer dado que você coloque, qualquer informação, não vai fazer a menor diferença. Eles têm uma visão muito clara de um tipo de forma de vida, de experiência, que deve ser realizado custe o que custar. Por isso eu falo que é uma lógica revolucionária. O Bolsonaro conseguiu estabelecer um sistema de identificação profundo. Suas fraquezas são elementos de identificação, não são coisas que quebram esse processo de adesão. É uma das ideias interessantes que o Adorno desenvolve a partir do Freud: são identificações narcísicas. “Ele é alguém como nós.” Significa que é alguém que tem as mesmas fraquezas, as mesmas incapacidades, as mesmas reações impotentes. Isso tudo é loucura, mas tem método. Porque a inabilidade é um elemento fundamental do apoio. Ele mostra: “Olha, tá vendo? Alguém como você pode ser o governo”.
Nesse sentido, levantar a ameaça da esquerda e da volta do Lula é um discurso conveniente?
A ameaça que ele levanta é real. Todo esse circo anticomunista não é bem um circo. Só que a luta que eles estão fazendo não é no presente, é uma luta preventiva no futuro. Eles estão lutando contra os comunistas por vir. Porque percebem que essa é uma possibilidade do processo, a partir do momento em que a democracia liberal entra em colapso no mundo. Quando esse eixo entra em colapso, as alternativas que pareciam ter sido deixadas para trás na história voltam à cena. Eles estão já brigando contra essa possibilidade de volta. Sentiram isso desde 2013.
Como se sente ao ver a filosofia e as demais ciências humanas serem tão atacadas?
Isso demonstra, entre outras coisas, quão absurda era a ideia de que a gente era irrelevante. Se fôssemos irrelevantes, por que tanta briga conosco? Outra coisa: se você tem um país que se formou a partir de ideias, esse país é o Brasil. Sua bandeira é uma ideia positivista de desenvolvimento que anima setores militares. Isso é uma filosofia. O modernismo foi um projeto de Estado. Começa na construção do Ministério da Educação Nacional no Rio de Janeiro e vai até Brasília. Ou seja, o Brasil é uma ideia estética e filosófica. Um dos sujeitos mais influentes desse desgoverno é um cara que se vê numa batalha da filosofia brasileira dos últimos 60, 70 anos. Durante muito tempo, na universidade brasileira, o que se tinha era um pensamento desfibrado, mistura de tomismo com delírio daqui e dali, mas já há algumas gerações produzindo um pensamento forte, crítico, qualificado. E é contra isso que esse pessoal se coloca. Então é também uma briga filosófica o que está em curso. Seria interessante a gente perceber como isso é o nosso país. O Brasil é essas duas coisas: esse desejo delirante, em todos os sentidos, de querer tomar para si a força de certas ideias para se construir, e, é claro, essa incrível intermitência das forças da revolta. Veja os últimos anos, o país não saiu da rua. De 2013 para cá, só mobilizações por todos os lados. Isso é o Brasil que eles tentam apagar custe o que custar. Só que eles já tentaram várias vezes e não conseguiram. Vão tentar mais uma vez e não vão conseguir.
Um sujeito atual
Carlos Marighella (1911-1969) parece ter vivido várias vidas. Ou ainda: parece que Marighella não foi apenas um homem. Espécie de “super-herói mulato”, na expressão de Mano Brown, sua biografia tem tantas voltas e revoltas que, para o público de hoje, fica bastante difícil compor um retrato coeso desse militante que enfrentou as mais diversas formas de repressão desde os anos 1930, sob Vargas, até seu assassinato pela ditadura militar.
É fundamental ter isso em mente para dimensionar a importância da reunião de seus escritos, que correspondem, quase passo a passo, às diversas formas de luta experimentadas por Marighella. Desde os caminhos institucionais a que se dedicou na maior parte de sua vida (o Partido, o Parlamento, a imprensa) até a guerrilha urbana, que projetou sua imagem de “inimigo nº 1” do regime militar, embora corresponda apenas aos últimos quatro anos de sua vida.
Não por acaso, o filme de Wagner Moura concentra-se nesse período, o que, para as novas gerações, pode deixar a imagem do guerrilheiro ainda mais dissociada da figura política que, antes da radicalização, tentou de quase tudo em termos institucionais para defender os interesses nacionais-populares.
Ao reunir textos das diversas fases de sua vida, Escritos faz um importante contraponto, quase um antídoto, à imagem negativa de Marighella que foi difundida pela própria ditadura, justificando a barbárie cometida contra ele e todos os demais militantes da democracia. Esse conjunto de textos revela de que forma sua radicalização política e consciência teórica foram sendo construídas como resposta à violência crescente de governos que oprimiam seus adversários políticos para colocar em prática projetos contrários aos interesses do povo. Atualíssimo, não?
Escritos
Ubu Editora
Carlos Marighella
Lançamento previsto para novembro