A Filosofia Analítica da Religião

A Filosofia Analítica da Religião

Cobrindo o terreno da “teologia filosófica”, a filosofia da religião estabelece-se a partir de duas questões: “O que é ter conceito de Deus?” e “É possível ter conhecimento de Deus?”
Roberto Hofmeister Pich

Seguindo à risca a “análise” de conceitos e discursos, a hoje denominada “filosofia analítica da religião” qua “filosofia da religião” é, por um lado, a reflexão filosófica sobre a religião. Esse procedimento é tão antigo quanto a própria filosofia. Por outro lado, a filosofia analítica da religião em certo sentido cobre o terreno da “teologia filosófica”. Essa, que, segundo o conteúdo, já bem caracteriza a escolástica dos séculos 12-14, busca a análise e a fundamentação racional de convicções teológicas, sobretudo do cristianismo, sem que a “religião” seja tratada como grandeza independente: dada a configuração doutrinal da religião cristã, busca-se de uma parte entender pela argumentação racional os conteúdos e a natureza da fé; de outra, não se vê esse procedimento como eficaz só dentro de um dado comprometimento religioso. Desde a filosofia moderna até a contemporânea, no Ocidente o “teísmo” espelha essa conjugação de abordagens – sendo, pois, a filosofia analítica da religião, hoje, uma forma de teísmo. Teísmo e filosofia analítica da religião não se focam, em geral, no estudo da religião como fenômeno complexo, analisável a partir de diversas perspectivas. Antes, buscam estabelecer crenças sobre “Deus” que, de um ponto-de-vista racional, perpassam religiões específicas e, em boa medida, são comuns aos monoteísmos históricos.

Duas questões

Dito de maneira simples, o programa da filosofia analítica da religião estabelece-se a partir de duas questões: O que é Deus? Ou ainda: O que é ter conceito(s) de Deus? Em seguida, pergunta-se: É possível ter conhecimento de Deus, no modo como monoteísmos discursam sobre ele? Essa questão se desdobra, de um lado, na tematização do acesso racional à existência de Deus e à diferença entre conhecimento estrito e fé, e, de outro, no inquérito sobre como “Deus” deve ser pensado de forma única e inconfundível com as criaturas, segundo os seus “atributos”. Numa primeira fase (meados do século 20), na atmosfera do atomismo lógico de B. Russell e do empirismo lógico de R. Carnap, a filosofia analítica da religião centrou-se na análise da linguagem religiosa. Isso não significou apenas investigar se a linguagem humana pode ser meio para pensar Deus (em que se inseririam no debate a fundamentação, cunhada pelos medievais, de conceitos unívocos ou analógicos, de conceitos transcendentais além de categoriais), mas também se, no cerne do “problema do verificacionismo”, as proposições teológicas, não sendo nem analíticas nem verificáveis, têm em absoluto sentido.

Com o posterior abandono da semântica verificacionista, e na busca de opções às interpretações não-cognitivas do discurso religioso (incluindo a do Wittgenstein tardio, sob o lema “forma de vida”), revela importância perene para a abordagem realista do teísmo a consideração do sentido e do alcance de provas da existência de Deus. Afinal, é afirmação inconteste da religião revelada – judaísmo, cristianismo e islamismo – que Deus existe. Da proposição “Deus existe” depende a racionalidade dos demais conteúdos da religião; supondo-se que ela seja verdadeira, e o que é verdadeiro pode ser conhecido, “argumentos teísticos” tentam concluí-la dedutiva ou indutivamente.

A filosofia da religião combina, aqui, um tema epistêmico, sobre a justificação racional de crenças religiosas, com um metafísico, sobre a verdade das crenças teísticas. Nesse passo, ela se insere na clássica tarefa da metafísica, estipulada com clareza por Aristóteles, a saber, de que cabe à filosofia (primeira) o real conhecimento do que a primeira causa da realidade é e de que ela existe. Não vale, aqui, em princípio, o veredito kantiano – dado o traspassar acrítico dos limites da razão teórica – e neokantiano, peremptório, de que as provas teísticas estão mortas e só conseguem trazer Deus à linguagem inteligível (H. Küng, W. Pannenberg). Elas pretendem, sim, em tempos pós-metafísicos, demonstrar ou, em diálogo com as ciências naturais, ao menos defender de modo contundente a racionalidade da crença na existência de Deus e de outras crenças do teísmo. Não por acaso, a seção dedicada a argumentos teísticos in: Ph. L. Quinn and Ch. Taliaferro (eds.), A companion to Philosophy of Religion, 2005, intitula-se “The justification of theistic belief” (“A justificação da crença teística”), em que crença teística é a crença na existência de um ente primeiro único, atemporal, imaterial, de suma bondade, onipotente e onisciente.

Argumentos teísticos

A tipologia dos mais importantes argumentos teísticos, em terminologia remissiva a Kant, é, no conteúdo, de novo comum à Idade Média. Assim, os argumentos ditos “ontológicos”, desde a acepção original por Anselmo de Cantuária (1033-1109), na obra Proslogion, partem não de fatos empíricos, mas, numa reductio ad absurdum, do sentido de, sem contradição, pensar Deus sob a noção “aquilo acima do qual nada maior pode ser pensado” ou “ente perfeito”, ou seja, de que conceber Deus implica pensá-lo e conhecê-lo como existente. Mesmo com a sua rejeição por Kant, na Crítica da razão pura (1781), dada a equivocada suposição de que a “existência” é uma “propriedade” de um ente, desde Leibniz a ratio Anselmi foi abordada em termos da possibilidade intrínseca de um ente perfeito – o que em parte se enquadra na chamada “segunda versão” do argumento, desdobrada por Ch. Hartshorne e N. Malcolm. Nessa, estabelecer-se-ia que pensar Deus sem contradição significa pensá-lo em termos de “existência necessária”, ponto teórico que ficaria imune às críticas de Kant. O filósofo A. Plantinga, em God an other minds (1967), mostrou, com recursos da lógica modal, que essa versão do argumento segue (ainda) imune à reprovação teórica geral.

Argumentos “cosmológicos”, tanto os mais recorrentes quanto retroativos ao primeiro argumento teístico detalhado da história da filosofia, a saber, o de Aristóteles em Metafísica XII, ganhando lugar cativo no Ocidente cristão ao ser reescrito em três das “cinco vias” de Tomás de Aquino, levam ao conhecimento da existência de Deus a partir de dados evidentes – ou proposições manifestamente verdadeiras e por todos aceitas – sobre o mundo. Numa de suas variantes, por autores coetâneos como W. Rowe (1975), essa forma de demonstração livrou-se de suposições físicas antiquadas, sendo assim resumido por W. P. Alston (1998):

(i) O universo físico é temporalmente finito ou infinito;

(ii) Se finito, o começo da existência do universo deve ter sido devido a alguma causa;

(iii) Se infinito, deve haver alguma causa cuja atividade é responsável pela existência deste universo, e não de outro ou nenhum (em que (ii) e (iii) acusam o “princípio de razão suficiente”);

(iv) Mesmo se a causa da existência do universo deve a sua existência a alguma outra, um regresso infinito de tais causas (fora do universo espácio-temporal) é impossível;

(v) Logo, o universo como um todo deve a sua existência a uma causa primeira incausada, que, de sua natureza, existe necessariamente.

Argumentos “teleológicos” – renomeados “argumentos do desígnio” (design arguments) – partem de aspectos relevantes de “propósito” inscritos no mundo e buscam convencer de que esse tem de ter sido designado por um ente inteligente e pessoal. Sendo estruturas de ordem no reino orgânico alvo de críticas decisivas desde os Diálogos sobre a religião natural (1779) de D. Hume, suspeitando que seres vivos sejam em geral “artefatos” planejados, e desautorizadas pela explanação das adaptações e formas orgânicas dada pela teoria da evolução, o argumento teleológico teve de ser refeito. Iniciando com o universo como um todo e questionando por que tem, a partir da teorização sobre a sua origem e o seu desenvolvimento, a estrutura ordenada de constantes físicas básicas que permite que haja nele vida, considerando que segundo leis superiores da economia interna do universo só fenômenos subordinados são explanados, nota-se que uma explanação científica não pode ser oferecida às inquirições de fundo. Nesses termos, um argumento poderoso e formalmente irretocável, exibindo os padrões de inferências científicas (em raciocínios indutivos, segundo teorias de confirmação e probabilidade), foi desenvolvido por R. Swinburne (2004) para concluir a “proposição teística”. Reforço à sua argumentação é dado por reflexões recentes sobre a probabilidade da “sintonia fina” (fine tuning) das leis fundamentais e condições iniciais da physis, requerida para que um universo capaz de vida – como o nosso – ganhe existência.

Crença como “forma de conhecimento”

De fato, nesses esboços, mal foi tocado o novo e fértil terreno da “epistemologia da crença religiosa”, sobretudo reavivado, em diálogo com teorias filosóficas de justificação de crenças, pelos adeptos da “epistemologia reformada” – em que, para autores como A. Plantinga (1983, 1998, 2005) e N. Wolterstorff (1983), o fundacionismo evidencialista é rejeitável e a crença teística pode ser vista como “básica” e em si uma “forma de conhecimento”. De toda maneira, desde Epicuro passando por Hume, é um grande desafio ao teísmo sustentar o conteúdo de algumas das crenças mencionadas, se confrontadas com o “problema do mal”. Tomando-se o “mal” como dor, sofrimento e maldade humana (mal natural e mal moral), e supondo-se a onipotência e a onisciência divina ao lado de sua bondade perfeita, filósofos como J. L. Mackie puderam julgar o teísmo inconsistente e irracional:

(i)         Há o mal fático no mundo;

(ii)        Existe um Deus onipotente, onisciente e totalmente bondoso;

(iii)       Todo mal fático é conhecido por um ente onisciente;

(iv)       Um ente onipotente pode tudo fazer que não vai de encontro às leis da lógica;

(v)        Um ente totalmente bondoso, enquanto estivesse em seu poder, eliminaria todo mal a si conhecido. Aceitar quatro dessas cinco premissas parece sempre forçar o abondono da restante.

O crítico da religião eliminaria (ii), ao aceitar as demais. Muitos teístas trabalham na eliminação de (v) – explanando os seus termos, em que operam tanto um argumento moral em favor do livre-arbítrio (retomado por autores como A. Plantinga e R. M. Adams) quanto um metafísico (e epistêmico, segundo condição suficiente) em favor da compreensão possível do “melhor dos mundos possíveis” com o mal no universo (retomado por autores como N. Pike e G. N. Schlesinger). Compatibilizando (i) e (ii), ter-se-ia, pois, uma “teodicéia explanatória”, em que “teodicéia” é uma tentativa de, pondo com consistência atributos divinos como os aludidos, “justifica-se” Deus apesar do mal existente. Diga-se, porém, que o problema do mal é por certo o mais agudo aguilhão na carne do teísmo: teóricos da teodicéia admitem que o mal radical e sem-sentido é forte evidência contra o teísmo – tornando a sua causa, salvo melhor juízo, de início “improvável” (Ch. Jäger 1998).

Agenda da filosofia da religião

Pode-se sistematizar a partir daqui o restante da agenda de uma filosofia analítica da religião. Tomados em si, como entender os atributos divinos – que, ademais, no cristianismo, são pertencentes a um agente pessoal? A sua revisão leva aos “paradoxos da onipotência”, à discussão de uma presciência divina compatível com a liberdade humana, à noção de atemporalidade e ao tema do conhecimento de sucedimentos futuros contingentes – o que, teoricamente, exige reavaliação formal dos conceitos de tempo e espaço. Sendo Deus, a propósito, -atuante no mundo, em que consiste a sua “intervenção”? “Providência” divina não é um conceito óbvio. Uma intervenção na, mas estranha ao que se sabe poder ser a ordem causal das regularidades da natureza, isto é, um “milagre”, impõe novamente um problema epistêmico (o de crer em milagres numa era de sucesso das ciências) quanto um conceitual (o de conceituar “milagre” sem equipará-lo à “revelação sobrenatural”). Mencione-se, ainda, que determinadas “doutrinas”, comuns ou específicas a religiões monoteístas, como a imortalidade da alma e a ressurreição, a vida eterna, “céu” e “inferno”, o mérito humano e as destinações da parte de Deus, a encarnação, a paixão, a ressurreição de Cristo e a Trindade (no cristianismo), e ainda o sentido de um livre ordenamento divino de relação com o mundo, estipulando modelos de vida religiosa, contados a partir de revelação história, de Escrituras inspiradas, de autoridades e da tradição, tudo isso tem exigido dos filósofos da religião exercícios de interpretação e sustentação racional de conteúdos. O eixo teórico, aqui, como ilustra a obra do filósofo R. Swinburne, reside não na prova de itens doutrinais, mas na indicação do quanto são em si consistentes e coerentes com a idéia do Deus pessoal defendida pelo teísmo. Religioso ou não, o que o filósofo da religião acaba fazendo é, com efeito, filosofia.

Roberto Pich é professor de Filosofia da PUC-RS

(1) Comentário

  1. Eu sou Prof. de Filosofia. Solicito que seja enviado, sob forma de doação/cortesia, exemplares impressos desta revista. Pode ser números atrasados. Enviar para: Prof. Helvecio Pires de Araujo Rua Borges machado, 293 Bairro Pindorama 64208-060 Parnaíba PI

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