A diferença sem voz

A diferença sem voz

Uma experiência intelectual para além do estruturalismo

Vladimir Safatle

Em filosofia, sempre se é o irracionalista de alguém.” Essa afirmação de Bento Prado Júnior talvez seja perfeita para introduzir o pensamento de um filósofo que, mais do que qualquer outro nas últimas décadas, foi sistematicamente acusado de irracionalista e relativista. Sua maneira de criticar, ou melhor, de “desconstruir” conceitos chaves da metafísica ocidental, como: ser, sujeito, presença, identidade e verdade unívoca parecia um convite a um estranho mundo no qual não seria mais possível distinguir fato e interpretação, discursos que visam a descrever estados do mundo e discursos que visam a expressar possibilidades de ressignificação estética. Por isso, nada mais simples que jogá-lo na vala comum do “pós-modernismo”. Vala na qual estariam enterrados aqueles que, em nome da hipóstase da Diferença, do Desejo, da Alteridade teriam assumido o projeto impossível de uma crítica totalizante da razão. Dessa forma, sua problematização em relação a alguns operadores filosóficos maiores, como o universalismo e a interversão da razão em processo de dominação deveria ser sumariamente desqualificada.

No entanto, essa maneira de compreender a posição de Jacques Derrida no interior do debate intelectual contemporâneo sofre de limitações visíveis. Pois, se é indiscutível que seu pensamento foi absorvido como um dos eixos da ideologia pós-moderna exatamente naquilo que ela tem de mais ideológico, não é menos verdade que ele se insere em um longo debate filosófico a respeito do destino de algumas categorias centrais da metafísica ocidental.

Há várias maneiras de traçar algumas vigas mestras do pensamento de Derrida, uma delas é voltando-se para o contexto intelectual no qual essa experiência intelectual nasceu, ou seja, o estruturalismo francês. Pois, de uma certa forma, podemos dizer que algumas elaborações centrais de Derrida são desdobramentos dessa afirmação canônica de Lévi-Strauss que, a seu modo, já se encontra no ponto de viragem do estruturalismo: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E, como sugerimos, talvez convenha ir mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si.” E se os mitos se pensam entre si, à revelia da intencionalidade dos sujeitos, então os discursos sobre os mitos também seriam mitos: “o mito da mitologia”, dirá Lévi-Strauss. Maneira de afirmar que a intertextualidade, figurada aqui através da dinâmica dos mitos que se reenviam como em um jogo contínuo de espelhos, animaria uma interpretação que não poderia mais esperar fundamentação fora do texto, interpretação que seria mais um desdobramento interno ao próprio mito.

Lévi-Strauss trouxera a idéia de estrutura como conjunto de diferenças que se organizariam tal qual uma rede que permitiria a constituição de séries. Ao menos era assim que Saussure compreendia a linguagem, ou seja, como um sistema fechado de signos que sustentariam entre si relações de diferença, sem nenhum vínculo direto com uma realidade extralingüística (seja ela a história, as determinações econômicas, a consciência etc.).

No entanto, Derrida irá insistir que mesmo essa noção de um sistema de diferenças estruturadas ainda não daria conta daquilo que seria a verdadeira tarefa da filosofia: pensar a diferença pura (que Derrida irá chamar de différance: palavra-valise que articula “diferença” e “diferir”). Pois a estrutura organizaria de maneira transcendental as possibilidades de produção do sentido. Essas possibilidades estariam imobilizadas de uma vez por todas em um jogo invariante e centrado. Assim, seria possível esgotar de uma vez por todas as possibilidades da interpretação ao desvelar a estrutura. Pensar a diferença pura exigiria então nos livrarmos dessa “metafísica da presença” (ou metafísica do sentido, o que nesse contexto dá no mesmo) que estaria embutida na noção de desvelamento da estrutura como esgotamento da interpretação.

O que a presença esconde

De qualquer forma, lembremos que a batalha contra o estruturalismo só poderia, no caso de Derrida, inscrever-se sob o espectro da crítica à metafísica da presença embutida na própria noção de signo. Em A voz e o fenômeno, um de seus melhores textos, Derrida mostrava como o projeto fenomenológico husserliano estava assentado em uma noção de ser como presença que se desvela no interior da linguagem. Para tanto, a noção de signo deve estar vinculada necessariamente à presença. Proposição paradoxal na medida em que sabemos que um signo não apresenta nada, apenas re-presenta uma referência que se guarda na distância. Mas para além da relação do signo à referência extralingüística (indicação), há a relação do signo à expressão. Não se trata da expressão de estados intencionais, mas, principalmente, uma espécie de expressão da realidade transcendental da consciência que se dá como posição da pura presença da voz (e não seria por outra razão que mesmo Saussure teria pensado o significante enquanto “imagem acústica”).

Essa voz pura que marca a lingüisticidade da consciência como presença é o elemento fundamental do signo, isso ao menos segundo Derrida, que insiste no pertencimento do signo à palavra (e não à escrita). Assim, a importância metafísica do conceito de signo não está na sua relação de comunicação indicativa de referências extralin­güísticas, mas na sua capacidade de assegurar a autopresença da consciência no momento da fala. Como lembrará claramente Derrida: “Os signos fônicos (as ‘imagens acústicas’ de Saussure, a voz fenomenológica) são “extensões” do sujeito que as profere na proximidade absoluta de sua presença (…) Minhas palavras são ‘vivas’ porque elas parecem não me abandonar; não cair fora de mim, fora de meu sopro, em um distanciamento visível; não deixar de me pertencer, de estar à minha disposição, sem assessórios.” 

Assim, a transcendência da voz que não se perde nos objetos que ela nomeia, mas que guarda o sujeito como presença a si, isso no momento mesmo em que fala de outra coisa, seria o fundamento metafísico da identidade a si. Uma aproximação entre os dois sentidos de logos (palavra e razão) parece permitir a transformação dessa temática em móbile da crítica à razão centrada na consciência. “Nenhuma consciência é possível sem a voz. A voz é o ser perto de si na forma da universalidade, como consciência. A voz é a consciência.” Dessa forma, ao fazer o apelo a uma crítica do signo, Derrida lembrava como o estruturalismo estava ainda implicado em um projeto metafísico encarnado em um certo fonologocentrismo.

No entanto, isso não impede que seja através da apropriação dessa noção, própria a Lévi-Strauss, da interpretação do mito como desdobramento do mito, como escritura infinita, que Derrida encontre um impulso importante para tal crítica. É ela que levará Derrida a afirmar existirem duas noções de interpretação: uma procura decifrar uma origem que escapa à ordem da estrutura e que funda a estrutura; a outra não se volta mais à origem, mas tenta afirmar a disseminação de textos que se reenviam e que, com isso, livra-se do peso metafísico da presença com todos os seus filosofemas maiores (sujeito, essência, fundamento etc.). Em última análise tal projeto de interpretação estará presente no próprio estilo da escrita de Derrida, escrita que tende a reduzir a multiplicidade dos campos do saber a textos que podem ser tratados como se eles fizessem parte de um livro infinito.

É certo que tal perspectiva deixou em aberto muitos problemas. Problemas confrontados pelo próprio Derrida no decorrer de sua trajetória intelectual, mas que talvez não possam ser resolvidos no interior do seu programa filosófico. Por exemplo: a temática da “metafísica da presença” seria de fato uma chave profícua para compreender a história da filosofia? A crítica integral ao fundamento pode nos assegurar algo mais do que a desarticulação das expectativas de validade e de justificação? Falar em uma diferença pura não seria retornar, de maneira sub-reptícia, a um plano de imanência – tal como Peter Dews teria visto bem ao lembrar que uma filosofia da diferença pura tem proximidades claras com uma filosofia do absoluto? Mas é essa a característica maior de uma experiência intelectual decisiva: deixar desafios que devem ser respondidos pela posteridade.

Vladimir Safatle
é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

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