A cloroquina como ideologia política

A cloroquina como ideologia política
(Foto: Michał Parzuchowski)

 

Esta semana os bolsonaristas mudaram o foco mais de uma vez. Depois de Bolsonaro avisar, do seu jeito, que demitiria Mandetta – e até marcar hora e lugar para consumar o ato -, teve de recuar e engolir um sapo indigesto. O frágil ego do Mito não havia suportado a ideia que, de fato, Luiz Henrique Mandetta tivesse sido empossado pela opinião pública durante a pandemia como presidente efetivo do Brasil, cabendo aos Bolsonaros cuidar tão-somente, como é do feitio deles, da enorme lista dos assuntos que neste país se resolvem com fanfarronices, bravatas, perdigotos e retórica. Assim, já no sábado havia ficado claro que presidente oficial, de fato e de coração, havia demitido o ministro. Como, porém, se verificou na segunda à noite, não teve, contudo, peito, prestígio ou autoridade moral para efetivar a demissão. 

Notem, por favor, que o ministro não ficou ministro-presidente por ser propriamente grande diante da crise. É que Bolsonaro é minúsculo e a gente acaba usando o presidente oficial como régua para medir qualquer outra autoridade no país neste momento. Como resultado disto, parecemos aquela ilha da história de Gulliver, em que mesmo os nossos anões, como Doria, Witzel e Mandetta, parecem gigantes por contraste com o presidente da República.

Não tendo conseguido destituir o ministro, cuja sombra enturva e apaga os bolsonaros e olavistas que nos governam, o assim chamado “Gabinete do Ódio”, o centro de comunicação estratégica que controla a propaganda bolsonarista em mídias digitais, resolveu apostar todas as suas fichas – pasmem os senhores! – em drogas. Medicamentos para sermos mais exatos. 

O Gabinete, como estamos cansados de saber, decide as pautas do dia para serem distribuídas pelas alcateias bolsonaristas, nas plataformas de redes sociais digitais como Twitter, Facebook e Instagram, pelos sites e blogs de opinião, periodismo chapa branca e fake news na web que integram a ecologia midiática da extrema-direita, pelos seus canais no YouTube e, enfim, pelos sistemas de distribuição dos grupos do WhatsApp. Por “pautas do dia” entendemos não apenas os assuntos a serem tratados, mas que enquadramentos dar aos fatos, que interpretações – mesmo que absurdas – defender, que pessoas odiar, atacar e linchar, que tags levantar nas plataformas para simular climas de opinião popular, ainda que se servindo de robôs para tanto, que fake news e/ou teorias da conspiração distribuir. Além disso, o Gabinete cuida de criar e colocar em movimento as narrativas e as figuras do imaginário que servem para mobilizar, diuturnamente, as matilhas digitais. 

Pois bem, segundo a comunicação política do bolsonarismo em circulação esta semana, estamos tendo um novo campeonato eleitoral. Se a cloroquina e a hidroxicloroquina ganharem, Bolsonaro é reeleito; se o vírus (que é de esquerda) ganhar, volta o PT. Se você ficar em casa, Lula volta; se você ignorar a pandemia e for trabalhar, o Mito se confirma no poder. É tudo, então, questão de escolher o lado vencedor e ir desmascarando os se metem no jogo para tentar ajudar o outro lado (a mídia, a OMS, os governadores, a China, o ministro Mandetta). No universo narrativo delirante e paranoico montado pelos influenciadores digitais do bolsonarismo, a pandemia é simplesmente uma ideologia: o “vírus chinês”, como chamam a Covid-19, é uma construção ideológica destinada a garantir a hegemonia global dos comunistas; as medidas de isolamento são uma maracutaia ideológica da OMS para demolir a extrema-direita no mundo; o número de mortos é uma invenção ideológica da mídia para derrubar o governo; quem diz que a hidroxicloroquina e a cloroquina não podem ser tomadas com pinga, limão e mel, para curar tudo, é porque quer que a economia quebre para acelerar a volta do PT. E foi assim essa curiosa semana. Todo o bolsonarismo em delírio persecutório se sentindo a última linha de defesa da hidroxicloroquina contra os ataques mentirosos e mal-intencionados por parte dos comunistas, da OMS, da “extrema mídia”, dos “isentões”, dos governadores e prefeitos esquerdistas do Nordeste, dos governadores e prefeitos traidores do Sudeste.

Ora, é exatamente assim que são geradas as grandes mitologias do bolsonarismo, como a Saga da Mamadeira de Piroca que usaram para ganhar as eleições. Retoricamente, a propaganda bolsonarista nunca consiste simplesmente em sustentar uma posição. Há uma lista de coisas que precisam acompanhar as suas posições, que resumo em cinco:

1º) É preciso teorizar um complô, envolvendo inimigos muito poderosos e inteiramente mancomunados em um plano secreto e maligno. “Somos um bastião de virtuosos cloroquinófilos cercados de maléficos cloroquinófobos por todos os lados”.

2º) Há que se construir um inimigo. No mundo real, não há qualquer pessoa contra a hidroxicloroquina, apenas uma demanda de prudência científica, contra a precipitação e a favor de mais testes. “Tomara que dê certo, mas ainda não é prudente dizer à população para correr à cloroquina”. No mundo da narrativa, “os cloroquinófobos (ou os “negacionistas da cloroquina” como disse Rodrigo Constantino) estão escondendo as pessoas que ficaram curadas da Covid-19 tomando a droga porque querem que morram muitos para destruir o governo Bolsonaro”

3º) É necessário que os envolvidos na tramoia sejam principalmente os “inimigos preferidos” da ideologia bolsonarista: a esquerda, vez que são de direita; os liberais/progressistas, porque são conservadores; a OMS, a ONU etc., posto que são antiglobalistas; o jornalismo de referência, uma vez que alérgicos a dados e fatos; os cientistas e professores, dado que o anti-intelectualismo aí predomina; a elite, porque são populistas; os ex-bolsonaristas, porque traidores invejosos; os oposicionistas, posto que querem o fracasso do Mito.

4º) É imperativo tratar a hipótese que sustentam, por mais disparatada que seja, como se fosse a Pedra Filosofal, o Último Segredo de Fátima, o Oráculo de Apolo, o Santo Graal, que permitirá aos conhecedores do segredo vencer os inimigos. “Se tivessem usado a hidroxicloroquina não teríamos chegado a este ponto, precisamos de um ministro que defenda a hidroxicloroquina”.

5º) É imprescindível transformar a defesa da tese em uma questão identitária, existencial e urgente. “Se não defendermos a hidroxicloroquina e a cloroquina, o mundo perecerá”.

Cloroquina Acima de Tudo, Teorias da Conspiração Acima de Todos. E, pronto, com duas cartelas de cloroquina e de hidroxicloroquina no bolso e o Mito como amuleto, segunda-feira, no máximo, o Brasil volta ao trabalho. De corpo fechado.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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