O vírus autocrático do Bolsonarismo

O vírus autocrático do Bolsonarismo
O presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

 

Aproxima-se o 15 de março de 2020, data que o movimento bolsonarista escolheu para marcar, por meio de um protesto contra o Congresso Nacional, o seu desprezo generalizado por todas as instituições da política e do Estado que possam representar freios e contrapesos à única autoridade considerada legítima e ao único Poder da República tido como ainda íntegro e autêntico, que é o Líder Supremo do Bolsonarismo. Que, não por acaso, é também o chefe do Estado e o chefe do governo neste momento no Brasil. Qualquer analogia com a marcha para a autocracia de ditaduras e semiditaduras de países como a Venezuela ou o Irã, para ficarmos em exemplos que a nossa memória facilmente alcança, não será uma coincidência. 

Rodrigo Maia chamou de “tensão institucional” a circunstância de um presidente da República convocar uma manifestação contra o uso das prerrogativas institucionais do Congresso por parte de deputados e senadores. Um eufemismo. Não se trata, na verdade, da natural tensão entre governo e congresso, tão comum em regimes presidencialistas, em que, por definição, o poder político é repartido entre Executivo e Legislativo. Congressos e presidentes medem força o tempo todo, principalmente quando os eleitores decidem não dar maioria parlamentar aos presidentes escolhidos. É do jogo normal da política, e acontece em toda parte do mundo. E mesmo quando presidentes governam com maioria nas câmaras parlamentares, a parte do Legislativo que forma a minoria, ou a oposição, enfrenta legitimamente o presidente e a sua maioria congressual. É de se esperar, portanto, a colisão de interesses, de projetos e de visões de mundo entre oposição e situação no interior do Congresso, e entre governo e parlamento nas necessárias interações entre os dois poderes políticos da República. Uma colisão não apenas inevitável como imprescindível, uma vez que a mesma soberania popular que se expressa por meio do voto no presidente, igualmente se manifesta no voto em deputados e senadores. E um voto em um parlamentar não vale menos que o voto em um presidente; chefes do Executivo e membros das casas legislativas retiram os seus mandatos exatamente da mesma fonte, o povo, e do mesmo processo, eleições livres e justas. 

Quando ali pela metade do século 18, portanto muito antes da formação das democracias liberais, Montesquieu formulou a ideia de que a divisão dos Poderes no Estado poderia ser um remédio eficiente contra o abuso de poder e da autoridade, entendia oferecer um limite ao absolutismo. Aliás, ao lado do Estado de Direito e dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, a divisão do Estado em três Poderes que pudessem servir de contrapeso e constrangimento aos apetites do governante são as principais contribuições do Liberalismo à Democracia, depois institucionalizadas na forma do estado democrático-liberal que conhecemos desde as revoluções francesa e americana. Separar e garantir as prerrogativas do Executivo e do Legislativo, sob a supervisão e correção de um Judiciário que se coloca fora do alcance das punições e retaliações do governo e dos legisladores, é basicamente, portanto, uma forma de desenhar Estados em que os cidadãos possam se proteger do arbítrio de quem governa. 

O grande pavor dos liberais, primeiro, e dos liberais-democratas, em qualquer época, sempre foi o absolutismo, o exercício arbitrário do poder, sem freios nem limites, por quem quer que seja, principalmente por quem governa o Estado. Governos devem governar, sim, mas congressos servem justamente para frear governos e para expressar a diversidade dos valores e modos de vida que existem na sociedade. Enquanto o Judiciário serve como contrapeso ao Legislativo e ao Executivo a partir de um outro sistema coercitivo que a vida em uma comunidade política impõe, que é a Constituição. 

De um ponto de vista do absolutismo, o parlamento, naturalmente, é um estorvo, um empecilho a quem ganhou um mandato presidencial, uma vez que o presidente é um só, portanto uma só vontade e uma única pauta e vontade, porém os senadores são 81 e os deputados são 513. De um ponto de vista liberal-democrata, por outro lado, em uma sociedade de 200 milhões de pessoas, é mais plausível que os interesses dos eleitores encontrem alguma guarida e representação em alguns dos quase 600 parlamentares federais do que na decisão monocrática de um presidente. De um ponto de vista absolutista, o Poder Judiciário (mas também se pode incluir nesta conta o verdadeiro Quarto Poder, o Ministério Público) é um obstáculo e um transtorno injustificável, uma vez que o presidente representa a sociedade e os juízes e as suas cortes não foram submetidos ao escrutínio popular. De um ponto de vista liberal-democrata, contudo, se magistrados e cortes não representam as visões de mundo e interesses do corpo da sociedade, é porque servem para dar conta, de forma eminente, de um outro valor essencial na comunidade política, isto é, do contrato fundamental que vinculam sociedades e as transformam em Estados, a Constituição. Ou vocês acham que presidentes, que vão e que vêm, e a vontade popular, que muda conforme as circunstâncias, são garantias mais importantes para a vida em comum do que as constituições? 

Há mais ou menos 200 anos que está formado um consenso fundamental, nos estados que funcionam em regime de democracia liberal, sobre o estado de coisas que acabei de descrever. Exceto quando surtos de tentação autoritária se materializam em retrocessos da democracia liberal que, eventualmente, evoluem para uma epidemia de absolutismo. Depois da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, alguns países centrais da Europa passaram pelo flagelo do autoritarismo, que começa sempre pelo surgimento e disseminação do vírus dos sentimentos antipolítica cujo efeito é desqualificar as instituições intermediárias do Estado liberal, como os partidos, os sindicatos, as Cortes de Justiça e o próprio Parlamento. Tudo estimulado pelo líder carismático populista, único beneficiário da tática de terra arrasada diante das outras instituições do Estado liberal, que convenceu a população de que era possível formar um Estado próspero, voltado para o bem comum e poderoso com base em apenas dois recursos: a vontade do povo organizada em um grande movimento uniforme, convicto e engajado, e o Líder político, a única forma de poder autêntica, posto que se vinculava organicamente, misticamente, à vontade do povo e a materializava no exercício monocrático do Poder. Partidos são um estorvo, o parlamento é uma importunação, a Suprema Corte, um empacho e um aborrecimento. Vamos removê-los e enfim, o Líder (o Führer, o Duce, El Comandante, o Capitão, o Mito, como se queira chamá-lo) encarnará o Povo no poder, para a felicidade geral de todos. 

A tentação autocrática ronda mais uma vez o Brasil neste momento. O presidente da República e a massa popular do bolsonarismo empreendem uma pesada e incessante cruzada tendo como meta a desqualificação das instituições intermediárias do Estado liberal. Aliás, Bolsonaro se tornou eleitoralmente viável porque foi capaz de insuflar e de se beneficiar da pandemia de desprezo e ódio à política que ganhou proporções absurdas entre 2015 e 2016 e não diminuiu desde então. Eleito Bolsonaro, o bolsonarismo está em campanha permanente contra a política, contra o Congresso Nacional e, enfim, contra o Supremo Tribunal Federal e cada um dos juízes que o compõem. Uma campanha baseada em assassinato de reputações, destruição de imagem, investidas sistemáticas contra tudo o que o Parlamento e a Suprema Corte representam. Os parlamentares e juízes que não entregam o que o bolsonarismo deseja ou aspira, ou que minimamente contrariam ou repreendem o Líder Supremo, são tratados como traidores da pátria e do povo, desqualificados e insultados até mesmo em lugares públicos, e desmoralizados em campanhas de difamação e fake news em meios digitais. Contra o Congresso Nacional e o STF, enfim, se convocam manifestações em tom militaresco, como se não fossem Poderes autênticos da República nem composto servidores dignos e legítimos, não do governo, mas do Estado brasileiro, no uso das prerrogativas que lhes garante a Constituição, mas bandoleiros, degenerados, delinquentes e parasitas a ser expurgados urgentemente da Nação. 

Querem sentir o pulso do movimento neste momento? Vejam o vídeo gravado pelo cantor Sérgio Reis, membro de primeiro momento das falanges bolsonaristas, convocando as massas para as manifestações contra o Congresso e, prestem atenção, contra o STF (porque para eles é tudo a mesma coisa), no próximo dia 15.

“Chegou a hora, gente, chegou a hora da gente mostrar o amor que temos pela nossa pátria, o respeito que temos pelo nosso presidente Bolsonaro e a vergonha que nós temos desse Supremo, desses nossos políticos lá em cima. Temos de tirar essa raça de lá. É uma raça, é isso que estou falando, é uma raça. Fui quatro anos deputado e não tem jeito. Quando eles falam não é não e assim eles mandam no país. Não pode, então dia 15 de março vamos para as ruas. Eu vou estar lá. Estou eu, Amado Batista estará lá, tem um monte de artistas. Nós temos de salvar o país desta raça que não merece estar onde está”. 

Precisa dizer algo mais? 


WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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