A cidade que não dorme

A cidade que não dorme
(Arte Revista CULT)

 

A crise econômica que resultou no processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff e depois, na eleição de Jair Bolsonaro, não apenas tem tido como reflexo o esfarelamento daquilo que conhecemos como Estado, como tem alterado completamente as relações e as formas de trabalho.

Um dos reflexos mais visíveis dessa crise e da desregulação no mundo do trabalho são os trabalhadores dos serviços de entrega por aplicativo. Motociclistas e ciclistas passam a compor o cenário urbano nas grandes cidades até altas horas da noite, o que os distingue são as cores das caixas que levam as costas. São milhares de homens e mulheres que, sem as condições mínimas de segurança no trânsito, se aventuram vinculados a holdings que utilizam plataformas tecnológicas de serviços sob demanda via aplicativos pelas ruas das cidades para entregar comida e outros serviços.

É um aprofundamento e expansão da chamada uberização do trabalho, que significa, nas palavras de Tom Slee, ausência de um mínimo de responsabilização por parte das empresas, monopólio e práticas antidemocráticas. Esses conglomerados resistem ao pagamento de impostos e a aplicação das leis trabalhistas. De acordo com Slee, “quando lhes convém, as empesas da economia do compartilhamento afirmam que o trabalho nas suas plataformas não é um trabalho de verdade”.

Para o trabalhador, as relações de trabalho completamente desreguladas não são apenas um risco à sua saúde e integridade física, mas também um estado de incerteza permanente. Em 2018, a Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo (SRT-SP) autuou a Rapiddo, empresa do Grupo Movile, holding que controla marcas como iFood e Spoonrocket, e que utiliza plataformas tecnológicas de serviços sob demanda via aplicativos de smartphones. A mesma tecnologia e modelo de negócios é utilizada, por exemplo, nos aplicativos de serviços de transportes de passageiros.

Após as investigações, auditores-fiscais do trabalho expediram 14 autuações e duas notificações. Entre as irregularidades estão a falta de registro na carteira profissional dos motociclistas e recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Somados, os valores de multa e FGTS podem chegar a R$ 1 milhão.

Os auditores consideraram o comportamento da empresa durante um ano e uma amostragem de 675 trabalhadores. A empresa foi notificada para regularizar a situação dos motociclistas, sob pena de nova autuação. Entre as irregularidades apontadas estavam a ocultação da relação de emprego com os motoboys sob alegação de que se tratava de um aplicativo de smartphone para facilitar a captação de clientes.

Para o auditor-fiscal Sérgio Aoki, coordenador da fiscalização, “a empresa vende ao cliente final um serviço de entregas rápidas com preço e produto definidos por ela mesma. O cliente e o trabalhador não negociam entre eles e somente são conectados após a aprovação de ambos. O preço é sempre estipulado por meio de uma tabela definida pelo sistema. Portanto, não há “agenciamento”. Com o sistema de pontuação do trabalhador, qualquer “passo errado” é identificado e punido, com queda em sua pontuação e até com o desligamento da plataforma.

Segundo o auditor, outro argumento que prova a relação de emprego é a tabela de preços imposta pela empresa unilateralmente. “É inconcebível que um trabalhador autônomo não possa dizer o quanto vale o seu serviço”. Ainda, a autuação apontou que é o próprio trabalhador quem suporta os custos da motocicleta ou bicicleta, combustível,  e do tempo ocioso entre as ligações. Por fim, a fiscalização apontou evasão fiscal com menor recolhimento de ISS pelo município e, com o não reconhecimento do vínculo de emprego, a ausência do recolhimento de encargos previdenciários pela empresa em atividade de alto risco de acidente e de afastamentos.

Em algumas conversas com motoristas de Uber facilmente se constata uma dupla ou tripla jornada de trabalho. Um motorista do aplicativo com quem conversei um dia desses relatou sua rotina: entrava no trabalho de manhã e saia no fim da tarde. Ao sair do trabalho, começava nova jornada com o Uber até uma hora ou duas da manhã. A ideia surgiu quando estava prestes a vender o carro para diminuir custos. Um amigo deu a ideia de, em vez de vender o carro e aplicar o dinheiro, vender e comprar outro financiado para pagá-lo trabalhando com o aplicativo. Assim, uma jornada que seria de oito horas diárias chega a 15.

Quais os feitos na saúde desse trabalhador? No caso de invalidez, quem arcará com os custos? Quais medidas de segurança no transporte recebem dessas empresas os milhares de jovens que saem por aí de bicicleta e moto arriscando suas vidas altas horas da noite?

São essas e outras perguntas que aprofundam a incerteza constante nessas relações de trabalho. A expansão dessas empresas ganham, num cenário de implementação de políticas neoliberais radicais, um terreno fértil para seu crescimento monstruoso. Um depende do outro. Por isso, não se iluda quando uma delas tentar passar a imagem (gastam fortunas em publicidade) de apoio a causas importantes e de arejamento democrático e inovador em suas práticas. Elas se nutrem e são espelho da imposição do aprofundamento neoliberal.

Os trabalhadores, uma vez quebrados os elos de solidariedade e organização por imposição do mercado, pagam os custos desse total desequilíbrio “ambiental” das relações no mundo do trabalho e se tornam presas fáceis dessas empresas. Jornadas cada vez mais longas, insegurança e riscos no trabalho, incerteza, ausência de proteção social e a ilusão de autonomia constituem a base de uma cidade que não dorme.  A propósito, o caro senhor e senhora leitora que chegaram até aqui, por favor, não se esqueça de me avaliar com cinco estrelinhas. Obrigado!

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

 

Leia a coluna Além da Lei toda segunda-feira no site da CULT

(2) Comentários

  1. Avaliado com 5 estrelas! Rs
    Artigo que expressa os tempos atuais de precarização do trabalho humano, o neoliberalismo e sua ganância monstruosa quer acabar com todas as relações empregador/empregado, por sinal o termo empregado foi substituído pelo de colaborador>
    Agradeço ao @RubensCasara pe aindicação do texto

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