A batalha de Chicago

A batalha de Chicago
Cartazes impressos no Atelier Populaire: “A luta continua” e “Você está intoxicado!”, 1968 (Biblioteca Nacional da França / Reprodução)

 

Manifestações, marchas e protestos marcaram o ano de 1968 em todo o mundo. A ofensiva Tet e o massacre de My Lai, no Vietnã, os levantes de maio na França, a invasão de tropas soviéticas na Tchecoslováquia (que culminaram na Primavera de Praga) e a tragédia da Praça de Tlatelolco, no México, são apenas alguns exemplos da radicalização da luta entre as forças progressistas e os agentes do establishment conservador, que tentavam a todo custo conter a “maré vermelha” em vários cantos do planeta. Nos Estados Unidos não foi diferente. Uma sucessão de acontecimentos significativos levou ao ápice as contradições da sociedade norte-americana, desembocando melancolicamente na Convenção Democrática Nacional, em agosto, e na escolha, pouco tempo depois, do republicano Richard Nixon para ocupar a Casa Branca.

O governo do então presidente Lyndon B. Johnson, na época, tinha somente 30% de aprovação da população.  Sua política em relação à guerra na Indochina alcançava índices ainda piores, em torno de 23% apenas. A oposição ao conflito crescia nitidamente a cada mês, o que levou Johnson a desistir de concorrer nas eleições gerais. O caminho estava aberto para outros candidatos, inclusive para o vice-presidente Hubert Humphrey, ligado aos sindicatos filiados à AFL (American Federation of Labor) e visto por muita gente como “progressista”, ainda que fosse bastante associado à imagem e às políticas belicistas de Lyndon Johnson. Também na disputa, nomes emblemáticos como Eugene McCarthy e George McGovern. A decisão final se daria na Convenção Nacional do Partido Democrata, marcada para ocorrer no International Amphitheater, em Chicago, entre 26 e 29 de agosto.

Alguns dias antes, manifestantes começaram a chegar de todas as partes, em grande medida instigados pelo evento partidário. O que deveria ser um protesto pacífico se transformou em uma guerra. O “agosto em Chicago” foi, com suas devidas proporções, o equivalente, na “América”, ao “maio de 1968” em Paris.  Ainda que outras manifestações anteriores tenham sido bem maiores em número de participantes (algumas chegavam a cem mil pessoas), aquela em Illinois seria a mais importante em termos simbólicos.

A “batalha de Chicago” coroou um processo que se arrastava havia meses. É fundamental, entretanto, acompanhar aqui a seqüência dos fatos. No dia 4 de abril, o mais conhecido líder negro dos Estados Unidos, Martin Luther King, é assassinado em Memphis, Tennessee. Revoltas populares eclodem de leste a oeste do país. No dia 7 do mesmo mês, Bobby Hutton, “ministro da Defesa” do Partido dos Panteras Negras é assassinado, enquanto Eldridge Cleaver, o “ministro da Informação”, era ferido num tiroteio com a polícia. Os Panteras Negras se radicalizam. Cleaver seria, naquele ano, candidato à presidente dos Estados Unidos, pelo Peace and Freedom PartyEnquanto isso, Huey Newton, um dos fundadores do partido, era julgado por homicídio. Jovens afro-americanos depredam lojas, queimam pneus, destroem automóveis e entram em confrontos violentos com forças policiais em diversas cidades. Ao mesmo tempo, estudantes de classe média tomam as ruas para apoiar a luta pelos direitos civis e em protesto contra a guerra do Vietnã (em abril, por exemplo, a Universidade de Columbia, em Nova York, uma das mais prestigiosas do país, foi ocupada e fechada pelos alunos). Em 3 de junho, o artista plástico Andy Warhol é crivado de balas, mas sobrevive. Dois dias mais tarde, contudo, o Senador Robert F. Kennedy, o favorito para a sucessão presidencial, sofre um atentado, depois de discursar no Ambassador Hotel, em Los Angeles.

Protagonistas

Entre os protagonistas de 1968, destacavam-se o Partido Yippie (Youth International Party), liderado por Abbie Hoffman e Jerry Rubin, e o SDS (Students for a Democratic Society), encabeçado por Tom Hayden e Rennie Davies. Essas organizações já haviam realizado eventos importantes, como o Summer of Love e a manifestação do Pentágono. A experiência que ganharam com esses e outros meetings (como aqueles no Central Park e na Grand Central Station, em Nova York, ou as marchas no verão daquele ano, em São Francisco), lhes deu condições de preparar uma atividade muito maior e mais arriscada para Chicago. Só que haveria uma grande diferença.  Os encontros dos yippies, por exemplo, normalmente (mas nem sempre) eram festivos, não-violentos e promoviam a desobediência civil. Neles, hippies assistiam a shows de rock e evitavam qualquer problema com a polícia, ainda que eventualmente ocorressem choques com as autoridades.  Mas em Chicago, tudo seria bem diferente.

Hoffman, Rubin, Hayden, Davies, assim como David Dellinger (editor da revista Liberation) e Vernon Grizzard (líder do movimento de resistência ao alistamento compulsório), convocaram cem grupos distintos que vinham se opondo à guerra.  Pediram permissão às autoridades de Chicago para realizar um “festival da juventude”, mas tiveram seu pedido recusado.  O prefeito Richard Daley já ouvira algumas ameaças que circulavam antes da Convenção, entre elas, a de que ativistas invadiriam, à força, o International Amphitheater, ou de que bloqueariam as ruas de Chicago.  Também havia receio de que os protestos incitassem os bairros negros e criassem um caos urbano, aumentando ainda mais a tensão racial desde o assassinato de Martin Luther King.  Se já não bastasse tudo isso, havia o boato de que os manifestantes sabotariam o sistema de águas da cidade, contaminando o suprimento de toda a região com LSD, com o objetivo de fazer com que a população inteira fizesse uma “viagem” psicodélica coletiva.  A situação também poderia se agravar por causa do assassinato, pela polícia, no dia 22 de agosto, do jovem Dean Johnson, de apenas 17 anos de idade.  O caso, de acordo com os agentes da lei, poderia ser o estopim e servir como desculpa para manifestações violentas dos ativistas.

É claro que boa parte dos temores era absurda, mas os governantes locais não iriam arriscar.  Proibiram o evento programado.  Mesmo assim, sem dar ouvidos ao prefeito, milhares de jovens decidiram marchar para a cidade.  Montaram acampamento no Parque Lincoln.  Se lá chegaram inicialmente dois mil militantes, em pouco tempo esse número subia para dez mil pessoas, entre hippies, yippies, “anarquistas”, ativistas negros, estudantes e até gangues de motociclistas.  A multidão carregava bandeiras dos vietcongs e estandartes vermelhos.  Muitos cartazes e banners lembravam Che Guevara, que havia sido assassinado no ano anterior na Bolívia.

A situação se tornava tensa.  As provocações entre os jovens e a polícia eram constantes.  No dia 23, Rubin e outros yippies tentaram indicar um porco, “Pigasus, the Pig”, para presidente dos Estados Unidos, no Civic Center Plaza.  A polícia não deixou que a performance continuasse e deteve todo mundo, Rubin, o porco “Pigasus” e mais seis yippies.

No dia seguinte, sessenta militantes feministas da Women Strike for Peace tentaram entrar no Conrad Hilton Hotel, onde a maioria dos delegados democratas se hospedava, mas foram barradas pela polícia.  Depois, centenas de ativistas, pressionados pela polícia, saíram do parque e tomaram as ruas de Chicago, destruindo automóveis com pedras e fechando diversos cruzamentos.  Um grupo de 300 homens se dirigiu para o Hilton, tentando invadir o local.  Também foram impedidos pela força pública.  Outros 500, tentando ocupar o Loop, tiveram o mesmo destino.

Muita gente foi ao Parque Grant, e mais tarde, retornou ao Lincoln Park.  Lá estava programado o “Festival of Life”, com apresentações de diversos artistas.  Mas a polícia, de forma truculenta, acabou com a festa.  Encontravam-se ali também o poeta beatnik Allen Ginsberg, o escritor William Burroughs, e o dramaturgo francês Jean Genet.  O show da banda MC5 e os discursos de Tom Hayden, Rennie Davies e Abbie Hoffman deveriam dar o tom dos protestos.

Os policiais, demonstrando enorme despreparo, agiam de maneira agressiva, atacando não só os manifestantes como também quaisquer pedestres que por lá passavam e até mesmo jornalistas.  Para se ter uma idéia, dos 300 repórteres designados para cobrir os eventos nas ruas e no parque, mais de 60 estiveram envolvidos em incidentes que resultaram em ferimentos, danos no equipamento ou em prisão.

Os números mostram a disparidade de forças.  Haviam sido enviados para “proteger” a cidade 11.900 policiais, 7.500 soldados do Exército, 7.500 membros da Guarda Nacional e mil agentes do Serviço Secreto.  Os manifestantes eram em torno de dez mil, aproximadamente.  No dia mais violento dos protestos, quando ocorreu a “batalha da Avenida Michigan”, houve 589 prisões, 119 policiais e 100 manifestantes feridos.  Mas o provável é que a quantidade de ativistas feridos tenha sido bem maior, e que possa ter chegado a 500 ou mais.

Fim melancólico

Os eventos de Chicago terminaram de maneira melancólica.  Hubert Humphrey, da Velha Guarda do partido, foi escolhido para ser o candidato democrata à presidência dos Estados Unidos.  Nas eleições gerais, contudo, o republicano Nixon seria o vitorioso.  Uma lei federal, a “1968 Civil Rights Act”, foi promulgada, tornando crime cruzar as divisas dos estados para incitar rebelião.  Por causa disso, os chamados “Oito de Chicago”, Dellinger, Davies, Hayden, Hoffman, Rubin, além de Lee Weiner (assistente de pesquisa da Northwestern University), John Froines (professor da Universidade do Oregon) e Bobby Seale (fundador dos Panteras Negras), foram acusados de ter promovido a confusão e duramente julgados.  Seale seria afastado do grupo e julgado separadamente, tornando os outros conhecidos como “Chicago Seven”.  O caso só iria ser encerrado em 1970, com Froine e Weiner sendo inocentados, e os outros recebendo uma multa de US$ 5 mil e cinco anos de prisão.  Todas as sentenças seriam revogadas pouco tempo depois.

Os eventos de Chicago levaram ao ápice as contradições sociais, raciais e políticas dos Estados Unidos naquele ano.  A partir daí, os setores conservadores conseguiriam conter e sufocar outras grandes manifestações políticas.  Na década seguinte, os partidos “revolucionários” e os movimentos mais radicais já não teriam a mesma força para organizar e influenciar a juventude do país.


LUIZ BERNARDO PERICÁS é doutor em História Econômica pela USP e professor convidado da FLACSO (México) e da Universidade do Texas (EUA)

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