A arte de Gógol

A arte de Gógol

Tradição e modernidade no enigmático expoente da literatura russa

Arlete Cavaliere

A biografia de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) tem despertado na crítica um interesse considerável nos últimos anos. A UNESCO acaba de anunciar o ano de 2009 como “o ano de Gógol” e inúmeras exposições e eventos estão previstos para este ano na Rússia e no mundo todo em comemoração ao bicentenário do nascimento deste gigante da literatura russa.

Personalidade bastante singular, altamente enigmática, Gógol deixa-se revelar em muitos de seus últimos escritos, textos esparsos e correspondências com amigos (em particular, em sua Confissão de um autor e Trechos escolhidos de correspondências com amigos) como um homem de educação profundamente religiosa e cristã, expressa indubitavelmente no seu medo patológico da morte e do castigo.

Acrescente-se ainda o papel importante da mãe em sua formação e a grande dificuldade de suas relações afetivas e amorosas. Os aspectos “doentios” da personalidade de Gógol (e de seus personagens) costumam ser fundamentados no processo autodestrutivo que o escritor manifestou no final de sua vida, deixando-se morrer de inanição.

Há quem veja nas deformações de acontecimentos e pessoas de seus relatos uma forma de libertação dos próprios recalques psicológicos do escritor, que faria do riso um meio eficaz de liberação. Até mesmo a ausência, em grande parte de sua obra, de personagens femininos plenamente desenvolvidos e de enredos de amor, ao lado do medo flagrante na maioria dos heróis gogolianos perante a mulher, o amor e o casamento, é um convite a uma interpretação analítica que focalize na própria obra a figura do artista.  

O escárnio como máscara para a incapacidade de amar                        

Alguns de seus biógrafos apontam para o fato de que o grande mal de Gógol foi não ter amado nunca e ninguém e que, por isso, ele teria conhecido um só lado da vida, de onde provêm as caricaturas que inundam a sua obra. A comicidade, o escárnio ou o riso de zombaria seriam, portanto, o pressuposto de uma atitude de defesa e de hostilidade latentes, o que implicaria um sentimento de superioridade e desprezo a encobrir, afinal, a impotência e a frustração diante da incapacidade do sentimento amoroso.

É sob esta ótica analítica que seriam compreendidos os bizarros heróis gogolianos que, não raro, não parecem de carne e osso, mas, isto sim, manequins tragicômicos que riem e choram, fazem rir e chorar, mas que não vivem porque não amam. Daí o aspecto incompleto e fragmentado dessas figuras-marionetes.

O humor e o “riso entre lágrimas” que brotam dos textos gogolianos revelariam então, para além de um procedimento artístico e literário, um doloroso problema de dupla personalidade e dualismo religioso: a luta do escritor entre dois mundos, o da arte e da moral, sua preocupação em rir do demônio, em vez de simplesmente amar a Deus, e o conflito entre ocidentalismo e eslavofilismo, acabariam por fazê-lo mergulhar num delírio místico e na demência que lhe roubaram completamente a razão. Já se disse também que faltou a Gógol o que Púchkin, por exemplo, possuía em alto grau: harmonia interior.

Se essa multiplicidade de aspectos biográficos dá margem à utilização de diferentes tipos de abordagem interpretativa, é certamente na forma como Gógol trabalha a palavra para veicular todos os seus temas e transformá-los em matéria artística que um olhar arguto a seus contos, novelas e peças de teatro torna-se tarefa extremamente motivadora.

Embora Gógol apresentasse uma simbiose com todo o contexto histórico-cultural que lhe serviu de pano de fundo (e daí sua ligação com a “Escola Natural”, que tão claramente refletia o pensamento russo da época), ao mesmo tempo ele transcendeu em seus textos literários todas as tendências que estavam então em curso e, sem deixar jamais de evidenciá-las, construiu uma obra artística solidamente plantada em seu tempo, mas que escapa dos seus limites, apontando, ainda hoje, para a sua modernidade.

Neste sentido, se a obra de Gógol como um todo tem sido considerada por  uma parcela da crítica (basta pensar em O capote, Almas mortas, O nariz e O inspetor geral) como expressão satírica da realidade russa na primeira metade do século 19, é necessário detectar, para uma abordagem mais acurada de seus textos, sua maneira peculiar de “ver” o mundo e as coisas, isto é,  sua “óptica desautomatizante”. 

A expressão da realidade sob o prisma do caos

O traço distintivo da obra gogoliana se revela por meio de uma espécie de acumulação absurda de detalhes que fazem da realidade um aglomerado de elementos contraditórios, mas que a revelam na sua mais profunda essência, tornando esse caos fantástico e desconexo a sua mais fiel expressão. Tal procedimento está largamente empregado nas suas “histórias petersburguesas”, onde o fantástico, buscado em seus primeiros textos nas lendas e no folclore de sua Ucrânia natal (como, por exemplo, nas Noites na granja perto de Dikanka), brota agora da própria realidade cotidiana e urbana de São Petersburgo. A notável novela O capote constitui, sem dúvida, um dos textos mais representativos da assim chamada fase petersburguesa.

Gógol foi, sem dúvida, um dos intérpretes mais agudos do período petersburguês da história russa sob as ordens do czar Nicolau I. Seus contos, novelas e peças de teatro metaforizam, por assim dizer, o caráter sinistro, estranho, absurdo e espectral que adquirira o império russo e a sua capital-símbolo, São Petersburgo, durante o regime de um dos mais autocratas governantes da Rússia czarista.

Assim, especialmente a fase petersburguesa da obra gogoliana nos apresenta histórias ambientadas no espaço urbano da capital (O capote, O nariz, A avenida Niévski, O retrato, O diário de um louco), onde personagens um tanto estranhas rondam pela “capital do nosso vasto império”, como Gógol se referia à cidade, e vagam em busca de um sentido jamais encontrado e que parece se esvair a todo o momento em meio à névoa sinistra que encobre a cidade.

Observa-se em todos esses textos a mesma percepção “estranhante”, a mesma ótica grotesca com que Gógol apreende o mundo, as pessoas e as coisas. Trata-se daquilo que os formalistas russos chamariam de “ostraniênie” (efeito de estranhamento) e que impregna o estilo, os diálogos, o tratamento inovador da linguagem, a expressividade verbal, de que o escritor ucraniano se serve para, afinal, representar o real mesclado ao fantástico.

Essa percepção grotesca e “desautomatizadora” foi interpretada muitas vezes pela crítica de seu tempo como “rebaixamento” da narração, do discurso e dos diálogos, em comparação, por exemplo, com a literatura de Púchkin e Liérmontov. No entanto, todas essas características gogolianas representam, na verdade, o seu papel renovador na prosa e no teatro russo.         

O desafio da crítica

Muito se tem discutido sobre o enquadramento de Gógol em determinados grupos literários unificados por estilos e tendências ideológicas. Mas, com efeito, Gógol, diferente de outros grandes escritores do século 19 russo, não formou nenhuma escola ou plêiade de seguidores diretos. Conhecemos a famosa frase atribuída a Dostoiévski : “Todos nós saímos de O capote de Gógol”, mas a obra de Gógol parece transcender qualquer moldura e submetê-la às mais variadas classificações tem sido a tarefa da crítica ao longo dos séculos.

Uma das apreciações críticas mais interessantes no século 20 é a de Mikhail Bakhtin, na medida em que busca compreender toda a arte gogoliana no fluxo da cultura popular de base cômica. Segundo o teórico e semioticista russo, toda a visão de mundo de Gógol está ligada a um riso que se eleva no solo da cultura cômica popular, das formas do cômico popular da praça pública e dos teatros de feira.

É curioso notar o grande interesse, tanto do ponto de vista teórico como da prática artística, surgido na época das vanguardas russas, especialmente na década de 1920, com relação à obra de Gógol. Este período da história russa, marcado por profundas transformações, contradições e contrastes de toda ordem, rápidos e violentos, se debruçou sobre a literatura gogoliana como uma espécie de sucedâneo.

Os estudiosos e artistas soviéticos dos anos 1920, ao trabalharem com o material gogoliano, procuravam, antes de mais nada, a evidência de uma “arte enquanto procedimento”, segundo a expressão do teórico formalista Viktor Chklóvski. E, mais do que isso, propugnavam a oposição estética a um realismo descritivo que havia, até então, se apropriado da obra de Gógol. Em contrapartida, as experiências artísticas das vanguardas que fizeram uso dos textos gogolianos propõem a afirmação de um outro tipo de realismo, um realismo fantástico, muito vinculado à estética do grotesco.

É, portanto, com Gógol, que o grotesco, tanto cênico quanto cinematográfico, vai se afirmar naqueles anos como tarefa complexa de fazer a passagem de um rico tecido textual a uma ação, por vezes, sem palavra. Essa empreitada vai ser realizada, por exemplo, pela experiência cinematográfica do grupo Feks (Fábrica eksentrítcheskovo aktiora, isto é, Fábrica do ator excêntrico) que chegou a transformar a novela O capote em expressiva linguagem do cinema mudo. Outra experiência daqueles anos experimentais é a versão cênica de O inspetor-geral, peça escrita em 1836, realizada pelo encenador russo de vanguarda Meyerhold em 1926, apoiada, sobretudo, na pantomima dos atores e no ritmo musical da linguagem cênica.

É possível então, como demonstra a própria tradição das vanguardas russas, criar, a partir da prosa e da dramaturgia gogolianas, produtos artísticos renovados, cuja linguagem se desprende do material literário do escritor, tomando-o, porém, como ponto de partida. São adaptações artísticas resultantes de uma visão sintética do universo estético gogoliano e que, ao darem conta de sua totalidade, abrem ao próprio texto literário a possibilidade de leituras criativas e multifacetadas.

A contemporaneidade da obra de Gógol

 Também não têm sido poucas as encenações teatrais contemporâneas baseadas na literatura de Gógol, e que parecem se estruturar por meio daquele mesmo movimento dialético que faz vibrar simultaneamente o mais real e o mais fantástico: o sobrenatural e o inusitado surgem naturalmente do real e o absurdo que daí resulta se destaca do cotidiano mais comezinho no qual todos os opostos se tocam e onde o trágico e o cômico se mesclam a elementos de terror e humor.

É nesta orientação estética que o herói (ou anti-herói?) Akáki Akákievitch, de O capote, ou o pobre Kovalióv à procura de seu nariz em O nariz devem ser modulados: espécie de sonâmbulos tragicômicos, perdidos pelas ruas de São Petersburgo e submersos em suas enlouquecidas obsessões. Mesclam-se aqui matizes de humor, ironia e, ao mesmo tempo, de profunda melancolia, elementos constitutivos e essenciais da arte literária de Gógol.

A figura cômica e grotesca de Akáki Akákievitch (assim como tantos outros personagens gogolianos) marcaria certo fluxo da literatura russa, matizado da fala popular, com seus diálogos carnavalizados, livres e soltos, mas encharcados, ao mesmo tempo, de um lirismo poético que adquire, por vezes, certo tom épico e romântico a emoldurar os elementos da língua falada, os jogos de palavras e trocadilhos populares.

Com efeito, a literatura de Gógol nos apresenta mais do que temas e ideias, um verdadeiro prodígio de procedimentos artísticos. Porque a verdadeira intriga em seus textos reside no estilo, na estruturação interna de suas anedotas, no ritmo musical e na sonoridade expressiva de seu discurso.

É dessa espécie de exercício de linguagem e da sua consequente organização artística que pode irromper aquele caos mágico e poético, em que o absurdo e o irracional nada mais são, afinal, do que um correlato da tessitura “disforme” e cômico-grotesca do  próprio discurso. Assim, o universo que se revela parece ser a contrafação grotesca da própria realidade apresentada, pois às “deformidades” do discurso gogoliano correspondem, certamente, as imperfeições e absurdos da vida enquanto tal. Os textos de Gógol são, portanto, poesia em ação e, como tal, podem desvelar os mistérios do irracional, mesmo que, muitas vezes, sob as máscaras da racionalidade.

(1) Comentário

  1. Crítico muito autocentrado. Dá a entender que o amor e a tranquilidade são uma espécie de “verdade humana” e que tudo que foge disso é inválido, falso.

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