A distopia, mais uma vez
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A distopia é uma forma narrativa ficcional, comum em romances e filmes. Todo mundo já ouviu falar dos romances 1984, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; ou Laranja mecânica, de Anthony Burgess. Ursula K. Le Guin e Octavia Butler, com suas fantasias sociológicas, são autoras cada vez mais lidas por diversos públicos que buscam aventura, mas também, provavelmente, compreensão sobre o mundo em que vivemos. Uma intuição coletiva faz saber que há mais entre a realidade e a ficção distópica do que supõe a filosofia.
Pensamos em distopias e nos vêm à mente histórias de ficção fantasiosas que, no entanto, em nossos dias, soam cada vez menos absurdas. O conto da aia, de Margaret Atwood, por exemplo, é um romance publicado em 1985, mas que se tornou famoso por meio de sua adaptação como série de TV a partir de 2017. Com suas mulheres confinadas para a procriação, esse romance mostra uma comparação de fundo realista com uma sociedade patriarcal em que os corpos das mulheres são controlados. Não foi por acaso que participantes de movimentos feministas foram às ruas vestidas com o figurino da ficção no momento em que deputados fundamentalistas religiosos tentaram equiparar o direito à interrupção da gravidez com o crime de assassinato. Mesmo a conservadora sociedade brasileira discordou de modo generalizado dos deputados. A proposta parlamentar visava revogar a quase secular lei brasileira pela qual é permitido interromper uma gestação decorrente de estupro ou quando há risco de vida para a mulher. Mesmo que o aborto seja um tabu, a crueldade da sugestão era visível e não foi defendida pela população como os proponentes esperavam.
As contradições envolvidas no caso ficaram visíveis. Através da nova lei, as mulheres que abortassem clandestinamente – por desespero, diga-se de passagem – receberiam uma pena mais alta do que seus estupradores, ou seja, os reais criminosos. As meninas grávidas por estupro, cujo percentual populacional é imenso, seriam condenadas à maternidade ou à prisão, depois de terem sido vítimas de violência sexual, na qual se inclui a violência psíquica e moral. A consequência de um crime de estupro é também a violência de um engravidamento, algo que, em si mesmo, traz diversos sofrimentos físicos e psíquicos para os quais as meninas – seres imaturos em todos os sentidos – não estão preparadas. Há ainda a questão do desconhecimento que crianças têm desses processos corporais e do abuso sofrido. Não passou batido que somente adultos cruéis e sádicos – além de pedófilos – são capazes de sustentar tamanha crueldade esquecendo completamente os direitos de meninas (de crianças!), assim como apagam os direitos das mulheres. Não esqueçamos que, se uma mulher corre risco de vida por motivo de gravidez e é impedida de interromper sua própria morte, ela está condenada à morte, e a lei se torna, direta e escancaradamente, feminicida.
Na verdade, tais deputados fizeram uso do poder Legislativo como arma, ou seja, legislaram em favor da violência contra mulheres e meninas, em vez de combater a violência como seria de se esperar em uma sociedade democrática. Por fim, tiveram de recuar diante da opinião pública em choque. A expressão “bancada do estupro” passou a ser usada, mas “bancada do feminicídio” também seria aplicável. Na guerra distópica de deputados contra mulheres e meninas, eles foram vencidos pela verdade feminista.
A distopia como tema estético-político
Nada disso teria sido possível sem a consciência da distopia. Nela está implicado um velho problema filosófico que havia sido situado no campo da poética, já em Aristóteles. A poética é a filosofia prática da construção artística na qual se estabeleceu a reflexão sobre o nexo entre realidade e ficção. Esse problema perdura em nossos dias. Ainda nos perguntamos se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte. E mesmo quando perdemos a arte de vista, assunto pouco relevante para quem se vincula à época da indústria cultural do entretenimento, resta o tema da construção da narrativa, ou seja, da “veridicção”, como Foucault definia a produção da verdade como padrão de inteligibilidade, que cada vez mais invade a vida em geral. Ninguém que se mantenha inteligente é capaz de achar que tudo está como deve ser e que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Analisando o filme Filhos da esperança (2006), de Alfonso Cuarón, Mark Fisher fala de uma mudança na apresentação das distopias no cinema. Segundo ele, antigamente os filmes e romances distópicos eram exercícios de imaginação. No filme de Cuarón, a narrativa parece projetar um horror conhecido. No lugar de uma alternativa a este mundo, o que surge é a confirmação e a exacerbação de um mundo familiar. A continuidade entre elementos próprios ao ultra-autoritarismo e à vida no capitalismo se mostra compatível. A coexistência de “campos de concentração e cafés de franquia” parece distopia, mas é apenas realidade. Em Filhos da esperança, o espaço público é destruído e invadido pela natureza selvagem como em muitos filmes distópicos, mas ali tudo acontece em clima de convivência entre vida normal e absurdo, ou seja, aquilo que não faz sentido aparece sem mais problemas.
A noção de realismo capitalista e de distopia naturalizada permite discutir a própria noção de realidade enquanto ela é manipulada pelo sistema esteticonômico e político. O capitalismo oferece sua visão e experiência de mundo como melhor dos mundos possíveis, como na história iluminista do ingênuo Cândido, de Voltaire. Quem caminha nas ruas das grandes cidades, em uma cidade como São Paulo, por exemplo, vê inúmeras pessoas “morando” nas ruas, ou seja, lançadas no paradoxo de morar onde não se mora, de habitar o inabitável. Do mesmo modo, vemos pessoas que hoje posam em fotos diante de lugares como Auschwitz como se um campo de extermínio fosse um lugar turístico como outro qualquer. Que a catástrofe tenha se tornado decoração e entretenimento é mais um sinal de que vivemos submersos na distopia que se tornou realidade.
Um conformismo compulsório toma conta de tudo. Isso explica por que as pessoas, na hora de votar, muitas vezes escolhem candidatos alucinados, capazes de discursos criminosos e de promessas antidemocráticas que são recebidas sem maiores críticas. O vereador mais votado de São Paulo, uma das cidades mais ricas – e desiguais – do Brasil e do mundo, se elegeu com uma estranhíssima pauta: a proibição de banheiros para pessoas trans na cidade. Como se o pior fosse agora o melhor, como se torturar pessoas que não poderão ter o conforto de uma toalete fosse uma demanda de outros cidadãos.
Nem todo mundo percebe que estamos cada vez mais mergulhados em uma nova realidade, a da simulação digital. Perdemos de vista que a noção de “second life”, ou de “metaverso”, uma realidade virtual paralela, corresponde a uma espécie de mundo que se desdobra do nosso, um mundo derivado e alucinado, mas não realmente distante desde que fizemos a experiência das redes sociais. Na verdade, também do lado de cá, a realidade é uma forma cada vez mais fragmentada.
A pergunta que fica é: por que venceu a distopia em vez da utopia?
Habitamos os cárceres de Piranesi
Giovanni Battista Piranesi fez uma série de gravuras entre 1750 e 1780 às quais deu o título de Le Carceri d’invenzione. São imagens que evocam confusão mental por meio de paredes e abóbadas sufocantes, de escadarias e corredores que levam a lugar nenhum. Escadas espiraladas entre pontes rompidas, escombros e ruínas escondem corpos torturados para os quais não há nenhuma saída. Panoramas esmagadores oprimem personagens espectrais, e quem, na condição de espectador, observa abismado os grilhões e as forcas abandonadas entre focos de luz e sombras desencontradas se sente parte do horror.
Como escrevi no meu ensaio Mundo em disputa (Civilização Brasileira, 2024), embora sejam espelhos da alma e do mundo do final do século 18, as imagens dos Carceri dialogam com o clima cultural e existencial do nosso tempo, em que a experiência afetiva e sentimental de obscurantismo, opressão e desespero parece se renovar. As condições históricas mudaram, assim como as tecnologias de produção e distribuição da linguagem, a própria arte superou a representação da realidade, mas o conteúdo mental e afetivo que preside a História como um miasma continua o mesmo.
Os estados angustiados e depressivos da nossa época não são uma abstração nem um mero sintoma particular ou coletivo, mas indicam o design da subjetividade previamente programado e codificado no jogo de poder sobre corpos individuais adulados e oprimidos conforme as necessidades do sistema. O páthos das imagens atinge a percepção de cada pessoa criando um universo de corpos perplexos sob um miasma espectral, imagético e visual-viral. Lixo iconográfico e discursivo intoxica e vicia corpos-mentes, deixando as pessoas em estado de estupor. A sensação de pesadelo é compartilhada, e a distopia se torna a nova verdade sem que se reflita sobre ela.
É urgente debelar o estupor, o que acontecerá se desmontarmos as condições que nos levaram a tais lugares mentais e materiais aprisionantes. Em nossa época digital, essas condições são também informacionais, e todos os nossos gestos correm o risco de acionar uma armadilha.
Marcia Tiburi é filósofa, artista plástica e professora universitária. É autora de Como conversar com um fascista (Record, 2015) e Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve (Nós, 2023), entre outros livros.