Os animais e seu puro ofício de viver
(foto: Bob Sousa)
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“O leão que está solto nas ruas/ E as garras soltas no ar/ Logo, sou”.
“Zoilógico”, Gilberto Gil
Um espetáculo que é pura sensorialidade, mas que não deixa de cortejar a consciência do espectador. Assim, pode-se definir E se fôssemos baleias?, a mais recente criação do coletivo A Digna, em cartaz no Auditório do Sesc Pinheiros até o próximo dia 15 de junho. A partir de um enredo bastante enxuto, de caráter anedótico – o sonho de uma auxiliar de operações de um centro de distribuição da Amazon transforma-se em um pesadelo, revertido em uma ilusão que se precipita, por sua vez, em uma metamorfose que remonta àquele sonho –, o dramaturgo Victor Nóvoa criou um texto aparentemente simples, mas de grande poder sugestivo e sinuosa prontidão crítica, disposto a gerar entendimentos variados e a articular algumas boas reflexões. Em princípio, a peça parece criticar a precarização do trabalho nos grandes conglomerados empresariais globalizados do capitalismo contemporâneo. E de fato o faz, mas logo abandona tal perspectiva, sem deixar transparecer que seja uma falha em sua construção. Depois, achamos que o cerne mesmo da questão é o exame – contundente, irônico, mordaz – do mundo das redes sociais e da cultura dos influencers digitais. Não se está de todo errado pensando assim, mas o texto também escapa com celeridade desse ponto de vista. Sem que isso, igualmente, implique o malogro da empreitada. Posteriormente, a articulação de ambos os planos é que soa como o pulo do gato da feitura dramatúrgica. Mas é claro! Trata-se de uma radiografia mais ampla da opressão exercida pelos inúmeros tentáculos do capitalismo informacional digital! Embora não de todo ausente na iniciativa, tal argumentação somente cerca o tema principal da peça, sem, no entanto, o atingir. Nos minutos finais, então, é que o espectador tem condições de responder ao enigma proposto, ao modo da Esfinge edipiana: É do homem, afinal, que trata essa criação. Mas não dos indivíduos inebriados pelos discursos do excepcionalismo humano. Absolutamente. Como muito bem sugere a pergunta do título, E se fôssemos baleias? constitui um ótimo exercício disposto a investigar outras animalidades que não aquelas dos chamados animais racionais. Que nos ajudam a reconfigurar os limites do humano. Ponto para Vitor Nóvoa e sua poética incursão pelo universo de uma autêntica “zoodramaturgia”.
Mas ponto também para toda a equipe de criação do espetáculo. A direção de Fernanda Raquel explora com muita segurança os ritmos das cenas, as mudanças de registro, as nuances emocionais, a compreensão do texto, os efeitos controlados do humor, a coexistência das intérpretes – sempre fisicamente próximas; às vezes, alegoricamente, distantes. As duas atrizes em cena – Ana Vitória Bella e Helena Cardoso – narram muitíssimo bem esse apólogo encoberto e sem lição de moral. Além da propriedade como narradoras, ambas fazem dos respectivos corpos palcos paralelos àquele por onde elas transitam. Não há virtuosismo em tais corpos, nenhuma técnica admirável, tampouco algum golpe de efeito. Há uma expressividade genuína, discreta, delicada. Potencializada, não se pode deixar de registar, pelos figurinos de Joana Porto, a cenografia de Renan Marcondes, a iluminação de Mateus Brant e a trilha sonora de João Nascimento. Cada uma dessas esferas produz uma sensorialidade toda própria, articulada à narrativa e não subordinada a ela; preocupada em corporificar sensações, impressões, acontecimentos (reais ou imaginários; de natureza racional ou perceptiva), em deixar os corpos atuarem, em permitir que outros corpos aconteçam.
Sem provavelmente se dar conta disso, E se fôssemos baleias? – o texto e o espetáculo – ecoa as ideias de três livros lançados nos últimos anos no mercado editorial brasileiro. A relação mais imediata é estabelecida com Como resistir à Amazon e por quê (Elefante, 2023), do poeta e livreiro independente norte-americano Danny Crane, obra cujo subtítulo expõe um programa bem mais amplo do que o simples ataque a uma grande empresa tirânica: a luta por economias locais, proteção de dados, trabalho justo, livrarias independentes e um futuro impulsionado por pessoas. Por meio de uma prosa objetiva e mordazmente incisiva, Crane expõe a monstruosidade de uma mentalidade imperiosa mundo afora que prefere a autoritária noção de corporação à gregária ideia de comunidade. Entre o arremedo de Ésquilo e de Hans Jonas, pode-se dizer que o sonho da razão do Prometeu desacorrentado vem produzindo, nos dias de hoje, toda sorte de anomalias e de disjunções. Trazidas à cena pelos artistas envolvidos nessa criação de A Digna de modo muito envolvente.
O outro título com o qual o espetáculo do coletivo dialoga é Animalidades: zooliteratura e os limites do humano (Instante, 2023), no qual a autora, a professora de literatura da UFMG Maria Esther Maciel, examina o papel exercido pelos animais no imaginário cultural da humanidade, com foco especial na literatura brasileira – desde o cão filósofo Quincas Borba de Machado de Assis até a abjeta barata clariciana, por meio de cujo alumbramento metafísico G.H. reconstitui sua subjetividade. A travessia que a personagem da ilhoa na peça de Victor Nóvoa empreende entre o seco e o úmido, o sólido e o líquido, o conforme e o disforme, o corpo-mulher e o corpo-cetáceo, também aponta para aquilo ao qual a pesquisadora mineira faz referência: a ética da diferença no trato das alteridades não humanas.
Por fim, com o terceiro livro, E se fôssemos baleias? interage de modo mais indireto, embora o tema aqui seja eminentemente marítimo. Trata-se de Outras mentes: O polvo e a origem da consciência (Todavia, 2019), do mergulhador e professor de filosofia da ciência australiano Peter Godfrey-Smith.
Arriscando pensar que a interioridade de um indivíduo teria surgido em organismos primitivos, desafiados a coordenar estímulos externos e processos internos a fim de sobrevirem, o autor trata da constituição da experiência subjetiva animal, examinando mais de perto a inteligência dos cefalópodes com os quais convive há muitos anos. Tal como constata Godfrey-Smith, a protagonista da peça busca, do início ao fim, sentir como é ser aquele grande mamífero, encarnando um “eu que vivencia o que está acontecendo”.
O espetáculo de A Digna leva mesmo o público a refletir sobre a ideia de que o capitalismo informacional não quer conciliar e, sim, somente devastar, mas o trabalho parece mais preocupado em convidar o espectador a sentir a potencialidade crítica do conceito, levando-o a experimentá-lo de modo senciente, cuja eficiência está assentada na ludicidade própria do teatro – de base, aqui, marcadamente, corporal-sinestésica. Tetrapous, dipous, tripous? Diante de um cetáceo, abandonamos a velha e surrada questão. Édipo está às voltas com o problema de seus pés; as baleias simplesmente não os têm. Caso o homem consiga abandonar a terra firme de suas tolas e ilusórias convicções, talvez seja capaz de perceber que as atividades básicas da vida, aquelas usufruídas por pessoas, animais e minerais, acontecem em células repletas de água – a substância móvel de tudo o que existe.
E SE FÔSSEMOS BALEIAS?
Até 15 de junho
5ª a sábado, 20h
Sesc Pinheiros – Auditório – 3º andar
Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros – São Paulo (SP)
Duração: 65 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Ingressos: R$ 40, R$ 20 e R$ 12
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.