“Eu vivo porque sou poeta, sou poeta porque eu vivo”: sobre Balanço de André Luiz Pinto

“Eu vivo porque sou poeta, sou poeta porque eu vivo”: sobre Balanço de André Luiz Pinto

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O livro mais recente de André Luiz Pinto é O guru (Patuá, 2023), como todos os anteriores, um livro potente, em que a linguagem poética não faz concessões, ao contrário, enfrenta a vida e a poesia com a mesma intensidade. Entretanto, tratar da poesia de André Luiz Pinto é tratar de uma história; a do poeta, de um percurso de ser e estar no mundo, como bem demonstra a frase com que ele define a si mesmo e que escolhi para dar título a esta coluna, retirada do filme Prazer esse sou eu – André Luiz Pinto, de Alberto Pucheu (2019). De fato, a experiência engendra o poema, não há como separar o verbo do vivido.

A autoconfissão se amalgama à invenção que naturalmente caracteriza o poema, da vida para o verso, do verso para a vida; não se trata apenas de uma via de mão dupla e sim de uma reproposição da experiência que de saída vem do indivíduo e retorna para o leitor maior que o poeta e sua vida. Desse modo, o poema é um objeto estético e ético, com alcance social, político, artístico. Reforço esse aspecto para que não se pense que o poeta escreve sobre sua vida: escreve a partir dela, e por causa dela, de suas múltiplas vivências. Para tratar dessa história,

faço, então uma breve incursão por Balanço, livro de 2021, publicado pela editora Patuá, a partir de anotações que recolhi do prefácio a esta obra que tive a alegria de escrever e que, com ajustes, reproduzo aqui dando outra vida a esse texto, agora com o distanciamento do tempo e a possibilidade de encontrar mais leitores e não só isso, mas uma diversidade de leitores.

Aprendi, com João Alexandre Barbosa, que mais do que buscar a compreensão do poema, é preciso entender que a compreensão está na busca, na viagem do leitor pelo périplo do texto. O que se compreende nessa travessia está além do poema, pois na leitura o leitor faz um périplo ao redor de si, ou ainda, dentro de si. E não poderia ser diferente. A linguagem vem do interior em direção ao mundo; na leitura refaz seu percurso, com sentido contrário para voltar a expandir-se.

Imaginemos agora que o leitor tem diante de si não um poema, mas uma história da poesia, de um autor, de uma época, de um país. O mergulho nas profundezas do ser força-o também à rememoração e à exterioridade. É essa a sensação que tenho ao ler Balanço. Está ali uma travessia, a de André Luiz Pinto, das formas poéticas que lhe habitaram e habitaram os brancos das páginas que seus poemas vestiram de dor, indignação, amor, participação, migalhas e noites silenciosas, do pai ausente, da loucura e do sol permanente. Mas também há, ali, a história de um país miserável, racista, desigual, de um planeta habitado pelo egoísmo.

Balanço conta uma história de 30 anos (1990-2020), nesse período, também a poesia alcançou novas nuances e matizes, mas Balanço é mais que isso, como já na epígrafe se anuncia:

Quando nos mudamos,
meus pais fizeram de tudo
para se livrar da mochila
que levava meus poemas.

Botaram-na perto da portinhola
da caminhonete para ver se caía na estrada.

Mas não caiu.
Desde então,
levo essa mochila comigo
como um cachorro
que me segue na rua.

O poema, com um tom cotidiano, bastante típico do poeta, eu-poético em primeira pessoa, rememora uma cena da infância, com certa crueza, sem rodeios, dando, paradoxalmente, aos versos profunda delicadeza, a delicadeza da meninice. Nesse caso, o que se antevê é o garoto que zela por seu melhor amigo (como um cachorro), um amigo sem dono – que o seguirá por toda parte e que dele não se afasta. Trata-se de uma inequívoca fidelidade: a poesia (cão), como demonstram esse e outros poemas, é a ponte que liga o poeta a si, ao mundo e a seu tempo, mas sobretudo é a razão de seguir, enquanto ela mesma o acompanha. Meditativa, irônica, muitas vezes ácida, a poesia para André Luiz Pinto é meio de vida, ou ainda, um meio de tornar a vida possível.

Balanço divide-se em 13 partes, de tamanhos irregulares e cada uma é composta por poemas de diferentes livros. Neles, esses poemas compunham um conjunto, faziam parte de um concerto. Aqui a orquestra é outra, aquele que era violino, pode ter se tornado o saxofone. Inseridos num conjunto rememorativo e celebrativo dos trinta anos de atividade poetária (o termo é de Haroldo de Campos e retoma proletária, operária) de André Luiz Pinto, cada poema terá seu corpo e voz, mas esta voz ganha outro timbre, um novo balanço, ao mesmo tempo que, sendo parte de uma memória, é eco e silêncio, traz nesse timbre um resto de percurso, um lastro de desejos recônditos, amargo e sublime – no que pode ser sublime para um poeta cerebral, filosófico e bastante afetivo com as coisas mais simples da vida, com os laços pequeninos entre os seres.

O poema é uma tomada de posição em relação à vida social e política. É ficcional, mas parte da experiência concreta, real. André insere-se em uma tradição de poetas da qual Drummond é um dos representantes e para os quais não há como escrever sem passar pela experiência. Diz Drummond em um conhecido poema “É preciso escrever um poema sobre a Bahia/mas eu nunca fui lá”. Porém na cena contemporânea essa experiência ganha contornos mais contundentes, porque a vida do poeta se amalgama ao poema, é poetizável e por isso transcende o mero relato biográfico.

É assim nos pungentes versos “Pai tinha/dessas manias/como quebrar garrafas/enquanto fechava/a porta”. Em que a palavra porta, no verso breve, apenas antecedida pelo artigo que a define, figurativiza a própria porta, já as garrafas estão na tessitura da memória que o poema encena, reinventa, ficcionaliza – ouvindo bem, lá estão os vidros trincados que no poema se esparramam.  Ouço seu ranger enquanto meus olhos correm pelos versos e encontram o olhar do menino.

Talvez seja no belíssimo “É noite” que o lirismo encontre um dos lugares de destaque nas ondulações de Balanço. Disposto ali entre poemas de outros matizes talvez se perdesse, mas não, basta se deixar levar pela leitura para que se descubra neste poeta a profunda delicadeza, ou como já disse em outros ensaios, a “ternura da perda” que tão bem a poesia brasileira contemporânea deixa emergir.

Sigo o poema para vê-lo onde termina.
Tudo está nu, debruçado na janela
feito um latido. O frio anuncia
o fastio do próximo verão. Não
por esta noite, num abraço acolhedor.
Não agora. Tudo range nessa hora:
os pelos crescem, ela vira para o lado
e dorme, ouço, entre os batimentos,
a voz do coração. Ouço calado
sem par. Haverá outro momento
para escutá-la senão o de dormir?

Aqui o que se perde é o que a vida, no dia seguinte, vai devorar, trem lotado, desconcerto do mundo. Essa perda se converte em poema, um latido pela madrugada e a respiração da mulher amada que atravessa os rangidos, o silêncio do quarto, da noite e a página em branco, a solidão do poeta, calado, sem par.

Nos poemas que seguem, e no livro de um modo geral, a desmetaforização é uma constante e a ironia, expediente predileto, é a ferida por onde a analogia sangra (Octavio Paz), ou naufraga no peito daquele que é “apenas um comandante nas horas vagas”. Delineiam-se, ainda lirismo, confissão e solidão de tal sorte que se pode dizer com Borges de O enigma da poesia, que a poesia está à espreita, salta sobre nós a qualquer instante, nomeando a experiência, contornando o indizível.

Ao regressar à sua Ítaca particular, o poeta se depara com um bordado; em cada poema se desmancha um pedaço do sujeito, desloca-o, leva-o a outro lugar, alhures, onde o que o espera não é mais o canto, mas o silêncio das sereias kafkianas, e então é preciso retomar Balanço do início, descer novamente ao Hades, defrontar-se com Polifemo – furar-lhe os olhos, deixar sangrar a monstruosidade, a opressão, o mundo titânico sem elidir sangue como ensina o poema Rosa de Orides Fontela, mas, ao contrário dele, sem assassinar os nomes; afinal é preciso, é urgente: “o ato de escrever. Por isso, sem rumo ou direção, que atingisse parte alguma”, apenas a palavra, alada, o voo.

Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.


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