Estante Cult | A última vez de alguma coisa
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Gostaria de avisar que Breve história da carne concede protagonismo à carne. Caso alguém tenha, como eu, dificuldade com imagens repugnantes, atente ao diálogo da escritora com a carne e ao embate que realizam ao longo do livro. Se as imagens das obras de arte ali expostas são fortes, a escrita de Alessandra Affortunati Martins acompanha a perturbação causada por elas. Aliás, já peço licença para chamar a autora pelo primeiro nome, um nome de mulher, o que o difere dos dois sobrenomes.
Alessandra cede à convocação da carne e outorga-lhe o estatuto de objeto de sua escrita, fazendo um acerto de contas com sua trajetória de pesquisadora. A certa altura de seu diálogo com a carne, pondera sobre suas técnicas: “Tenho outras estratégias – convenções e métodos acadêmicos, demorei muito para adquiri-los. Agora sei escrever artigos. Sei mesmo”. No entanto, o apelo da carne e da autenticidade da escrita levou a autora a mudar de estilo, adotando o gênero literário. Trata-se de uma obra que se constitui entre prosa, ensaio e poema, sendo a carne seu suporte.
Nesse novo estilo, a escritora e psicanalista parece observar um lugar de marginalidade e desprestígio das letras. Reluta em escrever à moda literária: “Nunca quis vergar esforços em direção à literatura. Desde o começo finquei os pés na ficção que reveste realidades – as que gritam pelos sintomas psíquicos… optei por escutar e fazer meu pé de meia”, ela diz. Como não há lugar para algo sem propósito numa sociedade marcada pela funcionalização extensiva de tudo e todos, esse estilo alcançado por Alessandra nos chama atenção como imposição amorosa: “Escrever esse troço é meu amor. Ambivalente, é verdade. Dedicar-lhe meu tempo. Minha libido. Mesmo sem querer escrever coisa alguma. Mesmo querendo ser apenas uma boa mãe. Destino”. Vê-se que a escrita desse amor faz um corpo. Ela, a escrita, é encarnada.
Assim, gostaria de destacar o modo como a autora disse o que tinha a dizer. Um ajuste precisou ser feito para que sua escrita fosse mais compatível com sua forma de vida, com sua escuta, com o feminismo, com o cuidado dos filhos, com a louça na pia. Se as mulheres parecem preferir escritas autobiográficas, isso se deve ao fato de ficarem historicamente confinadas ao universo privado do lar. Quando a carne vence – nesse caso, com o significado de que o chamado à escrita também venceu –, lemos expressões de sua vida íntima: “Enquanto isso [enquanto a autora escreve], as lições do meu filho esperam”.
Em Bordado e costura do texto, Tamara Kamenszain frisa: “Partindo do pressuposto de que as mulheres, delicadas até o detalhe, perdem muito tempo, as grandes companhias de limpeza preferem contratar homens. São elas que veem o pó escondido detrás dos objetos e se detêm nele”. Desmascarando o que outros não veem, pela voz da carne Alessandra acusa em sua prosa: “Denunciar violências e injustiças não será suficiente. Desista! Condenar os que abriram entranhas pelo mundo será irrelevante”.
A autora, que se aproxima da carne pelas artes, letradas e cultas, parece saber que aqueles que sofrem ou resistem à violência raramente têm tempo ou cultura para se aproximar das obras artísticas. Daí outro veio importante de seu livro. Observando a obra de Rosana Paulino, por exemplo, Alessandra afirma: “As linhas vermelhas da obra de Rosana Paulino são compostas de sangue. Escorrem delicadamente da imagem do azulejo português… águas do Oceano Atlântico absorveram a substância sanguínea dos mortos”. Com essa nota, resgata a memória do passado colonial. Desse modo, Breve história da carne traz más notícias. Mulher desmancha-prazeres, como são nomeadas as feministas nas palavras da pesquisadora Sara Ahmed, em Viver uma vida feminista.
Mas nem tão desmancha-prazeres assim. Quando diz respeito à escrita do livro que quis escrever, sua voz articulada como mulher, assim como a de outras, se faz em primeira pessoa, trazendo também alegria! Isto nos remete à epígrafe que Alessandra escolheu de Georges Bataille, que vem depois da dedicatória feita à mãe, redigida com outra letra e formatação. “O erro da filosofia é se afastar da vida”. Como leitora, minha dificuldade com a carne se dissipa aos poucos. Começo a gostar mais dela. Ela aproximou a filósofa da vida. Ela aproximou a analista da escrita.
Alessandra dedica o livro à sua mãe, dizendo assim: “Para minha mãe, que me ensinou a amar na carne”. Me ponho em diálogo com Alessandra, com a carne e com Hèléne Cixous em O riso da Medusa, porque sempre lemos uma coisa com outras. Cixous reivindicou a escrita com tinta branca, fazendo referência ao leite materno. Essa autora apreciaria a escrita de Alessandra porque, com o sangue, ela mancha o leite e acaba por aniquilar qualquer neutralidade. Talvez tenhamos em mãos, portanto, uma escrita que além de feminista, seja também feminina, não por ter sido escrita por uma mulher, mas por se inserir na gramática da castração, da ferida, da morte, da ausência, do corpo, da imagem, da solidão. A carne, ou o chamado à escrita, trava a batalha com o tempo de colocar os filhos na cama, com os beijos antes de dormir, com o cuidado, tão associado em nossa cultura ao destino da mulher. A carne fez um furo na mãe. Em uma entrevista dada a Bernard Pivot, Marguerite Duras afirma que somente a escrita é mais forte que a mãe. Um livro dedicado à mãe faz sobressair a mulher.
Em “Ilusão de ser única e outros desejos de mulheres”, escrito para sua coluna da Cult, Alessandra lembra o que Lacan disse sobre a solidão da mulher. O psicanalista advertia, então, ao olhar atento voltado às questões da envolvência do feminino com a escrita. Se parece haver, na leitura de Lacan recuperada por Alessandra, uma especificidade da solidão da mulher, ouso dizer que a escrita da carne, para a autora, diz respeito à sua própria solidão. A potência de sua escrita está também na mulher que fala em Boceta, com B maiúsculo. Eu já tinha ouvido abismada o escândalo do corpo falante do trabalho da Alessandra sobre a vulva. Está aí o fazer linguístico, o prazer do escândalo, como trabalhou John Austin em relação ao ato performativo. Como ele em Quando dizer é fazer, Alessandra parece ter observado que fazemos coisas com as palavras.
Retomo a dedicatória da escritora à sua mãe: se a carne pode ser tomada como metáfora, a mãe está igualmente neste lugar. Se a autora herdou de sua mãe a forma de amar, é em seu corpo e em sua escrita que essa forma amorosa surge. A carne, aliada de sua escrita, tornou-se suporte. Como o corpo em decomposição de Polinice em Antígona, de Sófocles, o sangue nas páginas, a estratégia estética ou as bocetas com B maiúsculo, essa escrita não deixa escapar algo sobre os corpos e as carnes, que bem pode ser condensado pela observação de Carolina Junqueira dos Santos em O corpo, a morte a imagem: “a carne, depois do corpo, é a última vez de alguma coisa”.