Letras de sangue nos romances contemporâneos

Letras de sangue nos romances contemporâneos
(Foto: Eugênio Silva/Acervo do Museu Casa Guimarães Rosa)

 

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Analisadas com cuidado, as primeiras cenas de Torto arado não estão a serviço apenas da composição narrativa que a partir delas se desdobra. Quando a língua de Belonísia é mutilada pela lâmina luminosa da faca, Itamar Vieira Junior anuncia que o enredo de sua história será costurado por cadeias linguísticas frequentemente emudecidas. Não porque ali não residisse todo um repertório denso de linguagem. Mas porque os elos dessas cadeias são enlaçados do lado avesso do idioma corrente – aqueles que se enredam entre trabalhadores da terra, cujos costumes alinham-se à cultura de povos indígenas, africanos, sertanejos. Povos que não se desfizeram de sua ancestralidade e nem dos encantamentos de divindades oriundas da África, dos povos originários do Brasil e do próprio cristianismo. São urdiduras que se fazem na carne. São palavras que se articulam pela língua talhada. Caminham debaixo da pele dos mais acostumados a encadear suas narrativas – donos da voz, das palavras, das propriedades, do dinheiro, do poder.

Dominando diversas línguas ilustradas, Guimarães Rosa já tinha escolhido partir “nonada” para chegar à “travessia”, rasgando a linguagem de letrados da academia ao seguir os rastros de sangue que escorrem pelas facas e balas dos jagunços – atravessou o sertão com a linguagem de carne do Brasil. Bem se vê que a língua anversa aparece em vários romances contemporâneos, não só brasileiros – em uma seleção reduzida, destaco pelo critério arbitrário de meu gosto Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, Sula, de Toni Morrison, Solitária e Água de barrela, de Eliana Alves Cruz ou O segredo da alegria, de Alice Walker. A língua amputada por séculos se regenerou e concedeu forma a uma vertiginosa malha literária.

Esse passo de despedaçamento e corte da letra impressa nos romances, essa escrita que quer atingir as feridas e o sangue gangrenado até alcançar as vísceras da linguagem, talvez tenha emergido de maneira mais intensa no pós-guerra. O abalo da civilização europeia ao longo da Primeira Guerra Mundial e intensificada pelos regimes fascistas que seguiram ainda com uma Segunda Guerra reverbera até os dias atuais – desde então, sabe-se que não há caminho ilustrado e nem letra que estejam limpos de sangue. Contudo, romances que anunciavam o rasgo da letra já na primeira metade do século 20 na Europa ainda temiam esse corte (no campo dramático há exceções como Bertolt Brecht, por exemplo). Ou seja, embora romancistas já destinassem um lugar de existência à carne, faziam-no como contraponto da Lei ou em tenso atrito com ela. O que os romances de carne mais recentes inauguram é o corte da própria Lei – da letra –, denunciando sua violência imanente.

Com Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, Walter Benjamin declarou a crise do romance. Como vimos, mais do que crise muitos romances contemporâneos apontam para o despedaçamento do gênero, sem que isso implique sua dissolução. Trata-se antes de talhar as últimas superfícies de verniz das palavras de homens brancos. Esse gesto parece ter sido capaz de fazer jorrar todo outro repertório, antes sufocado: a linguagem do trabalho escravizado, explorado ou reprodutivo, a linguagem do corpo e dos espíritos encantados pela sabedoria da terra, das águas, dos céus, dos animais, das árvores e de seus diferentes frutos.

De modo um pouco amador, pode-se considerar que o romance de Döblin é típico do expressionismo a abrir espaço para a voz da carne. Daí que não pareça trivial destacar a importante presença dela em Berlin Alexanderplatz – a obra, ícone de uma situação de crise do gênero, já traz em seu bojo o que estaria por vir. Vista por críticos sobretudo pela ótica da cidade, concentrada na “praça que simboliza a capital alemã e passa a ser a superpersonagem do livro” (Willi Bolle) ou mais radicalmente que “fala pela boca da cidade” (Walter Benjamin), esse romance introduz a carne como outra personagem, menos enfatizada nas análises críticas. Em outros termos: se observarmos sob um determinado prisma, as carnificinas parecem exibir a carne como a grande protagonista do romance weimariano.

Berlin Alexanderplatz espalha-a por toda parte: desde o corpo atropelado de Franz e de seu braço amputado até a carne estraçalhada de Ida, assassinada a pancadas pela força bruta do personagem principal que usa como arma um batedor de chantilly. Ou vê-se a “bela carne” da frágil Mieze, espancada por Franz e morta por Reinhold, que se orienta por filosofemas para desferir seus golpes de crueldade: “Quando se quer abater uma vitelinha, amarra-se uma corda em volta de seu pescoço, leva-se [a carne] até a bancada. Depois, levanta-se a vitela para colocá-la em cima da bancada e amarrá-la” até o momento do abate.

Da mesma forma, imagens aleatórias, soltas pelas linhas do romance, indicam a importância dessa outra protagonista: “volume de vendas no matadouro: porcos 11.543, bois 2.016, bezerros 920, cordeiros 14.450. Um golpe, zás, lá jazem eles. Os porcos, os bois, os bezerros são abatidos”. Cores e perfumes igualmente exalam da figura-carne de Franz Biberkopf, quando ele está no manicômio: “muito pálido, amarelento, com edemas nos tornozelos, edemas de fome, cheira a fome, a acetona adocicada”.

A carne também não parece um mero detalhe na enigmática imagem de “Jolly na redoma de vidro” que, como esclarece Walther Kiaulehn em Berlim: destino de uma metrópole, citado por Cornelsen, traz uma personagem macabra da República de Weimar nos anos 1920. Na alta Friedrichstrasse, o restaurante Krokodil, cuja fama se alastrou em função de seus joelhos-de-porco e bifes com ovos fritos, “Jolly” bateu o recorde da fome. Preso em uma grande gaiola de vidro lacrada, com a barba crescendo ao longo dos dias enquanto definhava segurando um copo d’água em uma de suas mãos e o cigarro na outra, esse homem se exibia semimorto para os degustadores de joelho-de-porco. O espetáculo seguia a lógica esportiva e os espertos aproveitavam-se da mania popular de superação com apostas rentáveis sobre a sobrevida daquele ser de carne.

Mas as cenas mais exuberantes protagonizadas pela carne no romance talvez estejam no capítulo do quarto livro da obra, cujo título não poderia ser mais claro sobre o que está ali em questão: “Pois ao homem ocorre o mesmo que aos animais; estes morrem tal qual aquele”. Dentre outras imagens vivas, presentes nessa parte, Döblin descreve o momento em que o touro é conduzido ao galpão de abate.

Exponho a cena tal como pude construí-la mentalmente durante minha leitura: em sua solidão, o vigoroso animal adentra o portão instigado pelos tangedores. O colorido sangrento esparrama-se junto às carcaças e aos ossos dispersos no assoalho tingido de vermelho-amarronzado. O abatedor calcula o golpe. Açoitar suavemente as patas traseiras do animal com a parte cega do machado iça seu corpo pesado a uma posição aprumada. Nessa hora, um dos tocadores envolve seu pescoço até paralisar o animal, que vacila. Seus olhos exalam adrenalina. Sabe que nada há de ser feito. Resigna-se. Seu destino está traçado: deter a morte será impossível. Conforma-se com os falsos afagos. Os doces olhos do bicho percorrem as cenas em todos os seus fragmentos – aventais manchados, braços peludos, sangue-frio, o cintilar da lâmina sob a luz da janela, o cheiro da morte. Finalmente o abatedor alça o machado atrás do animal: “zás para baixo”.

O suor do matador escorre pujante pela sua face. Seus músculos trepidam em movimentos diminutos. Depois de cravada no torso, a lâmina retira-se do tronco do animal. Suas patas enguem-se e a matéria volumosa parece alçar voo. Em seguida, o corpo sofre uma queda abrupta e desmancha-se por inteiro no solo coberto de sangue viscoso. Não está morto, ainda. Com a faca que puxa do bolso do avental, o carrasco desfere novos rasgos no couro. Cortada pelo facão, a superfície abre-se e alcança as camadas mais profundas da carne. Grande parte do sangue é recolhida num balde, outra ainda circula pelas veias do touro. Seu coração pulsa veloz, tentando preservar a posse da vida. Mas os intestinos estão contorcidos. Fincada mais uma vez na capa espessa de seu couro, a faca promove jatos descompensados de sangue. O rubro vivo respinga em todas as partes do matador, da face aos pés. Em um instante o panorama transforma-se por inteiro: o pavor evapora-se dando lugar ao alívio doce – haverá o que comer. Homens empunham o esguicho na azulejaria ensanguentada do açougue. A superfície começa a recobrar sua tonalidade alva. As lâmpadas de luz fria apagam cada sinal do crime.

Nas décadas de 1920-30, a carnificina impera nesse submundo berlinense. Ela é o avesso da Lei. Miséria e crime orientam a trama. O pano de fundo, porém, nota Benjamin, segue sendo burguês. Nesse sentido, a carne é ainda o que se sacrifica para uma adaptação a qualquer custo às exigências inescrupulosas das sociedades urbanas modernas. Por isso, são diferentes as carnes dos romances contemporâneos, cuja substância demanda uma articulação encantada em realidades densas de conflitos complexos e resistentes a julgamentos estanques entre bem e mal. O mal está mais uma vez em toda parte, o diabo é capaz de emergir em cada detalhe, a existência delicada da linguagem humana está atravessada pelo sangue de nossas vidas. Chegou o momento em que a palavra não pode mais resistir à força da carne, esteja ela na exuberância vívida da sexualidade, esteja ela na violência atroz da morte que nos circunda. Os romances contemporâneos parecem saber muito bem disso.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela USP e autora de Breve história da carne (Iluminuras, 2023), entre outros livros e artigos.


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